Venâncio (2022), O Português à descoberta do Brasileiro
Apresentação pela Drª Sónia Duarte Fernando Venâncio é uma figura que dispensa apresentação, pelo que , antes de me centrar propriamente na obra que aqui nos juntou, apenas dedicarei algumas palavras a sublinhar a curiosidade linguística que veio a definir o seu percurso profissional, durante o qual dedicou especial às línguas ibéricas, como se evidencia em Assim nasceu uma Língua (2019), obra que precede a atual e texto apresentado neste mesmo espaço e pela mesma “equipa”, e em cuja Introdução o autor escreve o seguinte a propósito de experiências linguísticas (passo a citar): “Os alunos contavam a sua, eu contava a minha. E falava-lhes na minha infância alentejana, nos vários embates, primeiro com o falar de Lisboa, depois com o do Minho, tudo isso ainda dentro do mesmo idioma. Referia depois a minha aprendizagem de línguas estrangeiras, o francês aos 10 anos, o inglês aos 12, os longos estudos de latim e grego, os primeiros contactos com o espanhol pela televisão, a aprendizagem passiva do italiano, os rudimentos de alemão, a habituação ao português brasileiro (o brasileiro Celso Figueiredo, padre carmelita, foi o meu melhor professor de português) e, por fim, a grande passagem, aos 25 anos, para o neerlandês (ou holandês, ou flamengo), em que acabaria por tornar-me bilingue. Falei em «embates», e é um termo adequado para a experiência de um outro português, o da escola primária em Lisboa e o dum seminário em Braga, cada um com o seu vocabulário, a sua fonética, a sua fraseologia. Tudo me atemorizava, tudo me fascinava também” (fim de citação)”. A passagem termina com destaque para o interesse pelas variedades linguísticas, entre as quais há referência explícita ao português do Brasil, tema que aqui nos ocupa. Na obra em foco o autor retoma as suas primeiras experiências de contacto com esta variedade, destacando, para além da figura do professor brasileiro, o papel da música e das “histórias aos quadradinhos”, passando pela sua posterior atividade académica enquanto professor de História e literatura brasileira na Universidade de Amesterdão e a posterior massificação desse contacto através da televisão. Desta experiência destaco três aspetos: 1) o valor conferido aos agentes de ensino expresso claramente na afirmação: “ter um brasileiro como professor enriquecia-nos” (p. 10); 2) o combate a uma visão monolítica da língua; 3) a proximidade desta à nossa própria experiência, assente igualmente em fontes que veiculam uma linguagem quotidiana e o registo corrente ou informal e não a norma culta ou académica. Para a maioria de nós, a aproximação à variedade brasileira coincide com a memória de uma telenovela, de um personagem de banda desenhada, ou para os mais jovens, de um blog ou podcast. Poucos serão, provavelmente, os que se familiarizaram com esta variante através da produção científica ou da literatura erudita. Julgo ser esta questão especialmente importante para contextualizar e atribuir significado às imagens que em Portugal circulam acerca do Português do Brasil e sobre as quais se debruça Fernando Venâncio neste trabalho. Dito isto, podemos então orientar-nos já para o texto apresentando-o sumariamente como um trabalho, que partindo de uma experiencia concreta e de um olhar educado pela formação linguística, aborda, de forma amena, o contacto entre duas variedades do Português e as percepções que acerca desse contacto se encontram enraizadas e são correntemente veiculadas. A organização do texto evidencia a seguinte estrutura:
II - Um segundo momento, em que se percorrem artigos publicados pelo autor entre 1984 e 2000 e nos quais se dá especial visibilidade aos modismos partilhados e aos juízos sobre esta situação de contacto (pp. 33- 93). III: Um último momento em que se procura tirar lições do anteriormente exposto e fazer uma análise individualizada de alguns modismos e construções (pp. 95-133). Das minhas notas pessoais de leitura, destacarei, seguidamente, algumas ideias. - As imagens ou juízos linguísticos veiculados acerca do Português do Brasil. Do seu tratamento há que realçar a enfatização da bipolaridade dessa perceção (a negativa e a psoitiva); o desconhecimento mútuo entre uns e outros e o contributo da obra para alterar essa situação e a assimetria (social e de conhecimento) das duas variedades como factor de condicionamento destas visões (p. 19). O autor procura aqui apresentar os juízos dos outros, não deixando de fazer os seus próprios juízos, sobre os grupos que alimentam quer uma quer outra perceção. Sublinho a necessidade de nos situarmos neste debate a partir de uma perspetiva verdadeiramente intercultural e conhecendo as raízes históricas da auto-imagem linguística sobrevalorizada por parte de Portugal (p.20), bem como do seu reverso, a autoimagem negativa alimentada pelos brasileiros acerca da sua variante (p. 30). Acerca desta matéria e das, como o próprio autor refere, podem encontrar-se dados complementares e esclarecedores em Assim Nasceu Uma Língua. Conveniente será ainda, como o texto sugere (p. 22), conhecer as raízes históricas da distância entre as duas variedades e as opções de política linguística (“de costas voltadas”) que ela gerou. - No âmbito da política linguística, das minhas notas de leitura destaco ainda a abordagem do Acordo Ortográfico de 1990, acerca do qual o autor assume um posicionamento profundamente crítico. A questão torna-se relevante, dada a forma como o autor associa a visão da variedade brasileira à visão do acordo (p. 16) - Igualmente digna de nota me parece ser a questão da tradução da variedade portuguesa para a brasileira e vice-versa, aspecto que, aliás, segundo o autor, demonstra a ineficácia do AO. Parece-me a mim, especialmente relevante o papel da tradução na mediação linguística e cultural não só entre línguas, mas entre variedades da mesma língua. - Falando ainda de tradução entre variedades, a referência a outras variedades do português é também matéria a destacar neste texto. de especial interesse para mim é a referência ao Galego, que, contudo, o autor, por perspetivar o Galego de forma diferente de mim, não apresenta como uma variedade , mas sim como uma “língua próxima” (p. 102). Destaco a noção de comodidade / incomodidade de cada falante um numa ou noutra variedade, do sentir-se ou não “em casa” em cada uma, que justifica a tradução nestes casos, passo a citar (p.104): “para uma leitura fluida e aprazível, o leitor deseja um texto na sua norma, isto é, que não esteja continuamente a confrontá-lo com materiais e giros frásicos que não são os seus” (fim de citação). Conviria talvez acrescentar, em jeito algo provocatório, que, no caso, do galego, a diversidade de normas do galego pode reproduzir também essa sensação de desconforto ao ler em galego, mas essa já é outra discussão... Poderia continuar com outras notas soltas, mas julgo que é tempo de ir encerrando, para dar espaço ao autor e ao texto, não sem antes voltar a vincar o seu valor de percorrer de forma amena uma situação de contacto através de um estudo contrastivo apoiado por amostras de língua de diferentes épocas e colhidas em diferentes fontes. Esta abordagem amena não invalida, no entanto, a adequada descrição linguística de uma situação de influência que afeta sobretudo o léxico e não apagando tampouco o suporte teórico de certos linguistas de certos textos metagramaticais. O texto permite ainda revisitar a avaliação desta situação no passado, através de textos publicados entre 1984 e 2000, e comprovar como evoluiu o significado social das percepções que o tempo foi gerando e a própria avaliação deste contacto linguístico que o autor crê que se orienta, no futuro, para a diferenciação das variedades implicadas. A dado momento, e com isto termino, Fernando Venâncio (p. 93) esboça o cenários distópico que permitiria caminhar em sentido contrário de aproximação ao Brasil: “Realmente, em termos de eficácia, só tratando de nos mudarmos todos para lá. Lisboa ficaria finalmente, por um golpe de graça uma cidade habitável. Desgraçadamente, abandonaríamos as jóias de Évora, Sintra e Vale do Douro à ganância castelhana. O que era, convenhamos, um preço gigantesco, mesmo para a regeneração de um idioma.” Obrigada pela vossa atenção! UNICEPE (12 de abril , 18 horas) |
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