Revolução e Contra-revolução no Portugal de Abril
A Revolução tinha nascido há poucos meses quando Vasco Gonçalves fez a sua primeira visita ao Porto
como Primeiro-ministro. Comemorava-se o 5 de Outubro e Vasco falou da varanda da Câmara
Municipal, rodeado de democratas da cidade, para uma multidão entusiasta que transbordava a Avenida
dos Aliados e ruas confluentes.
Dias antes, em 28 de Setembro, falhara o golpe caudilhista de Spínola, a jovem democracia saíra
fortalecida e Vasco reiterava o compromisso de honra do MFA em cumprir o seu Programa e apelava à
participação de todos no “dia de trabalho para a nação”, a realizar no domingo seguinte.
A aliança Povo-MFA parecia funcionar em pleno e os traços de fractura mal transpareciam. Mas por
pouco tempo.
Adensavam-se as notícias inquietantes sobre fugas de capitais, sabotagem económica, abandono de
empresas pelo patronato, redução inesperada das exportações. O Dec-lei no660/74, do 3o Governo
Provisório, que permitiu a intervenção do Estado nas empresas em dificuldades, e a nacionalização da
Banca, sequente ao falhado golpe spinolista de 11 de Março, foram medidas essenciais para estancar a
hemorragia, evitar o colapso da economia e garantir a estabilidade do emprego. A direita ligada ao
grande capital jogava todo o seu peso na destruição da economia real e no descrédito dos Governos
provisórios, para abrir caminho a soluções autoritárias e à erradicação da esquerda do Poder.
Só a União de Sindicatos do Porto, em colaboração com a Comissão Coordenadora da Banca no Norte,
a funcionar no Banco de Portugal, prestou assistência técnica a mais de 100 empresas. Mas, em
algumas empresas intervencionadas por má gestão e salvas do encerramento, os antigos donos
reuniam gente para as recuperar à força, embora a grande maioria funcionasse normalmente. O
Presidente da referida Comissão, Dr. Carlos Gomes, viria a ser demitido sem explicações poucos dias
depois do 25 de Novembro.
Nos campos levantava-se um clamor reclamando novas leis para o arrendamento, assim como para a
gestão dos baldios. A Lei do Arrendamento Rural, de Abril de 75, foi um acto de justiça, mas os grandes
proprietários, agrupados na CAP, de imediato convocaram manifestações, como em Braga e Viseu,
onde exigiam a sua revogação.
No Alto Douro, a nova Comissão de Gestão da Casa do Douro combatia as fraudes, o favorecimento
das grandes casas exportadoras do Vinho do Porto e tomava medidas de apoio aos pequenos
produtores. Cedo os grandes interesses organizaram manifestações contra a Comissão de Gestão e o
seu Presidente, o então Capitão Pardal, militar do MFA, seria afastado em 26 de Novembro, em função
de um acto arbitrário do então Comandante da Região Militar, brig.Pires Veloso.
A falta de habitação condigna gerou uma forte mobilização das estruturas populares - a manifestação
das comissões de moradores na baixa do Porto em 17 de Maio foi imensa, criativa -, e os Governos
Provisórios deram passos concretos na construção de fogos sociais a um ritmo nunca antes visto. O
SAAL e o CRUARB constituíram experiências inovadoras no plano do urbanismo, mas foram
hostilizadas pelos interesses dominantes no imobiliário.
As autarquias já não eram meras agências do Poder central, ensaiavam modos de proximidade com as
populações e de diálogo com instituições locais. Foram então criados os Conselhos Municipais, que
tiveram vida efémera em muitos casos, e no Porto um final violento. No chamado verão quente, a direita
organizou manifestações junto de Câmaras Municipais visando a demissão de vereadores do PCP e do
MDP, onde os houvesse. Conseguiam ou não , mas tentavam.
Nas escolas estabelecia-se a Gestão Democrática. Foi alargada a escolaridade obrigatória. O Serviço
Cívico estudantil levou mais de 12 mil estudantes aos meios rurais, com úteis actividades nos domínios
da educação, da saúde, do desporto. Mas estas e outras medidas do Ministério da Educação eram
combatidas pelos grupos esquerdistas, sobretudo os maoístas, numa aliança informal com a direita.
O Serviço Médico à periferia, base do Serviço Nacional de Saúde, deixou uma marca indelével entre os
clínicos que o exerceram e a população que dele beneficiou.
As equipas da dinamização cultural, da 5a Divisão, permitiram que, a par de muitos melhoramentos
locais, com obras realizadas pela engenharia militar, o teatro, o cinema, a música, as artes plásticas, a
literatura, rompessem círculos estreitos e vigiados do tempo da ditadura e chegassem aos meios mais
distantes do interior, ao mundo rural. Uma explosão de liberdade, alegria, participação criadora.
Por estranho que hoje pareça, esta nova realidade gerou anti-corpos nos meios mais conservadores e
uma onda de provocações, ameaças, calúnias. A Reforma Agrária, embora limitada à zona de latifúndio,
no Alentejo e parte do Ribatejo, onde a terra cultivada e a produção logo aumentaram, deu pretexto para
que os caciques e alguns sacerdotes no Norte e nas Beiras lançassem atoardas, como as de que os
comunistas iam “tomar conta das terras e do gado”, “levavam mulheres e crianças”, e outros dislates. A
Cooperativa os Pioneiros dos Cortiços, uma experiência inovadora e com bons resultados, de pequenos
agricultores de Macedo de Cavaleiros, cedo foi hostilizada pelos grandes proprietários, e acabaria
ingloriamente, poucos anos depois, com as medidas tomadas pelo ministro António Barreto, do 1o
Governo constitucional, do PS.
A descolonização seguia o seu curso, mas deparava com as ambições indonésias em Timor e as
pretensões neo-coloniais em Angola. Mais de meio milhão de portugueses chegaram de África e todos
foram acolhidos e integrados, numa das acções mais prodigiosas dos Governos de Abril.
Os casos do jornal República e da Rádio Renascença, embora centrados em Lisboa, tiveram expressão
no norte com grandes manifestações promovidas pelo PS e parte da Igreja Católica, a que se juntava
toda a direita. Estava em curso a chamada “batalha da informação”, e são deste período os cercos, aqui
no Porto, ao Rádio Club Português e o frustrado assalto à filial do Diário de Notícias.
Entretanto, o Comandante da Região Militar Norte, Brig. Corvacho, um dos principais responsáveis do
25 de Abril no Porto, foi afastado do comando no início de Setembro de 75, na sequência de uma
conspiração de Comandantes reaccionários em aliança com o Grupo dos 9, sendo substituído pelo já
citado Brig.Pires Veloso, cujas ligações à direita mais extremada em breve se tornariam patentes.
Erguia-se um País novo, a democracia dava os primeiros passos, profundas mudanças estavam em
curso, mas havia quem se lhes opusesse ou as temesse.
Criou-se uma vasta fronda que ia do PS aos partidos da direita e extrema direita, sectores da hierarquia
católica, saudosos do salazarismo, colonos inconformados, a que se juntavam em certos momentos
partidos maoístas, como o MRPP ou a AOC. A consigna à sombra da qual todos se moviam era a de “a
liberdade estar em perigo” e o País à mercê de uma “ditadura comunista” ou “social-fascista”, como
gritavam os ditos grupos maoístas.
É neste quadro que se desenrola a ofensiva da rede terrorista da extrema-direita, ELP, MDLP e
associados, que se iniciou em Maio de 75 e se prolongou até Abril de 77.Com o comando em Madrid,
protegidos pela ditadura de Franco e com largos financiamentos internos e externos, realizaram no País
566 acções, assim discriminadas:
- 310 atentados bombistas;136 assaltos; 58 incêndios; 36 espancamentos; 16 atentados a tiro; 10
apedrejamentos.
Os alvos políticos foram, entre outros:
PCP (160), MDP (53), outros partidos de esquerda (32), PS (16), órgãos de Comunicação Social e
instituições culturais (40), sindicatos (31), militares (19). Na página 125 do livro que hoje é presente se
publica um registo mais completo.
O distrito mais fustigado foi o do Porto (138), mas a região do Minho sofreu, em 22 meses, 72 acções
violentas, 5 pessoas morreram.
Sucediam-se as operações provocatórias, com efeitos desastrosos, como o boicote ao Congresso do
CDS, ou o assalto à Embaixada de Espanha.
A maioria dos ataques a Centros de Trabalho de partidos, a sedes sindicais e a Câmaras Municipais,
decorreu entre Julho e Novembro de 75. Os atentados bombistas intensificaram-se a partir de
Novembro, com vítimas mortais, como o Padre Max e a estudante Maria de Lurdes, assassinados em
Vila Real em 2 de Abril de 76. Outros sacerdotes católicos, por terem ideias progressistas, foram
ameaçados, como o Padre de A-ver-o-mar, cuja casa foi alvo de dois ataques bombistas.
As primeiras prisões da rede terrorista foram efectuadas, em Agosto de 76, pela Directoria do Porto da
Polícia Judiciária, o que muito contribuiu para a sua desarticulação. Apesar de todos os esforços,
poucos foram os responsáveis presos e menos os condenados.
Entre as forças que estiveram na urdidura do golpe de 25 de Novembro, houve as que, entre outras
medidas, prepararam a vinda do Governo e da Assembleia Constituinte para o Porto e providenciaram a
transferência das barras de ouro do Banco de Portugal para esta cidade. A Norte ficaria o comando das
forças que deveriam esmagar a fantasiosamente denominada “ comuna de Lisboa”. A Assembleia
ganharia novos poderes, no plano legislativo e de nomeação do Governo, e seria extinto o Conselho da
Revolução. Um verdadeiro golpe de Estado. Gabando-se dos seus feitos escreveu mais tarde um dos
chefes da rede terrorista que “estavam preparados grupos para executar quem quer que fosse”, e “todas
as pontes a montante do Porto foram armadilhadas”. Na própria noite de 25 de Novembro, numa
demonstração de força, foi assassinado um dirigente sindical vidreiro, António Almeida e Silva, e
destruídos à bomba os carros de três conhecidos democratas do Porto.
O seu objectivo era lançar Portugal numa guerra civil, eliminar o Partido Comunista e outras forças de
esquerda, provocar um banho de sangue. Não conseguiram, mas quase.
A acção convergente de democratas e patriotas, militares e civis, no limite, evitou o pior.
O Governo continuou em funções, a suspensão da contratação colectiva foi levantada, a Assembleia
Constituinte continuou a elaborar a Constituição. Recorde-se que a antecipação das eleições
presidenciais e o adiamento das constituintes, além da destituição do Primeiro-ministro Vasco
Gonçalves, foram objectivos dos golpes chefiados por Spínola, antes da sua fuga para Espanha.
O golpe de 25 de Novembro, urdido pela direita não foi tão longe como os conspiradores internos e
externos pretendiam, mas foi uma tragédia para a Revolução. Mais de uma centena de militares, alguns
destacados membros do MFA, foram presos, sem culpa formada e sujeitos a maus tratos, cerca de 130
profissionais da Comunicação Social foram afastados, os saneamentos à esquerda cresceram na
Administração Pública e nas Forças Armadas. Passaram décadas até que as injustiças fossem em parte
reparadas, para alguns tarde de mais.
A dita normalização estava em curso. A direita ganhara músculo e quis explorar o sucesso, chegando a
exigir que a Constituição fosse referendada. Não conseguiu. O processo de recuperação capitalista, a
reconstituição do poder do capital financeiro, teve de esperar pelas revisões constitucionais, sobretudo
as de 82 e 89, pela entrada de Portugal na União Europeia e pelo efeito de leis ordinárias que os
Governos dos partidos rotativos foram produzindo.
A história da revolução portuguesa é também a história da luta de classes, que está sempre presente. A
ditadura era um instrumento do poder do grande capital financeiro, e a contra-revolução é o processo de
reconstituição do seu poder, que foi mais lenta, gradual e limitada do que pretendia, e que tem de
coexistir com uma Constituição democrática e progressista.
A extrema-direita, que anseia por rever a Constituição, na impossibilidade de a revogar, tem vindo a
crescer, ganhou peso parlamentar, cultiva o ódio e a mentira, pretende resolver a crise económica e
social com demagogia e ilusionismo, mas sem tocar nas causas das desigualdades sociais. Fala numa
nova república e já apareceu no dia 25 de Abril de cravo negro ao peito. São estes os maiores arautos
do 25 de Novembro. Há que enfrentar tal gente com firmeza, saber e determinação.
Os democratas, os que defendem os valores e as conquistas de Abril têm um programa comum: o
cumprimento da Constituição da República. Cumprimento de todos os seus artigos, de que é expoente o
80o, que determina a subordinação do poder económico ao poder político democrático.
Jorge Sarabando
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