UM OUTRO MUNDO AO VIRAR DA ESQUINA
Habituamo-nos a pensar que a Europa e o Ocidente dominam e controlam o mundo e a sua riqueza há tantos séculos, como se isso fosse a coisa mais natural da vida, que nem nos damos conta do erro de perspetiva que cometemos. A globalização vai fazer do séc. XXI a era dos grandes espaços geoestratégicos a nível político e comercial. Conseguirá a União Europeia (como expressão política da Europa) ser um deles, com voz própria? Os Outros – que não os europeus – começam a não acreditar: nem os americanos apostam na Europa (nomeadamente, nos últimos tempos), e até mesmo os orientais torcem o nariz (o jornal mais lido da Coreia do Sul sugeria, em 2010, que a Europa corre o risco de se transformar numa “nulidade política” – Brzezinski, ob. cit., pág.159). A Europa tem quatro problemas de difícil resolução e que dificilmente ultrapassará; simplesmente, ninguém fala deles preferindo enterrar a cabeça na areia. Elenquemo-los. Com sociedades avançadas, a Europa está a criar uma desigualdade social interna crescente, não tão grave – apesar de tudo – quanto nos EUA. Penso que foi o sociólogo norte-americano Robert Reich que lançou o alerta nos seus estudos nos anos 60/70 do séc. XX: 1/5 das sociedades ocidentais é cada vez mais rica, 4/5 pauperizam cada vez mais. Lentamente, o pensamento de Reich foi secundado por outros investigadores: o inglês Paul Kennedy (“Desafios para o século XXI”, págs.76/77) e o francês E. Todd (“Após o império”, págs.81/84) até se tornar, hoje, uma ideia comum. A disparidade de rendimentos, assim crescentemente cristalizada, vai ter outra sequela visível: a mobilidade social desaparece (isto, hoje, é evidente nos EUA) e os estratos sociais vão-se esclerosando, assim se perpetuando. Dito de outra forma: em regra, continua rico quem é filho de gente rica; perpetua a pobreza quem é filho de pobre, replicando-se, destarte, o regresso dos “estados” feudais. Os serviços públicos subsidiados e o rendimento social de inserção são – nos países que os têm – uma panaceia para minorar o problema; mas, se a crise económica se agudizar e o dinheiro faltar, essa solução vai entrar em panne. Nos EUA, a enorme mobilidade social de antigamente atenuava ou superava os efeitos da desigualdade de rendimentos; hoje, com o desaparecimento dessa mobilidade, a situação complicou-se: cerca de 200 milhões de americanos (ou seja, 63% da população) subsistem no limiar da sobrevivência económica (Mahbubani, ob. cit., págs.120/121 e Brzezinski, ob. cit.,págs.65/67) porque a disparidade de rendimentos já não é compensada por uma mobilidade social que se perdeu. A disparidade de rendimentos destrói a coesão social e, com o tempo, destrói a solidariedade interclassista de um país; inicia-se, então, a época do “salve-se quem puder”, lembrando a fase final de Roma, principalmente depois da catástrofe de Adrianópolis. Mas o maior problema da Europa (e da União Europeia) é o demográfico, de que ninguém quer falar. A Europa reproduziu-se muito desde o ano 1000 até 1950 (com exceção do séc. XIV com as várias “pestes negras”, e do séc. XVII com a crise estrutural de 1620-1680 que a pauperizou); a tal ponto que em 1950 – data da paragem do seu crescimento demográfico – a Europa (continente pequeno quando comparado com os outros) tinha cerca de 22% da população mundial quando tudo indica que, em 2050, terá tão-só 8%. Em 1950, a Europa tinha o dobro da população da África; em 1990, tinha menos população que a África; em 2025, terá cerca de 1/3 da população africana. Em sintonia com isso, os cinco países europeus do anel mediterrânico (de Portugal à Grécia) crescerão cerca de 5 milhões de habitantes entre 1990/2025, o que não é nada, enquanto os cinco países magrebinos (de Marrocos ao Egito) crescerão cerca de 105/110 milhões de habitantes (Paul Kennedy, ob. cit., págs.39 e 58). Se pensarmos, por um lado, que uma das fronteiras da Europa é o Magreb (Braudel designava a Península Ibérica e o Magreb de “Bi-continente” porque durante séculos formaram um espaço político-cultural só quebrado no séc. XVI) e – indiretamente – a África subsaariana, e, por outro lado, que a colonização novecentista europeia se centrou muito nessa África, teremos muito da explicação para os recentes movimentos migratórios em direção à Europa. Atualmente, a população da União Europeia ronda os 450 milhões de pessoas (a da Europa terá mais 80-100 milhões), mas lá para o fim do século ela será sensivelmente a mesma, o que significa que, por esse tempo, a Europa estará envelhecida e com uma completa distorção da pirâmide etária; exatamente por isso, Brzezinski já chamou à Europa de “lar de idosos mais confortável do planeta”. Em contrapartida, por essa mesma época, Ásia e África terão – cada uma delas – cerca de 4500 milhões de habitantes, ou seja, dez vezes mais do que a União (Mahbubani, ob. cit., págs.94, 108 e 109). Para que haja paridade de reprodução demográfica cada mulher deve ter 2,1 filhos; na Europa, essa taxa de reprodução é negativa em todos os países, atingindo valores perigosamente baixos em alguns deles, nomeadamente em Portugal. No nosso país, com taxas reprodutivas oscilando entre 1,2 e 1,3 – associadas à emigração de gente nova e em idade fértil (principalmente aquando da crise de 2008) – aumentou substancialmente o perigo de nos aproximarmos de um ponto de não, ou difícil, retorno. Com uma paisagem demográfica assim, esta Europa que todos conhecemos não existirá mais dentro de duas gerações. A grandeza da Europa foi sendo laboriosamente construída desde os sécs. XV/XVI em diante a partir de dois fatores: grande reprodução demográfica que levou os europeus a todos os cantos do mundo (só entre 1846/1930 emigraram 50 milhões de europeus – P. Kennedy, ob. cit., pág.56); separação entre fé e ciência (assente na redescoberta da racionalidade greco-romana da antiguidade) que permitiu o desenvolvimento da tecnologia científica e a posterior superioridade militar sobre os Outros. A coadjuvar tudo isto, a descoberta da América deu à Europa uma enorme reserva de matérias-primas (nomeadamente em ouro e prata) que permitiu a acumulação de capital que foi o fundo de reserva para os investimentos vindouros. Alguns exemplos ilustram esta questão. O primeiro: a reconquista da Península Ibérica aos árabes fez-se, na maior parte, pela décalage demográfica. Como é frequente, o califado de Córdova – rico, culto, hedonista e hegemónico – deixou de se reproduzir; em compensação, os cristãos pobres e incultos do norte da Ibéria reproduziam-se imenso. A inversão demográfica na Península deu-se por meados do séc. XI: antes dela, os cristãos eram derrotados com frequência em batalhas catastróficas (Zalaca, Alarcos); depois dela, e com o alargamento do fosso populacional a favor dos cristãos, a reconquista tornou-se imparável, nomeadamente após Navas de Tolosa. O segundo exemplo: a política do filho único na China. O filho único foi a opção política de um país ainda pobre e com uma população interminável; ou seja – e seguindo a máxima malthusiana – todo o aumento de produtividade e riqueza era sempre comido por um aumento populacional que lhe era superior. Limitar a reprodução foi a solução, ainda que à custa de muita gente nascida mas sem identidade legal porque subtraída aos registos oficiais. Simplesmente, o aumento demográfico muito rápido da Índia (adversário político) mudou a agulha; e porque o crescimento económico chinês entretanto disparou, tornou-se possível permitir o segundo filho cujos custos ficam aquém daquele crescimento. Um país ou uma civilização não se tornam dominantes só porque têm muita população; mas nenhum deles é dominante se – no início e no decurso do seu processo expansivo – não tiver grande reprodução demográfica que crie riqueza e que exporte gente e ideologia para outras paragens e outros mundos. É, também, esta perceção que está por detrás do fim da política do filho único. Mas o exemplo mais significativo da atualidade, talvez seja o russo. Há 20/30 anos a União Soviética/Rússia estava em queda demográfica acentuada a ponto de a CIA prever a dissolução a curto prazo da importância da Rússia. Mais: na década de 1970, a URSS percecionou o imbróglio que se desenhava (por causa disso) porque a composição do seu exército tinha uma proporção desequilibrada entre eslavos e islâmicos. Na sua recente obra, “Onde estamos?”, o francês E. Todd (para nós um dos mais impressionantes pensadores atuais), dá-nos a visão da revolução que – até no campo demográfico – Putin trouxe à Rússia. A Rússia tem, hoje, uma taxa de reprodução demográfica superior à média europeia, á Alemanha, Itália, Espanha, e centrada na política de apoio ao segundo e terceiro filhos; o aumento da fecundidade, conjugado com a baixa de mortalidade e a imigração para a Rússia de trabalhadores e de estudantes provindos dos países da Ásia Central, Cáucaso e da Ucrânia que integravam o antigo espaço soviético, levou a que a taxa de crescimento populacional voltasse a ser positiva em 2009 (págs. 474/475). A Europa tem uma enorme dificuldade em gerir este bico-de-obra, ou seja, a questão demográfica: ninguém a discute. E ninguém a discute por vários fatores associados: por um lado, qualquer solução tem que ser estruturante, de longo prazo, consensual, coisa que não encaixa no período curto das legislaturas e não traz, por isso, dividendos imediatos; doutro lado, os objetivos económicos ditatoriais (em que se centram, em regra, os programas partidários para as legislaturas) levam à contínua contração salarial, à precariedade e à insegurança de emprego, o que fecha a porta à vontade de ter filhos. Mais: discutir a questão demográfica implica trazer a Mulher para o centro da discussão – com voz ativa – porque ela é o pivot fulcral para a solução; estaremos preparados para isso? O terceiro problema europeu tem que ver com a crescente dificuldade em aceder às grandes reservas mundiais de matérias-primas. Com a expansão europeia, o Ocidente foi controlando crescentemente essas reservas porque ocupou, sucessivamente, as Américas, a Ásia e a África. O fim do colonialismo europeu após a 2ª Grande Guerra e, depois, o fim do neocolonialismo ocidental secaram as fontes de acesso que tínhamos. As grandes reservas estão na Rússia, Cáucaso, África Central e do Sul e China (esta, quanto às Terras Raras, ou seja, quanto aos metais necessários à alta tecnologia moderna); isto significa que deixamos de chegar onde queríamos e precisávamos. O problema das Terras Raras é sintomático. A China detém, talvez, mais de 90% das reservas conhecidas e o resto está no centro de África e na Ásia, o que explicará algumas das explosões insurrecionais induzidas que ocorrem em África de vez em quando; aliás, uma revista de missionários católicos combonianos de origem italiana (“Além-Mar”) já teve a coragem de denunciar a proveniência dessas explosões para melhor controlar o que se quer, insinuando a provável identidade dos seus autores. Alta tecnologia militar ou telemóveis de última geração, tudo exige Terras Raras o que nos dá a dimensão deste imbróglio. Das taxas e sobretaxas com que a Administração Trump agravou a importação de produtos chineses, as Terras Raras foram excluídas até porque – penso que não erro – cerca de 80% delas provêm da China; taxá-las seria encarecer o produto final americano. Entretanto, a China, sintomaticamente, foi enviando o recado por aquilo que lemos em “sites” internacionais: a venda de Terras Raras para os EUA, às tantas, acaba ou é drasticamente reduzida no âmbito da guerra comercial que os dois países mantêm. É este mesmo problema que potencia a recente discussão sobre o Ártico e a sua exploração. Não está em causa, apenas, a provável navegabilidade do Ártico, a médio prazo, por causa do aquecimento global e do degelo, e que permitirá à Rússia (ela, que só tem acesso a um grande oceano – o Pacífico) aceder, igualmente, ao Atlântico; é, também, a questão da exploração das reservas de metais que aí existem e que se situam em zonas atribuídas aos EUA, Canadá, Dinamarca, Noruega e Rússia (a parte russa tem sensivelmente o tamanho da Índia). O romance da compra da Groenlândia insere-se neste filme. Por fim, a quarta questão: a provável implosão da União Europeia porque ela é incapaz de se federalizar. Quando os romanos dividiram o seu império em duas partes (o império do oriente e o do ocidente) criaram, a prazo, três Europas diferentes, dificilmente redutíveis entre si e com marcadores ideológicos frequentemente contrastantes: a oriente, nasceu a Europa bizantina, helenística, ortodoxa, aberta às influências vindas da Ásia de que estava tão perto, e escrevendo em regra em alfabeto próprio (grego ou cirílico); a ocidente, ficou a Europa latina, católica, que o tempo tornou transatlântica, a empobrecer porque lhe faltava a riqueza vinda do oriente, e que desapareceu no séc. V com o dilúvio das invasões bárbaras mas mantendo a memória cultural do seu passado de grandeza porque os Papas substituíram eficazmente os Imperadores; a norte e fora dos impérios – ou seja, a norte da fronteira Reno/Danúbio – ficou a Europa dos povos não romanizados que, entretanto, se foram aculturando com os do sul/sudoeste, que com o tempo se tornaram utilitaristas, pragmáticos e economicistas e que – à data dos grandes cismas religiosos – se tornaram protestantes, abrindo a porta à liberdade religiosa, à liberdade comercial e à liberdade de navegação. É óbvio que há exceções a este mapa tripartido (a Polónia será uma); mas se a grande fratura da Europa passa pelos Balcãs é porque foi aí que os romanos fixaram a fronteira entre os seus impérios, facilitando aculturações diferentes a povos que – sendo aparentados – se diferenciaram com o tempo porque se sedentarizaram a oriente ou a ocidente dessa fronteira (o caso dos sérvios e croatas é, talvez, paradigmático). Federalizar mundos tão díspares em meio século (tempo de vida da União Europeia) era quase impossível, até porque a tradição europeia do estado-nação dificulta o federalismo e potencia o nacionalismo; mas nada tem sido feito verdadeiramente a favor de um estado federal europeu, o que nos remete para um tempo futuro onde as dificuldades político-económicas da União, a agravarem-se, tenderão a acelerar a sua pulsão fragmentária. Os EUA são um estado federal porque tiveram na sua génese (e na complicação que era a diversidade de origens díspares de imigrantes que rumaram da Europa para a América) a guerra mais violenta da sua história, que desfez fronteiras, impôs regras e fixou parâmetros que o tempo consensualizou: a Guerra da Secessão que provocou 620.000 vítimas, um número superior a qualquer outro sofrido pela América noutro conflito, nomeadamente no do Vietname. Não se esperava, nem se deseja que uma Europa federal tenha uma incubadora similar; daí a perplexidade que experimentamos neste vazio que permanece em surdina. Quando Bismarck unificou a Alemanha, no séc. XIX, o que fez não foi senão criar um grande espaço político-económico que permitisse aos povos alemães federalizados ser um país enorme à época, poderoso, assente no capitalismo industrial que se manifestasse em toda a sua força num território grande e populoso, e não voltasse a estar à mercê de qualquer outra pulsão imperial “napoleónica”. Antes da unificação, os alemães estavam divididos em cerca de 40 estados fracionados em ducados, principados, reinos, eleitorados; e os países grandes (à época) eram a Inglaterra insular e a França continental já que a Áustria-Habsburgo era um caldo de cultura de dezenas de nacionalidades sempre à beira da desunião. Hoje, a situação da Europa faz lembrar a daquela Alemanha: num mundo globalizado onde as coisas grandes se tornam pequenas, a Europa só sobreviverá se criar um espaço político e comum à escala do mundo global. Estamos em crer que, infelizmente, a União Europeia se vai dividir a prazo a partir do seu centro, ou seja, da Alemanha a norte e da Itália a sul; diríamos, a partir dos países que têm, ou querem ter, o “Stream” (o North e o South Stream). O que está por detrás disto são visões antagónicas. De um lado, os EUA querem a Europa alinhada como um bloco a negociar – se possível – só consigo, desligada da Ásia, e agindo sob a sua alçada seja quanto a sanções aplicáveis à Rússia, seja quanto a outras medidas a futurar; repare-se que a extensão da Nato não tem – para os EUA – apenas um objetivo de alargamento militar mas, também, de ampliação do mercado de vendas quanto ao armamento vendível aos novos países aderentes. A menos que os EUA assumam aquilo que, também, é previsível: uma aproximação tática à Rússia para conter o avanço chinês, reequilibrando o poder mundial ao sentir que o seu próprio poder deixou de ser dominante. Mas a Europa continental, não saxónica, cada vez mais autónoma porque as Grandes Guerras já foram há muito e o mundo multipolar alarga o leque das alianças possíveis (sejam elas comerciais ou de outro género), essa Europa é cada vez menos seguidista ou dependente; na atualidade, a líder visível desta Europa é a Alemanha. Se forem verdadeiras as notícias que lemos – em “sites” internacionais – dando conta das declarações de primeiros-ministros de vários estados federados alemães (Saxónia, Turíngia, Pomerânea Ocidental) manifestando-se contra as sanções á Rússia, perceber-se-á melhor o que se disse; até porque a Rússia tem reservas de matérias-primas incomensuráveis e não é conveniente, nem justo, nem pragmático que só os asiáticos beneficiem delas. Singular, é a posição da Inglaterra, indecisa a meio da ponte, sem saber bem o que fazer como resulta do Brexit. Por um lado, muitos britânicos acham que, hoje, o lugar natural da Inglaterra é na Europa, mantendo, embora, laços especiais com os EUA; doutra parte, muitos britânicos não querem a Inglaterra numa União hegemonizada pela Alemanha (a grande vencida das duas guerras), por medo e por falso pudor. Medo de um regresso ao passado que não se quer; falso pudor, por capitulação dos vencedores. Relembre-se que as duas Grandes Guerras destinaram-se – também – a responder a esta pergunta: quem manda no mundo, os germânicos ou os saxónicos? Ganharam os saxónicos, mas – hoje – a mãe-saxónica não quer ficar a reboque da vencida de ontem; como assim, o Brexit transformou-se num romance que pode levar à fragmentação da antiga dona do mundo. Parte do que dissemos é o que pensadores liberais norte-americanos temem que o futuro lhes traga; sirva de exemplo Brzezinski na obra referida. Ainda que não consiga admitir que a América perderá provavelmente as rédeas da História, ainda que pense curiosamente que é possível alargar o espaço político/cultural/geográfico do Ocidente englobando nele – e de vez – a Rússia e a Turquia criando, destarte, um Ocidente que iria da América do Norte até Vladivostok, Brzezinski teme, com razão, que a Europa se frature definitivamente a oeste dos Balcãs com a Alemanha, a Áustria (ou seja, os povos alemães) e a Itália viradas a leste, a França a boiar numa indecisão sem garantias fiáveis até descobrir uma linha de rumo, e o Atlântico – isto, Brzezinski não diz – deixando de ser a grande autoestrada marítima do mundo que passará a ser o Índico e o Pacífico Sul quebrando de vez os compromissos transatlânticos, que é como quem diz fraturando a estrutura nuclear do Ocidente. Os saxónicos não querem perceber que as duas Grandes Guerras também trouxeram uma profunda humilhação aos vencidos, transformados em protetorados de décadas: os alemães, ocupados e divididos, a quem fizeram o que o Congresso de Viena nunca fez à França no fim das Guerras Napoleónicas (a França foi admitida no Congresso como parte, embora vencida), que já em 1923 (porque não conseguiam pagar a dívida leonina da 1ª Grande Guerra) foram invadidos por tropas francesas que ocuparam o Ruhr para (se necessário) o “confiscar” por ordem do Primeiro-Ministro francês Raymond Poincaré (leia-se o texto de Tony Judt em “O século XX esquecido”, sob o título “A catástrofe: a queda da França”, pág.190) e que, hoje, reunificados, querem comerciar com quem lhes convém e segundo a política que lhes interessa; os japoneses, os únicos a sofrer, até hoje, os efeitos de um bombardeamento nuclear sobre civis violando as Convenções de Genebra e que sonham, se possível, com um novo renascimento Meiji sem nenhuma Madame Butterfly de permeio. O que nos parece evidente é que o tempo do Ocidente está terminando, e que a recomposição de novos centros de poder se está fazendo, a oriente, a uma velocidade superior à previsível. Repare-se neste pormenor: em 1995, os sete países do G-7 (os sete grandes, todos ocidentais, excetuado o Japão) contribuíam com 45% do PIB mundial enquanto os sete países emergentes do E-7 (China, Índia, Rússia, Indonésia, Turquia, Brasil e México) contribuíam com 22,5%, ou seja, com metade; em 2015, vinte anos depois, o G-7 baixara a sua percentagem para 31,5% enquanto a do E-7 subira para 36,3% (Mahbubani, ob. cit., págs. 40/41). E isto, para nosso bem? Ou para nosso mal? A terminar, salientemos três pontos. Primeiro ponto: face à história do mundo, ao domínio do Ocidente que dura apenas há 200 anos e parece, agora, empalidecer, textos laudatórios e sentenciosos sobre o supremacismo ocidental como os de Fátima Bonifácio e João Miguel Tavares são mais que dispensáveis; lembram o equívoco do “fim da história” de Fukuyama, de há trinta anos. Espantoso – sim – é que, 50 anos após a Europa dominar o mundo, tenha surgido a primeira teorização pseudocientífica do racismo pela pena de um francês, Gobineau, com o seu “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”; ou seja, mal chegámos ao poleiro, teorizamos o racismo. Valha-nos ao menos outro francês, escritor, de origem tunisina – Albert Memmi – para lermos dos mais belos textos jamais escritos contra o racismo. Segundo ponto: pensamos, todos, que o Ocidente, ao dominar o mundo, pôs ordem na desordem do mundo. O italiano Giovanni Arrighi tem, sobre isto, uma obra que nos tira as ilusões: “Adam Smith em Pequim”. A história europeia, conhecemo-la nós: desde a Idade-Média (e pior ainda, desde o séc. XVII) a Europa andou em guerras sanguinárias, constantes e – quantas vezes – de rapina; celebramos, hoje, a paz que dura desde a 2ª Grande Guerra porque não há memória de coisa igual no nosso continente. Em contrapartida, no tempo áureo da riqueza da Ásia (diz Arrighi) os períodos de paz, nesse continente, oscilavam por 100, 200 e 300 anos. Ou seja, enquanto na Europa a regra era a guerra e a exceção era a paz, na Ásia as situações estavam invertidas: vivia-se normalmente em paz. Pensar, pois, que – sem nós – não há ordem no mundo talvez seja estultícia. Terceiro ponto: e no mundo do direito, haverá alguns efeitos? Claro que sim, se é que eles não são já visíveis. Civilizações hegemónicas que entram em decadência têm, em regra, dois reflexos condicionados: uma pulsão securitária que tende a limitar ou excluir a pulsão da liberdade porque a sua memória histórica mitifica (e mistifica) um “eldorado” que se perdeu e que serve de bússola ao aparecimento de ideologias consistentemente conservadoras; uma pulsão fragmentária que põe a nu as linhas de fratura há muito existentes mas que o “bom tempo” dissimulava. A pulsão securitária excessiva contém dois perigos latentes: à uma, a tendência para reduzir o leque dos direitos fundamentais segundo parâmetros crescentemente restritivos; de outro lado, a tendência para manipular “a la carte” a investigação criminal de acordo com objetivos pré-fixados. E este é o início fundador do fim e morte dos países multiculturais: o que acontece, hoje, no Brasil com o Lava-Jato, a delação premiada e o conúbio entre juiz de instrução, procuradores federais e polícia federal para preordenar a investigação criminal com um objetivo político já escolhido, reconduz-nos ao filme genial de Orson Welles, “A sede do mal”. É que os tempos modernos estão de feição porque, com o Ocidente em queda, os sistemas clássicos de regulação da sociedade são atingidos, a começar pelo sistema político (vejam-se, para já, os casos espanhol, francês, italiano e, provavelmente, norte-americano). Quem se dedica à política é, então, diabolizado e igualizado por baixo sob o anátema do compadrio, da falta de qualidade e da corrupção; a redenção faz-se pelo endeusamento de quem os persegue criminalmente, de quem os investiga preparando a catarse punitiva numa réplica de mau gosto das tragédias da antiga Grécia. Simplesmente, a investigação criminal, ela própria, também pode ser manipulada porque se exercita através de um conjunto de poderes frequentemente discricionários que – se não forem controlados – se convolam facilmente em arbitrários; e o arbitrário confunde-se, quantas vezes, com o abuso de poder. Abordei superficialmente esta temática em três textos, um deles publicado no nº 123 do “Referencial”. Mas – se o tempo continuar de feição – voltarei a ela, mais explicitamente e mais alongadamente, ainda que o cabo continue a ser das “Tormentas” e não da “Boa Esperança”.
LUÍS ANTÓNIO NORONHA NASCIMENTO |
O MUNDO JÁ NÃO ESTÁ AOS PÉS DO OCIDENTE
A União Europeia (ou a Europa, que quase coincide com aquela) está em crise, e os EUA não estarão muito melhor – tal é a perceção generalizada que se difunde. Na verdade, a União Europeia dá sinais preocupantes de caminhar para a sua fragmentação com crises nacionais consecutivas que se vão agravando, não consegue ter políticas comuns em sectores vitais (veja-se o caso das migrações), tem um discurso oficial anti-paraísos fiscais mas permite-os no seu seio em números impensáveis, teve como Presidente da Comissão Europeia alguém que os criou, e encontra na Rússia de Putin um inimigo comum cuja diabolização se pretende ser a argamassa da União. Entrementes, a Ásia cresce vertiginosamente em riqueza enquanto a Europa marca passo, o Médio-Oriente transformou-se numa charneira de confronto, a Rússia está (tudo indica) numa paridade militar com os EUA e a China vai-se aproximando, o mundo deixou de ser bipolar e a sua multipolaridade retira-nos as rédeas da História, e espreita-nos o perigo de um ataque ao sistema monetário saído de Bretton-Woods com a possível convertibilidade em ouro de moedas de países asiáticos. Compreender as grandes linhas da política internacional contemporânea obriga-nos a recuar para lembrar o que se esqueceu. O Muro de Berlim caiu em 1989; dois anos depois, em 1991, fragmentou-se a União Soviética. Nesses anos decisivos, pouca gente – a Ocidente e a Oriente – terá percebido o que estava a acontecer, tal a alteração profunda nas relações de força da política internacional e tal a perceção de que não era possível que um bloco político aparentemente coriáceo pudesse cair como um baralho de cartas. Em 1995, os norte-americanos convencem-se de que, com o desaparecimento da União Soviética, o mundo se tornara unipolar, e o Ocidente – com os EUA à cabeça – continuaria a ser o seu dono; é a época do slogan universalizado com a frase “ganhámos a 3ª Grande Guerra”, ou seja, ganhámos a Guerra Fria. 1995, é, pois, a data da opção imperial americana, como escreveu E. Todd na sua premonitória obra “Após o império” (pág.131). Dois anos depois, em 1997, o antigo secretário de estado norte-americano da Administração Carter, Zbigniew Brzezinski, publica uma obra incontornável para se perceber o mundo de hoje; obra que cristaliza aquela opção imperial e que fixa os parâmetros do que deve ser a política internacional dos EUA: “The Grand Chessboard” (“O grande tabuleiro de xadrez”). O que Brzezinski diz é, em resumo, o seguinte: o séc. XXI vai ser o tempo da Ásia, com a maioria da população mundial residindo na Ásia, com a riqueza do mundo situada na Ásia, com a maioria das grandes reservas mundiais de matérias-primas sediadas na Ásia (Cáucaso, Rússia e China); a Ásia vai ser o centro do mundo, no centro da Ásia está a Eurásia e no centro da Eurásia está a Rússia; daí que o interesse dos EUA passe por fragmentar a própria Rússia, afastar dela os novos países islâmicos independentes que integravam a antiga URSS (Uzbequistão, Cazaquistão, Quirguistão) inserindo-os na esfera asiática de influência americana e, por fim, trazer definitivamente para a esfera ocidental a Ucrânia que será um peão avançado da nova estratégia (E. Todd, ob. cit., págs.133 a 136 e 165/166). Por detrás do pensamento de Brzezinski está esta ideia fundadora: os EUA só continuarão a ser dominantes se tiverem acesso às enormes reservas russas de matérias-primas e, por via disso, conseguirem chegar ao centro da Ásia; mas, para tanto, a Rússia (que está fragilizada) tem que desaparecer como grande potência e tornar-se um satélite oculto dos EUA. Quem tiver lido “As Cartas de Inglaterra” de Eça de Queiroz encontra, aí, algo de parecido. Numa delas (a décima, intitulada “O Brasil e Portugal”), ao comentar as teses britânicas sobre o direito a que se arrogam os países desenvolvidos de se apropriar das matérias-primas dos países subdesenvolvidos (no caso, os países sul-americanos) porque estes não as sabem administrar – tese defendida no jornal inglês “Times” – Eça escreve textualmente: “ O Times aqui embrulha-se. Prefiro explicar a sua ideia, a traduzir-lhe a complicada prosa; quer ele dizer que se aproxima o dia em que a civilização não poderá consentir que tão ricos solos, como os dos estados do sul da América, permaneçam estéreis e inúteis, e que, se os possuidores atuais são incapazes de os fazer valer e produzir, para maior felicidade do homem, deverão entregá-los a mãos mais fortes e mais hábeis. É o sistema de expropriação por utilidade de civilização. Teoria favorita da Inglaterra e de todas as nações de rapina.” (fim de citação, com sublinhado nosso). O programa “Brzezinski” começou a ser cumprido com o início da fragmentação da Rússia através da independência da Bielorrússia, que nunca existira como estado independente; continuou, a seguir, com a guerra da Chechénia que não atingia já o núcleo central da Rússia, mas regiões ligadas, de há muito, a esse núcleo. De permeio, o Quirguistão e o Uzbequistão (essencial como plataforma de influência em toda a Ásia Central, nas teses de Brzezinski) acolheram bases militares americanas mas o Cazaquistão permaneceu imune, até porque a sua parte norte é habitada por população russa. Foi, então, que a Rússia infletiu a sua política: reformou Ieltsin, travou o desenfreado neoliberalismo nascente e levou Putin ao poder. O que Putin tem feito é desmontar, passo a passo, a estratégia Brzezinski. À força, Putin resolveu a guerra da Chechénia e a questão da autonomia/independentismo da Ossétia do Sul no conflito iniciado pela Geórgia; depois, com tempo, foi recentrando a influência política russa na Ásia islâmica conseguindo a saída das bases militares americanas do Quirguistão e do Uzbequistão. Em contraciclo, surgiu, em 2014, a questão da Ucrânia – talvez tarde de mais – e que vem referenciada na obra de Brzezinski como capítulo importante. A Ucrânia é um terreno movediço de confronto entre o eslavismo russo a leste, e a ortodoxia ucraniana no centro e uniata a poente, com eleições pluripartidárias a dar vantagem ora a um lado, ora ao outro. Em 2014, depois da vitória dos russófilos, alemães e polacos “subsidiaram” o golpe da praça Maidan onde o nome de Stepan Bandera (o chefe nazi ucraniano da 2ª Grande Guerra) era constantemente ovacionado (cfr. Viriato Soromenho Marques em “Portugal na queda da Europa”, pág. 254). Para atalhar a maiores desenvolvimentos, Putin agiu de imediato: secessionou a Crimeia (patamar militar essencial para o Mar Negro e Mediterrâneo oriental); anexou-a à Rússia invocando o direito de autodeterminação dos povos previsto na Carta da ONU, e legitimado (a seu ver) pelo referendo efetuado porque a maior parte da população da Crimeia é russa; secessionou de facto o leste russófilo de Donbass (Donetsk e Lugansk, ou seja, a parte mais rica da Ucrânia); preparou-se para formar, a partir daqui, um corredor contínuo passando por Mariupol até ao mar Negro, mas deixou a situação apodrecer com a paragem que, entretanto, os alemães fizeram, esperando que o tempo jogue a seu favor. O quadro descrito explica toda a problemática centrada, hoje, à volta da Nato. A Nato é uma organização militar defensiva transatlântica; mas, se o futuro do mundo está na Ásia e na sua riqueza, a manutenção da hegemonia americana implica a sua presença na Ásia com o apoio da força militar. Transportar a Nato para a Ásia é impensável porque (sendo uma coligação defensiva e atlântica) isso seria uma provocação aos orientais; ademais, o seu financiamento traria custos enormes num continente longínquo. Criar uma nova coligação militar no Oriente seria a solução; mas, com quem? É difícil futurar sobre isso: alguns dos aliados pensáveis têm a sua economia dominada em grande percentagem pela China (Coreia do Sul e Singapura); outros, estão no centro desse novo mundo com programa político próprio (Rússia, China e Índia); outro ainda, está a meio da ponte, indeciso, sem saber como digerir o trauma da bomba atómica e de ter sido um protetorado de décadas (Japão). Não se esqueça o que sublinha Samuel Huntington em “O Choque das Civilizações” (pág. 260): no ano de 1991, pela primeira vez, os americanos colocaram o Japão à frente da URSS como ameaça à sua segurança e, também pela primeira vez, os japoneses colocaram os EUA à frente da URSS como ameaça à sua segurança. Mas o Médio-Oriente é a zona de confronto visível deste choque; e o que acelerou todo o processo foi a existência de um novo estado (Israel), incrustado no centro geográfico de outra civilização como forma de resolver o problema bicudo criado pelos europeus, desde o início do séc. XIII, e que o nazismo exponenciara até à tragédia: o Holocausto dos Judeus. O nazismo não criou, sozinho, a tragédia; basta ler (de novo) a sexta das “Cartas de Inglaterra” de Eça, que se intitula “Israelismo” (e que, inicialmente, tinha por título “A perseguição dos judeus”), para se perceber que a questão vinha de muito longe, a tal ponto que Georges Duby – um dos grandes da “École des Annales” – situa à volta de 1200 o começo das perseguições que leva à marcação pública dos judeus para os discriminar (entrevista ao “L’ Express” de 17/3/1994). Hoje, todo esse imbróglio assumiu contornos preocupantes: para os árabes, Israel mais não é do que as cruzadas do séc. XX e, tal como na Idade-Média, têm tempo para as resolver porque o tempo joga a seu favor (cfr. o franco-libanês Amin Maalouf em “As cruzadas vistas pelos árabes”, 4ª edição, págs.308/310); para Israel, chegou o tempo da profecia bíblica da Grande Israel. Como assim, Israel tem que crescer demograficamente com a permanente vinda imigratória de judeus da diáspora, mas isto só é possível através da ocupação de mais territórios transformados em colonatos, o que conduz a um conflito sem fim. Hoje, a questão da Palestina não se resolve com teorias legitimadoras assentes seja na ocupação seja na usurpação do território, que serão sempre extremadas e de raciocínio reversível e levarão, provavelmente, à catástrofe, ou de uns, ou de outros. Neste ponto, a razão estará com os que defendem a tese dos dois estados (como a União Europeia), aceites reciprocamente, sob a égide da comunidade internacional, até porque a entrada em cena do Irão criou um tempo novo que não se pode escamotear. E porquê? Porque o Irão introduziu uma praxis nova a que o Ocidente não estava habituado, eficaz até agora, e fiel ao princípio do não-reconhecimento de Israel. O mundo islâmico vê a legitimidade do poder a partir da dicotomia sunismo/xiismo e não segundo os parâmetros que nós, ocidentais, damos por assentes. Para o xiismo, o poder deve ser exercido por alguém da família de Maomé porque ela foi escolhida por Alá; para o sunismo, o poder deve ser exercido pelo melhor, pelo mais capaz e, por isso, escolhido pela comunidade dos crentes como sendo o melhor. Esta cisão profunda que dividiu o mundo islâmico desde o séc. VII, tivera – por diferentes razões – uma expressão parecida no império romano quando se pôs a questão de saber quem devia suceder ao imperador: o seu filho biológico porque era da sua família sanguínea, ou o seu filho adotivo porque – na sua opinião – era o melhor, o “principal” (em latim, principal diz-se “princeps” que dá, nas línguas latinas, “príncipe”, ou seja, o herdeiro). A esmagadora maioria dos países islâmicos é sunita, mas o Irão é (desde o séc. XVI) o centro político-ideológico do xiismo, e inúmeros países sunitas têm no seu território bolsas importantes de xiitas, algumas delas exercendo o poder político. O que, hoje, o Irão está fazendo (a nosso ver) é unificar as bolsas de xiismo existentes em muitos países (principalmente sunitas) com uma ação uniforme e um objetivo comum; e, porque tem sido coerente e tem tido sucesso, o seu apoio está a alargar-se a países sunitas coisa que fez soar os alarmes nos EUA. Repare-se nesta sequência:
O Iraque nunca existiu como nação; o Irão é um estado-nação como a generalidade dos estados europeus. O Irão é a antiga Pérsia, a Pérsia islamizada na época sassânida e que se tornou, nos sécs. XVI/XVII, um dos três maiores impérios do mundo (o turco-otomano, o Irão-sefévida e o mongol que iam, em continuidade geográfica, desde as portas de Viena de Áustria até à entrada da China e ocupavam todo o norte de África, à exceção de Marrocos), o Irão-sefévida, que assumiu o xiismo como forma de identidade nacional em contraponto ao restante mundo islâmico; aliás, ainda relembro o que Óscar Lopes (o grande professor de Literatura) nos dizia (tínhamos 15/16 anos) quando salientava que a Pérsia irânica era a segunda subcultura mais importante no conjunto da cultura islâmica. O Irão não está sozinho na comunidade internacional; mantem há muito tempo tratados com países de cultura oriental (como refere Samuel Huntington, na obra referida, págs.280/281), que lhe dão apoio internacional, advindos do tempo em que no subcontinente do Indostão as alianças político-militares eram cruzadas: a vertical, entre URSS e Índia; a horizontal, entre Irão, China e Paquistão. Hoje, o Irão alargou-a à Rússia. O que o Irão tem feito, unindo e governando em rede as bolsas de xiismo num mundo maioritariamente sunita que se mostra paralisado, não é coisa virgem; aconteceu já nos sécs. X/XII com o poderoso califado fatímida (igualmente xiita) que, na sua expansão máxima, abrangia o Egito, Síria e Palestina, todos sunitas. Foi ele que iniciou a destruição dos reinos cristãos da Palestina (oriundos das cruzadas) após a batalha de Hittin; foi ele que produziu a lenda de um dos grandes chefes da época (Saladino), e que permaneceu no próprio imaginário europeu. No apogeu, o califado fatímida (sedeado no Cairo e situado entre os califados sunitas de Bagdad e Córdova) dominava – juntamente com Constantinopla – o espaço mediterrânico central e oriental. No Médio-Oriente começa a emergir a Rússia como a potência capaz de dialogar com todos os restantes intervenientes; começa mesmo a emergir uma tríplice aliança, impensável há anos, entre Rússia, Irão e Turquia. A aproximação Rússia-Irão não tem nada de anormal; ao contrário, a aproximação Rússia-Turquia é, para nós, uma autêntica quadratura do círculo onde é difícil ver um casamento a longo prazo. E porquê? Porque, desde o séc. XVIII, Rússia e Turquia foram inimigos figadais em constante fricção. Até ao czar Alepo (pai de Pedro, o Grande), a Rússia foi um país bizantino; Pedro abriu-a ao Ocidente, mas como? A Pedro – que compreendeu a mudança das relações de força na Europa após a Guerra dos Trinta Anos – interessava principalmente negociar e relacionar-se com a nova Europa, a Europa rica dos países marítimos do Norte: Inglaterra, Holanda e cidades portuárias alemãs. Para tanto, tinha que abrir caminho para o Báltico à custa da Suécia; foi o que fez com a chamada Grande Guerra do Norte. Nas terras adquiridas, fundou, então, a nova capital (S. Petersburgo) em sítio quase inacessível quer a um ataque marítimo do norte quer a um ataque terrestre do sul, porque o gelo, o degelo, os canais fluviais, as tempestades de neve eram um manto protetor perene. Cinquenta anos depois, Catarina, a Grande, mudou a agulha e iniciou a expansão russa para o Mediterrâneo; confrontou-se a partir daí com a Turquia otomana e iniciou uma animosidade político-cultural de quase dois séculos. A decadência do grande império otomano advém, em grande parte, deste confronto; e a Guerra da Crimeia, no séc. XIX, é um exemplo perfeito disso quando Inglaterra e França vão em socorro da Turquia para que o equilíbrio no Mediterrâneo oriental não se rompesse perigosamente a favor da Rússia. Toda a relação entre Rússia e Turquia está marcada por esse passado de confrontos e desencontros, nomeadamente na questão arménia; também por isso, a Turquia entrou rapidamente na Nato (cerca de três anos depois da sua criação) porque era, então, o pivot avançado do Ocidente contra o seu tradicional inimigo. Imaginar, hoje, a aliança cúmplice Rússia/Turquia é algo de estranho e difícil; a menos que a riqueza do mundo esteja a mudar, que os atores com acesso a ela sejam outros, que criem novos centros de poder e novas coligações internacionais, e que repensem com sucesso o quadro do direito internacional. Se tal acontecer, se Rússia e Turquia ficarem no mesmo barco, é quase certo que entramos num tempo novo. Ao contrário da leitura mediática “oficial”, ouso adiantar que alguns dos problemas atuais provêm de três opções da Administração Obama com sequelas negativas em termos internacionais. A primeira, já referida: a guerra da Síria. Pensou-se que se ia enxotar a Rússia do Mediterrâneo oriental (acabando com a base de Tartus) e se curto-circuitava a ligação Síria-Irão com a saída dos aiubitas do poder na Síria, aliviando a pressão sobre Israel. O resultado foi precisamente o inverso e o peso do Irão tornou-se visível, trazendo consigo a visibilidade do Hezbollah. A segunda opção reporta-se ao envio de drones para o Afeganistão e Paquistão que a nossa Imprensa esqueceu. Os drones destinavam-se a liquidar terroristas; mas tudo se tornou terrorista, e com isso os drones liquidaram civis a uma média diária inaceitável e inadmissível. Há meses, o “Público” trazia um longo artigo sobre o afastamento dos governos afegão e paquistanês em relação ao aliado americano e às suas posições na guerra contra o terrorismo, perguntando, até, se o Paquistão não estaria a afastar-se do Ocidente. Não se percebeu que por detrás dessa mudança estão os drones; e que os governos desses países questionam cada vez mais – quando entre os mortos estão frequentemente mulheres e crianças – se não sofrem já uma guerra demográfica encapotada destinada a parar o seu crescimento populacional que preocupa o Ocidente. Como assim, esses governos querem, obviamente, dialogar com guerrilheiros e talibãs – ainda que à revelia da vontade americana – porque doutra forma não veem luz alguma ao fundo do túnel. A terceira opção desemboca – a nosso ver – na questão da nuclearização da Coreia do Norte. A Administração Obama acelerou a transferência de armamento nuclear para as bases do Pacífico, o que é lógico segundo a doutrina Brzezinski; simplesmente, isto é uma provocação direta à China e, por isso, nada melhor que nuclearizar a Coreia do Norte como primeira linha de defesa nuclear da própria China. A partir daqui o diálogo entre americanos e norte-coreanos torna-se um jogo de equívocos: os americanos querem a desnuclearização da Coreia do Norte; esta quer a desmilitarização da Coreia do Sul porque, sem nuclear a norte, não faz sentido que haja bases estrangeiras a sul para defesa do sul. Entretanto, a China dobra a parada abrindo a porta a uma aproximação/fusão entre as duas Coreias, sabendo-se que a economia da Coreia do Sul é hegemonizada pela China e que, se isso acontecer, menos sentido fará a presença de bases estrangeiras na península. Ou seja, a China quer, no fundo, a saída das bases americanas da península e, doutra parte, avança com a ideia de que o bem-estar e o desenvolvimento económico aproximam vizinhos ou irmãos, diluindo as querelas; talvez um dia, vejamos igual filosofia replicada com Taiwan e o Japão. Mas o maior problema do Ocidente, a prazo, será o provável ataque ao sistema monetário saído de Bretton Woods. Bretton Woods consagrou o dólar como moeda internacional, aprofundando a hegemonia ocidental e transferindo para os EUA o centro do poder; mas, para tanto, fixou-se no Tratado a convertibilidade do dólar em ouro. Em 1971, com a Administração Nixon, os EUA – pressionados pelo défice permanente da sua balança comercial – decretaram a inconvertibilidade do dólar, violando o Tratado; anos depois, por acordo com a Arábia Saudita, impuseram o dólar como moeda obrigatória no mercado petrolífero mundial (o petrodólar) garantindo a estabilização da moeda. Mas o crescimento exponencial dos asiáticos começa a subverter o sistema e a fragilizar o dólar, dólar que, hoje em dia, será usado (supomos) em cerca de 70% das trocas internacionais, com o euro em segundo lugar e as moedas de países asiáticos a emergirem. Atualmente, a China suplantou os EUA como o maior comprador do petróleo saudita e paga-o na sua moeda, o yuan; o megacontrato de fornecimento de gás entre a Rússia e a China é pago nas moedas dos dois países segundo certa paridade; empresas energéticas russas que fornecem a Europa começam a não aceitar os pagamentos em dólares mas, sim, em euros; o sistema antimíssil S-400, russo, fornecido à Índia foi pago em rublos, e por aí fora num processo que tende a expandir-se. A posição americana, por sua vez, não ajuda à defesa do dólar. A sua recente política de revogar tratados que, antes, assinara e de aplicar unilateralmente taxas ou sanções económicas a torto e a direito, de acordo com os seus interesses, leva os países asiáticos a procurar, cada vez mais, uma moeda substitutiva para o mundo internacional dos negócios; no dia em que isso suceder, os efeitos económicos das sanções desaparecem. O perigo de, a prazo, e à medida que a sua moeda se impuser, a China decretar a convertibilidade do yuan em ouro é real; entre uma moeda convertível e outra que não é, qual a que prevalecerá? Obviamente, a convertível. É certo que a China é detentora, em grande quantidade, de dólares americanos e a “débacle” destes também a atingirá; mas tudo isto é um processo lento, dando tempo à China para se desfazer deles como, aliás, tem acontecido ciclicamente. Entretanto, China e Rússia vão aumentando as suas reservas de ouro prenunciando um tempo de que ninguém quer falar. É num quadro destes que a Europa vai ter que se movimentar, mantendo o euro como moeda internacional, tornando-o convertível se necessário, e mantendo a sua riqueza para o sustentar. Consegui-lo-á sem um estado federal? Em 28/3/2003, na altura da invasão do Iraque por causa das famigeradas armas de destruição massiva, o “Jornal do Fundão” publicou um texto nosso onde sugeríamos, na parte final, que a Europa devia decidir o que fazer com a Rússia: ou afastar-se dela empurrando-a para a Ásia, ou aproximar-se dela desligando-a da Ásia. A Rússia é um país geneticamente asiático mas, após Pedro, o Grande, miscigenado culturalmente com o Ocidente; daí que a Rússia passasse a ser vista como grande potência europeia, principalmente depois da Guerra dos Sete Anos com as vitórias do seu general Suvorov que, só por um acaso do destino (a morte da czarina Isabel), não deram cabo da grandeza da Prússia de Frederico II. Por isso, a história da Rússia é, de há três séculos para cá, o contraponto constante (em todos os setores da vida) entre a sua pulsão oriental e a sua pulsão europeia. Este contraponto marca o modernismo russo: na arquitetura e urbanismo das suas capitais, com S. Petersburgo lembrando as cidades italianas e do centro europeu, e com Moscovo, a sua arte bizantina, as pinturas dos Cristos Pantocrator e as cúpulas bulbosas das suas igrejas (S. Basílio, por exemplo) lembrando a ortodoxia oriental e as tendas dos nómadas das estepes; na literatura, com os dois génios fundadores do modernismo literário, o europeísta Pushkin e o eslavo Gogol, contemporâneos e amigos; na música, entre os europeístas como Tchaikovsky e Rachmaninoff e o Grupo dos Cinco (desde Glinka a Mussorgsky) buscando as raízes nacionalistas da música russa; na política, desde a abertura europeia de Pedro, o Grande, até ao regresso dos soviéticos à eslava Moscovo, para onde voltou a capital. De 2003 até agora, o Ocidente foi-se afastando da Rússia, diabolizando-a, na convicção de que o decurso do tempo a fragilizaria e ela acabaria por ser mais facilmente domesticável. O rápido crescimento da Ásia subverteu todas as previsões e a Rússia e China aproximaram-se a ponto de terem criado aquilo que é, hoje, o perigo visível do Ocidente: a OCX (a “Organização para a Cooperação de Xangai”). A OCX é um provável mercado comum asiático mas com caraterísticas diferentes: abrange países enormes em continuidade geográfica, com populações que são, já, cerca de 40% da população mundial, com reservas de matérias-primas imensas, com grande crescimento económico centrado na evolução tecnológica de vários deles, e que, dificilmente, outra região do globo acompanhará. Simultaneamente, a OCX pode ser o embrião de uma nova aliança militar em gestação, como já foi subliminarmente admitido. A OCX inclui, atualmente, Rússia, China, Índia, Paquistão, Uzbequistão, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão; à porta, para entrar, estão vários países entre os quais o Irão e a Bielorússia. Ou seja, o que vemos é a possível concretização dos piores receios de pensadores norte-americanos (Brzezinski e Kissinger) com a implementação rápida da Grande Eurásia num mercado enorme situado no coração do mundo; dito doutro modo, assistimos à globalização do mercado asiático do futuro do mesmo passo que o Ocidente se fecha em nacionalismos emergentes, com um afastamento progressivo entre os EUA e a Europa corroendo a aliança transatlântica, os EUA convencidos de que a Europa não tem futuro e a Europa sem perceber a deriva autocrática americana. Com a OCX, a influência americana na Ásia diminui e as repúblicas islâmicas da Ásia Central escapam a qualquer controlo extra-asiático; é a partir da esfera geográfica da OCX que poderá surgir uma nova moeda redesenhando o atual sistema internacional. Será este quadro que explica a nova política da Administração Trump? Política centrada no regresso a um isolacionismo mitigado sobre o conjunto do continente americano, no regresso a uma variante da doutrina Monroe, no uso da tecnologia americana aproveitando as matérias-primas dos países latino-americanos sem preocupações ambientais (a Amazónia que se cuide) de modo a que os EUA mantenham altas taxas de lucro e permaneçam na primeira linha da cena mundial? É um cenário possível para aquilo que vemos. É certo que o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, dizia na sua célebre carta a Salazar que adivinhar o futuro é competência de Deus, e Deus não a delega; mas, por vezes, Deus também dormita e permite que os homens se deitem a futurar, ora bem, ora mal.
LUÍS ANTÓNIO NORONHA NASCIMENTO. |
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