Cambedo, 1946: que fazer com a memória silenciada? 1
Paula Godinho
Estava-se em dezembro de 1946. Um imenso aparato de forças da GNR,
provenientes do Porto, de Vila Real, da Régua e outros locais distantes, agentes
da PIDE, da Guarda Fiscal, e soldados da secção de morteiros do Exército
Português, cercou uma pequena povoação portuguesa do concelho de Chaves,
Cambedo da Raia. Do lado espanhol, posicionaram-se guardas civis ao longo da
linha de fronteira. O alvo era um grupo de maquis galegos, refugiado na fronteira
portuguesa. A memória pública do bombardeamento foi longamente sufocada e
censurada pelas ditaduras ibéricas e, mesmo, pelas democracias.
Após o levantamento de militares galegos em apoio de Franco e dos golpistas,
a 20 de julho de 1936, chegaram tempos duros para quem apoiava a República, com
fuzilamentos sob a acusação de rebelião, ou idas ao paseo de que não retornariam.
Conquanto houvesse cumplicidade entre as ditaduras de ambos os países ibéricos, a
fronteira portuguesa permitia buscar refúgio para escapar à repressão e à mobilização
obrigatória para o exército franquista. Há uma rede social que se estende
historicamente além dos limites politicamente convencionados, ativável em momentos
de necessidade imperiosa. A porosidade raiana permitiu permanecer em Portugal, e
também foi o trampolim para mais longínquos exílios.
Apesar dos editais da PVDE, que obrigavam quer ao recenseamento dos
estrangeiros que procurassem obter título de residência, quer à denúncia por quem os
albergasse, o fluxo de refugiados não cessou a partir de 1939. Franco não cedera às
pressões internacionais quanto à realização de eleições, ou a uma amnistia aos
vencidos. Por outro lado, os países que haviam combatido o nazismo e o fascismo não
intervieram nas ditaduras ibéricas.
Paralelamente à conivência entre os governos ibéricos, demonstrada nas
ordens às autoridades que atuavam na fronteira, ativaram-se solidariedades locais e
políticas. A confiança na permeabilidade da fronteira portuguesa assentava em
correntes de apoio com lealdades políticas, de parentesco, de vizinhança, de trabalho
e de amizade, numa raia onde o contrabando complementou longamente a agricultura.
Até ao Tratado de Limites de 1864, que a incorporou em Portugal, Cambedo da
Raia era considerada um “povo promíscuo”, cruzado pela linha de fronteira. A igreja
situa-se perto do antigo marco fronteiriço, a meio da rua ao longo da qual as casas se
distribuíam, e onde hoje se encontra a placa que lembra os acontecimentos de 1946.
Franqueava-se com à-vontade os limites nacionais, transcendidos pela rede social, as
atividades, as festas.
Na orla transmontana e galega, os maquis foram essencialmente homens que,
recorrendo a teias de relações alongadas no tempo, escaparam ao terror franquista e
reorganizaram-se para o combater. Alojavam-se em casa de famílias portuguesas, em
pensões, ou em locais isolados. Sustentavam-se através do trabalho na agricultura, no
volfrâmio e no contrabando, com incursões pela Galiza, de afronta aos representantes
do poder golpista, em represália por ataques sofridos ou em pequenos golpes
económicos. Em 1947, Demétrio Garcia Alvarez, que assumiu protagonismo entre os
maquis, afirmou perante o tribunal existirem 35 grupos de guerrilheiros na fronteira,
entre os quais o seu, enquadrados na Federação de Guerrilhas de Leão/Galiza, a que
se teriam juntado vários portugueses. Embora o conhecimento da atuação destes
grupos perturbasse as autoridades portuguesas e espanholas, as bases de apoio e a
evanescência das suas presenças dificultavam a perseguição.
Um conjunto de acontecimentos marcaria o percurso e levaria ao acossamento
do grupo. António de Sousa Pinto, proprietário em Negrões, terá alegadamente
denunciado a presença de um médico galego que se acoitara em sua casa. Entregue
aos franquistas, fora sumariamente fuzilado. Em 17 de Setembro de 1946, Sousa
Pinto e um dos seus criados foram mortos numa ação de retaliação, conquanto os
documentos sugiram motivos confusos para este ato.
No dia 31 de outubro de 1946 foi assaltada a camioneta da carreira entre Braga
e Chaves, repleta de gente que se deslocava à feira dos Santos. O assalto, que
Demétrio e Manuel Bárcia sempre repudiaram, terá sido forjado pela PIDE e pela
Guardia Civil imputando-o aos guerrilheiros. Contudo, os assaltantes falavam
castelhano, e não galego, como sucedia com os maquis; usavam botas, e não
alpercatas, o calçado dos guerrilheiros. A incriminação dos guerrilheiros permitiu
apertar-lhes o cerco, obrigando a alterações constantes dos locais de abrigo, até à
noite de 21 de dezembro de 1946.
Perseguidos, sem terem onde buscar refúgio, três homens acolheram-se em
Cambedo da Raia. A aldeia do concelho de Chaves teria então menos de 90 casas
habitadas e 310 habitantes. As autoridades recorreram a uma inusitada panóplia de
forças: Guarda Nacional Republicana de Alijó, Chaves, Mesão Frio, Poiares, Santa
Marta de Penaguião, Pinhão, Régua e Porto; soldados da secção de morteiros de
Caçadores 10, de Chaves; agentes da PIDE; carabineiros, comandados por António
Prieto Rodriguez. A aldeia foi cercada e bombardeada, com uma criança ferida e
várias habitações destruídas. Era nula a margem de manobra dos três guerrilheiros.
Quem eram os maquis galegos que se encontravam em Cambedo, naqueles
dias de dezembro? Demétrio Garcia Alvarez, que nascera em Maio de 1912 em Chãs,
Oimbra, era agricultor e filho de agricultores. Depois do Alzamiento, fora preso por
afrontar as autoridades golpistas; o terreno espanhol tornara-se-lhe hostil. Acolheu-se
do lado português, onde tinha família próxima, a coberto das próprias autoridades
locais. Perdera um irmão, contrabandista e homem de confiança do novo regime,
arrastado para a morte pelas opções de Demétrio. Na fase crucial do cerco que foi
montado, recolheu-se em Cambedo da Raia, mas a rede familiar era insuficiente para
enfrentar o portento da força do Estado.
Juan Salgado Ribera tocava cornetim e nasceu em Casas dos Montes, perto
de Cambedo, numa família de músicos. Era respeitado e temido pelo seu
comportamento e capacidades, enquadrado num perfil de guerrilheiro romântico, com
uma aura que persistiu: uma pontaria certeira, vida fugitiva e alegada invisibilidade,
que lhe permitira cometer ações ousadas. É exorbitado pelos jornais censurados de
Portugal, que lhe apontavam elevadas funções e centenas de mortes, para explicar o
vigor do aparato ofensivo utilizado. Foi surpreendido enquanto repousava em casa de
uma família de Cambedo, que a PIDE prendeu por mais de um ano. Tentará fugir para
a sua terra natal, Casas dos Montes, mas as autoridades espanholas atingi-lo-ão com
vários tiros. Ferido, enceta o caminho inverso, pelas veredas que bem conhecia, do
contrabando e dos anos de refugiado, mas o terreno estava pejado de agentes de
várias forças, e não escapa à morte.
Bernardino García e García era natural de Parada das Viñas, no concelho de
Viana do Bollo, Ourense. Entrincheirado com Demétrio em casa da irmã e do cunhado
deste, Manuela Garcia e Manuel Bárcea, ripostou algum tempo. Atingiram
mortalmente dois soldados da GNR, José Joaquim e José Teixeira Nunes.
Refugiaram-se a seguir na adega da casa de Albertina Tiago, onde Demétrio e seu pai
acabarão por render-se. Bernardino ter-se-á suicidado pouco antes do final dos
confrontos, segundo declarações de Demétrio perante a PIDE. Foi enterrado no
cemitério de Cambedo.
Manuel Bárcea, cunhado de Demétrio García Alvarez, conseguira fugir e será
preso três semanas mais tarde. Andara fugido, trabalhara como moleiro em Vidago e
deixara-se prender por dois soldados da GNR, antigos camaradas de tropa, depois de
denunciado pelo irmão do dono do moinho. Nos documentos do arquivo da PIDE,
acusam-no, como a outros vizinhos, de “dar guarida aos malfeitores que à mão
armada cometeram os homicídios de Negrões e assalto à caminheta de Braga a
Chaves e de haver suspeita de nele ser componente”. Foi julgado em dezembro de
1947, condenado a dois anos de degredo, pena substituída por 18 meses de prisão
correcional. Seriam igualmente detidos vários membros da sua família: a esposa
galega, Manuela; o pai, Domingos, agricultor galego residente em Cambedo; o sogro,
Primitivo, galego e residente na aldeia de Chas; o cunhado já referido, Demétrio; a
cunhada, Celsa; outro cunhado, casado com uma sua irmã, Octávio Augusto,
elemento da Guarda Fiscal. O seu bebé, Primitivo, viria a falecer com pleurisia nas
masmorras da PIDE, em 1947.
Vários aldeões são acusados de acolherem o “bando de malfeitores”, ou de
serem coniventes. Salientam-se os agentes da Guarda Fiscal, que não denunciaram a
presença dos perseguidos, numa cumplicidade passiva. Seriam exemplarmente
punidos: Silvino Espírito Santo, cabo da Guarda Fiscal nascido em outubro de 1892,
na povoação raiana barrosã de Pitões das Júnias, foi preso quando já se reformara
como 2º cabo, “por suspeita de fazer parte duma associação de malfeitores” e ficaria
detido por 11 meses. Despromovido por decisão do Tribunal Militar, foi-lhe suspensa a
pensão após 36 anos de serviço sem falhas de comportamento. Na sua detenção, foi
acompanhado pela esposa, Clementina Tiago, pela cunhada, Albertina Tiago, pelo
cunhado Júlio Lopes, também guarda-fiscal, e pelo filho, Domingos Espírito Santo, que
cumpria serviço militar. Engrácia Gonçalves, viúva, iletrada e pobre, acolhia Juan em
casa. Foi presa com três filhos: José, de 25 anos; Almira, de 19; Casimiro, de 16.
Demétrio foi o mais duramente castigado dos presos envolvidos no designado
«processo do Cambedo», cumprindo 19 anos nas masmorras da PIDE. Em 12 de
Dezembro de 1947, foi julgado pelo Tribunal Militar Territorial do Porto e condenado a
dez anos de prisão maior celular, seguidos de degredo por 12, ou em alternativa em
28 anos de degredo em possessão de 1ª classe. Em 11 de Junho de 1948 entrou no
campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, designado «campo da morte
lenta». Transferido para a Cadeia Penitenciária de Lisboa quando o campo encerrou,
foi libertado em 1965, seguindo para França, onde pediu exílio.
A lista de prisões é longa. No processo elaborado pela PIDE, estão arroladas
63 pessoas, entre as suspeitas de conivência com o assassinato de Sousa Pinto, as
que acolheram os acossados nas suas residências, juntamente com outras que a
polícia política juntou ao processo, de Vinhais, Chaves, Boticas e Montalegre,
conhecidas pelo apoio a vários grupos guerrilheiros. Oito cidadãos espanhóis de
aldeias próximas foram julgados e expulsos para o seu país, com interdição de
penetrarem no território português. Cambedo da Raia perderá por mais de um ano 18
dos seus habitantes. Manuela García sairá da cadeia cerca de seis meses antes do
marido, confrontando-se com uma casa destruída pelos morteiros na madrugada de
21 de dezembro, com terras por cultivar e os filhos à guarda de familiares. Até ao final
da vida, viveu amargurada pela detenção, a prisão do marido, do pai, do sogro, dos
irmãos, do cunhado, e, sobretudo, pela perda do bebé, na cadeia. Os cadáveres de
Juan e Bernardino foram expostos no cemitério de Chaves, um procedimento que
permitiu ostensivamente demonstrar a sua mortalidade. Da sepultura de Juan nada se
sabe, e também não se logrou encontrar as fotos dos corpos então feitas.
O conhecimento sobre os acontecimentos de Cambedo da Raia foi circunscrito
e localizado. A versão dominante despolitizava o ocorrido, e vinculava a vizinhança
com atividades criminosas, por acoitarem assaltantes. Os jornais censurados
designaram os maquis antifranquistas como “bandoleiros espanhóis” (Jornal de
Notícias), “alguns criminosos” ou “bandoleiros” que integravam uma “quadrilha”,
provocando o pânico entre os habitantes do Cambedo (Correio do Minho), “bando de
civis armados”, primeiro, e a seguir “malfeitores de uma quadrilha” e “meliantes” (O
Comércio do Porto), “sitiados”, depois criminosos e “bando armado”(O Primeiro de
Janeiro). A apertada malha da censura permite ler a dimensão despolitizada que o
regime pretendeu atribuir aos acontecimentos, remetendo os maquis para o
bandoleirismo e criminalizando-os.
Só desde o final da década de 1990, por iniciativa sobretudo de associações
galegas e algumas pessoas portuguesas, se quebrou a não-inscrição na memória
pública. Em colóquios e seminários académicos, por iniciativa cidadã e pressão
coletiva logrou-se essa mesma inscrição, embora a «guerra do Cambedo» seja
escassamente conhecida, sobretudo em Portugal. Em Ourense, a toponímia enquadra
uma Praza de Cambedo da Raia, têm sido publicados livros sobre o assunto, há vários
documentários, conquanto do lado português o assunto seja menos conhecido.
António Loja Neves e José Alves Pereira realizaram um documentário, O silêncio,
sobre o longo ocultamento dos acontecimentos, e sua adulteração, e Xosé Lois
Santiago também registou a memória dos eventos, num outro documentário. Mais
recentemente, outra placa foi inaugurada na aldeia, junto das casas destruídas pelo
bombardeamento.
Quando passaram 75 anos do ocorrido, em 2021, entre a universidade e o
ativismo, publicou-se livros, organizou-se uma conferência internacional no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, uma série ficcional e uma homenagem à
vizinhança, no dia 18 de dezembro de 2021, com o apoio do Museu do Aljube –
Resistência e Liberdade, dos vizinhos de Cambedo e Vilarelho, a atuação do Coro da
Achada e de outros grupos de música popular idos do Porto e da Galiza. Demasiados
anos silenciada, a memória da solidariedade da população de Cambedo e a recusa da
infame inscrição feita pelas ditaduras aos acontecimentos são também a assunção de
uma herança pertinente em sociedades democráticas, que escolhem ser herdeiras
daquelas e daqueles que, em condições tremendas, defenderam a sua existência e
afrontaram os fascismos ibéricos.
1 Reescrito, com base num texto que publiquei, a convite de Dionisio Pereira, em Nós diário, 9.11.2021,
https://www.nosdiario.gal/articulo/memoria/cambedo-1946-que-fazer-com-memoria-
silenciada/20211109101814132068.html
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