2024-06-01, sábado:
Inauguração do Memorial Cambedo da Raia 1946 - Excursão da UNICEPE



Cambedo da Raia inaugura un monumento en homenaxe á loita antifascista da Galiza e Portugal

Agradecemos à "viagem dos argonautas" a notícia sobre esta iniciativa da Unicepe



Fotografias de Henrique Borges























































































Para permitir a participação de associados da UNICEPE e de outros amigos, vamos realizar uma excursão conforme segue:

      – 08h00: Entrada no autocarro, ao lado da UNICEPE, Praça Gomes Teixeira (“Leões”),
      – 08h15: partida, direto a Chaves, tempo livre para passeio e almoço,
      – 14h15: partida para CAMBEDO DA RAIA (cerca de 17km), estacionamento perto do cemitério,
      – 18h00: regresso ao Porto,
      – 20h00: chegada (estimada) à UNICEPE.

– Preço: 20,00 euros por pessoa, a pagar ao balcão ou para o IBAN PT50 0010 0000 12484870001 06

– Limite: 55 pessoas.

– Mínimo: 30 pessoas. Se não atingir, devolveremos o dinheiro.


Veja o programa completo aqui





Em 2022-04-02, a antropóloga Paula Godinho veio apresentar na UNICEPE a sua tese de doutoramento, "Ouvir o Galo Cantar Duas Vezes” (https://www.unicepe.pt/lanca9/sonia/sonia.html), que aborda os crimes cometidos pelas autoridades portuguesas e espanholas na aldeia Cambedo da Raia em 1946.

Por ação do nosso associado Jorge Ilídio Faria Martins, descendente daquela aldeia, e de outros amigos, a que a UNICEPE e outras entidades se associaram, foi desencadeada a petição “CAMBEDO DA RAIA E O PÓS-GUERRA CIVIL ESPANHOLA - OS TRÁGICOS ACONTECIMENTOS DE DEZEMBRO DE 1946 - PELO DIREITO À MEMÓRIA E AO RESSARCIMENTO”, apelando ao Presidente da Assembleia da República no sentido de que este órgão de soberania “Aprove uma resolução com um reconhecimento público de homenagem à comunidade cambedense, em especial ao seu direito à memória dos que tendo sido testemunhas da tragédia, já faleceram sem nunca terem sentido qualquer atenção do Estado Democrático”.

Essa petição veio a ser registada sob o Nº 250/XV/2 e o relatório final pode ser visto aqui

Na sequência da apresentação da Petição, em 11 de janeiro de 2024 foi aprovado por unanimidade no plenário da A.R. um Voto de Louvor e Homenagem À População do Cambedo da Raia (Chaves).

Neste contexto, e também como forma da comunidade cambedense festejar os 50 anos do 25 de Abril, vai proceder-se à inauguração dum Memorial, no dia 1 de junho de 2024, pelas 15h00, junto à capela da aldeia.




CAMBEDO DA RAIA E O PÓS-GUERRA CIVIL ESPANHOLA
PELO DIREITO À MEMÓRIA E AO RESSARCIMENTO

PETIÇÃO

Em abril de 2024 comemoram-se os 50 anos da Democracia em Portugal em torno dos eixos Memória e Futuro e em consonância com os “princípios e valores subjacentes ao Programa do MFA, que pôs fim à ditadura: paz, liberdade, democracia e progresso”.

Nesse sentido, no eixo da Memória, essa deve ser também a oportunidade de os órgãos dirigentes do Estado Democrático darem pública prova de reconhecimento e respeito pelo longo e invisível sofrimento infligido pelo regime fascista a pessoas, grupos e comunidades raianas durante e após a guerra civil espanhola que opôs republicanos e franquistas.

Contra o regime democrático espanhol, entre 1936 e 1939, e com a gradual conquista do território por parte das forças franquistas e dos seus aliados fascistas italianos e alemães, em cada aldeia e cada cidade ocupada, cresceram as denúncias, as perseguições, as torturas e os fuzilamentos sumários de muitos daqueles que tinham apoiado a República. Na Galiza, nas Astúrias e ao longo da fronteira luso-espanhola surgiram milhares de refugiados que, fugindo à perseguição e morte, procuravam abrigo e apoio do lado de cá da raia.

Individualmente ou em pequenos grupos, os fuxidos foram sobrevivendo ao longo do tempo em lugares e aldeias portuguesas, desde Castro Laboreiro até Barrancos.

Esta petição tem como objeto a comunidade-símbolo de Cambedo da Raia, na freguesia de Vilarelho da Raia, em Chaves, que em dezembro de 1946 foi alvo de uma operação militar brutal e desproporcionada de caça a fuxidos que lá se encontravam, levada a cabo pelas ditaduras fascistas ibéricas, que envolveu mais de 1.000 agentes de ambos os países.

De facto, na madrugada de 20 para 21 de dezembro, forças conjuntas envolvendo a GNR, o Exército, a PVDE e a Guardia Civil, cercaram e bombardearam o Cambedo com morteiros.

Ao mesmo tempo, noutras aldeias de Chaves (Nantes, Castanheira, Sanjurge, Couto), foram presos outros presumidos implicados no apoio aos guerrilheiros rojos.

A operação militar visava capturar, vivos ou mortos, os guerrilheiros anti-franquistas acolhidos pela comunidade do Cambedo, com quem mantinham laços de parentesco, de amizade e de trabalho. No discurso oficial das duas ditaduras, a operação prometia acabar com as actividades dos bandoleiros que atormentavam a região raiana transmontana.

O resultado do cerco a Cambedo da Raia foi trágico: para além da destruição de várias casas da aldeia, um guerrilheiro desapareceu, outro foi morto, o terceiro suicidou-se e o quarto foi preso; do lado das forças sitiantes, vítimas da sua própria violência repressiva, dois guardas da GNR foram mortos, um terceiro foi ferido bem como um agente da PVDE; na comunidade local também houve feridos e, através do processo da PVDE nº 917/46, 18 moradores foram presos. Nas aldeias referidas, o mesmo processo ultrapassou a meia centena de arguidos.


Para Paula Godinho, cientista social que mais profundamente estudou o caso, houve várias mortes, vidas destroçadas, pequenas economias agrícolas devastadas, num lastro de sofrimento que permanece até hoje. Além de tudo, a aldeia sofreu o opróbrio que os fascismos ibéricos fizeram cair sobre quem soube acolher os que fugiam do horror da guerra e os que combatiam o franquismo. (Godinho et alli, 2021).

No Blog Cidade de Chaves - Cambedo da Raia - dia 1 - A razão de ser, acessível através de https://chaves.blogs.sapo.pt/231189.html, o autor Fernando Ribeiro põe o dedo na ferida: Mexer numa verdade que se quer esquecida e que, quase sempre, foi mal entendida e interpretada e em que, poucas vezes, se olhou ao lado humano das gentes do Cambedo, às injustiças cometidas sobre o seu povo, ao castigo, à vergonha que durante anos foram obrigados a passar e ainda hoje por lá se sente, agora com um pouco de orgulho (por parte de alguns, poucos), mas ainda muita revolta, desconfianças e até medos de arcar com as responsabilidades dos acontecimentos do Cambedo e a morte da guerrilha antifranquista em terras de Portugal.

Em 1996, por iniciativa de Carlos Silva (Centro Cultural de Vilarelho da Raia) e de Martinez- Risco Daviña (Santiago de Compostela) foi colocada uma lápide evocativa no local onde a raia dividia a aldeia (a capela). Em 2004, António Loja Neves e José Alves Pereira, realizadores, apresentaram em Ourense a primeira versão desse eloquente filme testemunhal intitulado significativamente “O Silêncio”. Por isso, esta petição tem como objectivo contribuir para o resgate da memória daqueles que, direta e indirectamente, sofreram a vergonha dos acontecimentos de 1946 e foram vítimas das narrativas, mentirosas e de ocultação da verdade, construídas pelas ditaduras peninsulares.

Pretende-se lutar pelo direito à verdade, à memória e ao ressarcimento ético da pequena comunidade que, corajosamente, atuou contra as ordens de Salazar.


Para que tal resgate aconteça, importa hoje afirmar a responsabilidade que o Estado Democrático Português deve assumir não só no reconhecimento da longa opressão imposta pelo silêncio, isolamento e desconfiança sofridos pela comunidade raiana do Cambedo, mas também das dívidas morais, éticas e de cidadania de que aquela comunidade é credora.
Nesta conformidade, no contexto geral da comemoração dos 50 anos da Revolução de Abril, os cidadãos peticionários apelam ao Presidente da Assembleia da República no sentido de que este órgão de soberania:

Aprove uma resolução com um reconhecimento público de homenagem à comunidade cambedense, em especial ao seu direito à memória dos que tendo sido testemunhas da tragédia, já faleceram sem nunca terem sentido qualquer atenção do Estado Democrático.


Esta Petição é fundamentada na Proposta que lhe está anexa e é apresentada pela Comissão Promotora (Associações Desportiva, Cultural e Recreativa de Cambedo da Raia e de Vilarelho da Raia, Junta de Freguesia de Vilarelho da Raia, membros da comunidade cambedense e seus familiares, investigadores/historiadores e Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM) e é aberta a todos, sendo o primeiro subscritor a Associação Desportiva, Cultural e Recreativa de Cambedo da Raia, com o NIPC 504 650 157, morada em Cambedo da Raia, freguesia de Vilarelho da Raia, 5400-811 Chaves.

A Petição é também apoiada pelas seguintes entidades coletivas: Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Sindicato dos Professores do Norte, Movimento de Intervenção e Cidadania do Porto, Associação dos Inquilinos e Condóminos do Norte de Portugal, UNICEPE- Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto (CRL), URAP – União de Resistentes Antifascistas Portugueses e Museu do Aljube.




Cambedo, 1946: que fazer com a memória silenciada? 1

Paula Godinho

Estava-se em dezembro de 1946. Um imenso aparato de forças da GNR, provenientes do Porto, de Vila Real, da Régua e outros locais distantes, agentes da PIDE, da Guarda Fiscal, e soldados da secção de morteiros do Exército Português, cercou uma pequena povoação portuguesa do concelho de Chaves, Cambedo da Raia. Do lado espanhol, posicionaram-se guardas civis ao longo da linha de fronteira. O alvo era um grupo de maquis galegos, refugiado na fronteira portuguesa. A memória pública do bombardeamento foi longamente sufocada e censurada pelas ditaduras ibéricas e, mesmo, pelas democracias.

Após o levantamento de militares galegos em apoio de Franco e dos golpistas, a 20 de julho de 1936, chegaram tempos duros para quem apoiava a República, com fuzilamentos sob a acusação de rebelião, ou idas ao paseo de que não retornariam. Conquanto houvesse cumplicidade entre as ditaduras de ambos os países ibéricos, a fronteira portuguesa permitia buscar refúgio para escapar à repressão e à mobilização obrigatória para o exército franquista. Há uma rede social que se estende historicamente além dos limites politicamente convencionados, ativável em momentos de necessidade imperiosa. A porosidade raiana permitiu permanecer em Portugal, e também foi o trampolim para mais longínquos exílios.

Apesar dos editais da PVDE, que obrigavam quer ao recenseamento dos estrangeiros que procurassem obter título de residência, quer à denúncia por quem os albergasse, o fluxo de refugiados não cessou a partir de 1939. Franco não cedera às pressões internacionais quanto à realização de eleições, ou a uma amnistia aos vencidos. Por outro lado, os países que haviam combatido o nazismo e o fascismo não intervieram nas ditaduras ibéricas.

Paralelamente à conivência entre os governos ibéricos, demonstrada nas ordens às autoridades que atuavam na fronteira, ativaram-se solidariedades locais e políticas. A confiança na permeabilidade da fronteira portuguesa assentava em correntes de apoio com lealdades políticas, de parentesco, de vizinhança, de trabalho e de amizade, numa raia onde o contrabando complementou longamente a agricultura.

Até ao Tratado de Limites de 1864, que a incorporou em Portugal, Cambedo da Raia era considerada um “povo promíscuo”, cruzado pela linha de fronteira. A igreja situa-se perto do antigo marco fronteiriço, a meio da rua ao longo da qual as casas se distribuíam, e onde hoje se encontra a placa que lembra os acontecimentos de 1946. Franqueava-se com à-vontade os limites nacionais, transcendidos pela rede social, as atividades, as festas.

Na orla transmontana e galega, os maquis foram essencialmente homens que, recorrendo a teias de relações alongadas no tempo, escaparam ao terror franquista e reorganizaram-se para o combater. Alojavam-se em casa de famílias portuguesas, em pensões, ou em locais isolados. Sustentavam-se através do trabalho na agricultura, no volfrâmio e no contrabando, com incursões pela Galiza, de afronta aos representantes do poder golpista, em represália por ataques sofridos ou em pequenos golpes económicos. Em 1947, Demétrio Garcia Alvarez, que assumiu protagonismo entre os maquis, afirmou perante o tribunal existirem 35 grupos de guerrilheiros na fronteira, entre os quais o seu, enquadrados na Federação de Guerrilhas de Leão/Galiza, a que se teriam juntado vários portugueses. Embora o conhecimento da atuação destes grupos perturbasse as autoridades portuguesas e espanholas, as bases de apoio e a evanescência das suas presenças dificultavam a perseguição.

Um conjunto de acontecimentos marcaria o percurso e levaria ao acossamento do grupo. António de Sousa Pinto, proprietário em Negrões, terá alegadamente denunciado a presença de um médico galego que se acoitara em sua casa. Entregue aos franquistas, fora sumariamente fuzilado. Em 17 de Setembro de 1946, Sousa Pinto e um dos seus criados foram mortos numa ação de retaliação, conquanto os documentos sugiram motivos confusos para este ato.

No dia 31 de outubro de 1946 foi assaltada a camioneta da carreira entre Braga e Chaves, repleta de gente que se deslocava à feira dos Santos. O assalto, que Demétrio e Manuel Bárcia sempre repudiaram, terá sido forjado pela PIDE e pela Guardia Civil imputando-o aos guerrilheiros. Contudo, os assaltantes falavam castelhano, e não galego, como sucedia com os maquis; usavam botas, e não alpercatas, o calçado dos guerrilheiros. A incriminação dos guerrilheiros permitiu apertar-lhes o cerco, obrigando a alterações constantes dos locais de abrigo, até à noite de 21 de dezembro de 1946.

Perseguidos, sem terem onde buscar refúgio, três homens acolheram-se em Cambedo da Raia. A aldeia do concelho de Chaves teria então menos de 90 casas habitadas e 310 habitantes. As autoridades recorreram a uma inusitada panóplia de forças: Guarda Nacional Republicana de Alijó, Chaves, Mesão Frio, Poiares, Santa Marta de Penaguião, Pinhão, Régua e Porto; soldados da secção de morteiros de Caçadores 10, de Chaves; agentes da PIDE; carabineiros, comandados por António Prieto Rodriguez. A aldeia foi cercada e bombardeada, com uma criança ferida e várias habitações destruídas. Era nula a margem de manobra dos três guerrilheiros. Quem eram os maquis galegos que se encontravam em Cambedo, naqueles dias de dezembro? Demétrio Garcia Alvarez, que nascera em Maio de 1912 em Chãs, Oimbra, era agricultor e filho de agricultores. Depois do Alzamiento, fora preso por afrontar as autoridades golpistas; o terreno espanhol tornara-se-lhe hostil. Acolheu-se do lado português, onde tinha família próxima, a coberto das próprias autoridades locais. Perdera um irmão, contrabandista e homem de confiança do novo regime, arrastado para a morte pelas opções de Demétrio. Na fase crucial do cerco que foi montado, recolheu-se em Cambedo da Raia, mas a rede familiar era insuficiente para enfrentar o portento da força do Estado.

Juan Salgado Ribera tocava cornetim e nasceu em Casas dos Montes, perto de Cambedo, numa família de músicos. Era respeitado e temido pelo seu comportamento e capacidades, enquadrado num perfil de guerrilheiro romântico, com uma aura que persistiu: uma pontaria certeira, vida fugitiva e alegada invisibilidade, que lhe permitira cometer ações ousadas. É exorbitado pelos jornais censurados de Portugal, que lhe apontavam elevadas funções e centenas de mortes, para explicar o vigor do aparato ofensivo utilizado. Foi surpreendido enquanto repousava em casa de uma família de Cambedo, que a PIDE prendeu por mais de um ano. Tentará fugir para a sua terra natal, Casas dos Montes, mas as autoridades espanholas atingi-lo-ão com vários tiros. Ferido, enceta o caminho inverso, pelas veredas que bem conhecia, do contrabando e dos anos de refugiado, mas o terreno estava pejado de agentes de várias forças, e não escapa à morte.

Bernardino García e García era natural de Parada das Viñas, no concelho de Viana do Bollo, Ourense. Entrincheirado com Demétrio em casa da irmã e do cunhado deste, Manuela Garcia e Manuel Bárcea, ripostou algum tempo. Atingiram mortalmente dois soldados da GNR, José Joaquim e José Teixeira Nunes. Refugiaram-se a seguir na adega da casa de Albertina Tiago, onde Demétrio e seu pai acabarão por render-se. Bernardino ter-se-á suicidado pouco antes do final dos confrontos, segundo declarações de Demétrio perante a PIDE. Foi enterrado no cemitério de Cambedo.

Manuel Bárcea, cunhado de Demétrio García Alvarez, conseguira fugir e será preso três semanas mais tarde. Andara fugido, trabalhara como moleiro em Vidago e deixara-se prender por dois soldados da GNR, antigos camaradas de tropa, depois de denunciado pelo irmão do dono do moinho. Nos documentos do arquivo da PIDE, acusam-no, como a outros vizinhos, de “dar guarida aos malfeitores que à mão armada cometeram os homicídios de Negrões e assalto à caminheta de Braga a Chaves e de haver suspeita de nele ser componente”. Foi julgado em dezembro de 1947, condenado a dois anos de degredo, pena substituída por 18 meses de prisão correcional. Seriam igualmente detidos vários membros da sua família: a esposa galega, Manuela; o pai, Domingos, agricultor galego residente em Cambedo; o sogro, Primitivo, galego e residente na aldeia de Chas; o cunhado já referido, Demétrio; a cunhada, Celsa; outro cunhado, casado com uma sua irmã, Octávio Augusto, elemento da Guarda Fiscal. O seu bebé, Primitivo, viria a falecer com pleurisia nas masmorras da PIDE, em 1947.

Vários aldeões são acusados de acolherem o “bando de malfeitores”, ou de serem coniventes. Salientam-se os agentes da Guarda Fiscal, que não denunciaram a presença dos perseguidos, numa cumplicidade passiva. Seriam exemplarmente punidos: Silvino Espírito Santo, cabo da Guarda Fiscal nascido em outubro de 1892, na povoação raiana barrosã de Pitões das Júnias, foi preso quando já se reformara como 2º cabo, “por suspeita de fazer parte duma associação de malfeitores” e ficaria detido por 11 meses. Despromovido por decisão do Tribunal Militar, foi-lhe suspensa a pensão após 36 anos de serviço sem falhas de comportamento. Na sua detenção, foi acompanhado pela esposa, Clementina Tiago, pela cunhada, Albertina Tiago, pelo cunhado Júlio Lopes, também guarda-fiscal, e pelo filho, Domingos Espírito Santo, que cumpria serviço militar. Engrácia Gonçalves, viúva, iletrada e pobre, acolhia Juan em casa. Foi presa com três filhos: José, de 25 anos; Almira, de 19; Casimiro, de 16. Demétrio foi o mais duramente castigado dos presos envolvidos no designado «processo do Cambedo», cumprindo 19 anos nas masmorras da PIDE. Em 12 de Dezembro de 1947, foi julgado pelo Tribunal Militar Territorial do Porto e condenado a dez anos de prisão maior celular, seguidos de degredo por 12, ou em alternativa em 28 anos de degredo em possessão de 1ª classe. Em 11 de Junho de 1948 entrou no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, designado «campo da morte lenta». Transferido para a Cadeia Penitenciária de Lisboa quando o campo encerrou, foi libertado em 1965, seguindo para França, onde pediu exílio.

A lista de prisões é longa. No processo elaborado pela PIDE, estão arroladas 63 pessoas, entre as suspeitas de conivência com o assassinato de Sousa Pinto, as que acolheram os acossados nas suas residências, juntamente com outras que a polícia política juntou ao processo, de Vinhais, Chaves, Boticas e Montalegre, conhecidas pelo apoio a vários grupos guerrilheiros. Oito cidadãos espanhóis de aldeias próximas foram julgados e expulsos para o seu país, com interdição de penetrarem no território português. Cambedo da Raia perderá por mais de um ano 18 dos seus habitantes. Manuela García sairá da cadeia cerca de seis meses antes do marido, confrontando-se com uma casa destruída pelos morteiros na madrugada de 21 de dezembro, com terras por cultivar e os filhos à guarda de familiares. Até ao final da vida, viveu amargurada pela detenção, a prisão do marido, do pai, do sogro, dos irmãos, do cunhado, e, sobretudo, pela perda do bebé, na cadeia. Os cadáveres de Juan e Bernardino foram expostos no cemitério de Chaves, um procedimento que permitiu ostensivamente demonstrar a sua mortalidade. Da sepultura de Juan nada se sabe, e também não se logrou encontrar as fotos dos corpos então feitas. O conhecimento sobre os acontecimentos de Cambedo da Raia foi circunscrito e localizado. A versão dominante despolitizava o ocorrido, e vinculava a vizinhança com atividades criminosas, por acoitarem assaltantes. Os jornais censurados designaram os maquis antifranquistas como “bandoleiros espanhóis” (Jornal de Notícias), “alguns criminosos” ou “bandoleiros” que integravam uma “quadrilha”, provocando o pânico entre os habitantes do Cambedo (Correio do Minho), “bando de civis armados”, primeiro, e a seguir “malfeitores de uma quadrilha” e “meliantes” (O Comércio do Porto), “sitiados”, depois criminosos e “bando armado”(O Primeiro de Janeiro). A apertada malha da censura permite ler a dimensão despolitizada que o regime pretendeu atribuir aos acontecimentos, remetendo os maquis para o bandoleirismo e criminalizando-os.

Só desde o final da década de 1990, por iniciativa sobretudo de associações galegas e algumas pessoas portuguesas, se quebrou a não-inscrição na memória pública. Em colóquios e seminários académicos, por iniciativa cidadã e pressão coletiva logrou-se essa mesma inscrição, embora a «guerra do Cambedo» seja escassamente conhecida, sobretudo em Portugal. Em Ourense, a toponímia enquadra uma Praza de Cambedo da Raia, têm sido publicados livros sobre o assunto, há vários documentários, conquanto do lado português o assunto seja menos conhecido. António Loja Neves e José Alves Pereira realizaram um documentário, O silêncio, sobre o longo ocultamento dos acontecimentos, e sua adulteração, e Xosé Lois Santiago também registou a memória dos eventos, num outro documentário. Mais recentemente, outra placa foi inaugurada na aldeia, junto das casas destruídas pelo bombardeamento.

Quando passaram 75 anos do ocorrido, em 2021, entre a universidade e o ativismo, publicou-se livros, organizou-se uma conferência internacional no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, uma série ficcional e uma homenagem à vizinhança, no dia 18 de dezembro de 2021, com o apoio do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, dos vizinhos de Cambedo e Vilarelho, a atuação do Coro da Achada e de outros grupos de música popular idos do Porto e da Galiza. Demasiados anos silenciada, a memória da solidariedade da população de Cambedo e a recusa da infame inscrição feita pelas ditaduras aos acontecimentos são também a assunção de uma herança pertinente em sociedades democráticas, que escolhem ser herdeiras daquelas e daqueles que, em condições tremendas, defenderam a sua existência e afrontaram os fascismos ibéricos.


1 Reescrito, com base num texto que publiquei, a convite de Dionisio Pereira, em Nós diário, 9.11.2021, https://www.nosdiario.gal/articulo/memoria/cambedo-1946-que-fazer-com-memoria- silenciada/20211109101814132068.html




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