2016-04-05, quarta-feira, 18h30:

Apresentação do livro de José António Cabrita "Na lonjura de Timor"






Associação Movimento Cívico «Não Apaguem a Memória»
Núcleo do Porto



Sessão realizada na UNICEPE - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, CRL (Tel: 222056660)
Praça Carlos Alberto, 128
4050-159 PORTO

5 de Abril de 2017: Apresentação do livro

José António Cabrita, Na lonjura de Timor/Iha dook rai timor, Vila Nova de Gaia, Crocodilo Azul, 2016

Minhas Senhoras. Meus Senhores.

É ainda tempo de Abril. Tempo de esperança. Tempo de fazer o que ficou por fazer. Uma vez, mais uma vez. Para que a memória não esmoreça. Nesta ocasião, em volta de um livro, e das suas personagens violentadas. Com o pensamento principalmente voltado para uma dessas personagens: Carlos Cal Brandão.

Numa segunda-feira de Novembro de 1945, (…) azafamado no trabalho, justamente terminando de empacotar os meus haveres para regressar a Timor. Essa terra que de angustioso campo de exílio se transformou em terra de encantamento, onde vivi horas de ruidosa alegria, outras de serena felicidade e, ainda outras das mais amarguradas que jamais sentira. Levava-me lá, mais do que o espírito de curiosidade, a obrigação moral de saber onde param os ossos daqueles que preferiram o martírio, e o sofrimento de atrocidades, a deixarem-me meter num campo de concentração em terra portuguesa, dominado e enxovalhada por horda de selvagens sem escrúpulos de espécie alguma, e, depois de os encontrar, prestar-lhes a minha homenagem de camarada e amigo (…). Assim escreveu Carlos Cal Brandão, da Austrália, para Hélder Ribeiro, que estava na Senhora da Hora, um pouco ao norte do Porto (Carta a Hélder Ribeiro, data da Austrália, 26 de Novembro de 1945, cfr. Alexandre Teixeira Mendes, “Carlos Cal Brandão em Timor na Grande Guerra”, NN, Encontros de Divulgação e Debate em Estudos Sociais. Timor-Leste, Vila Nova de Gaia, Sociedade de Estudos e Intervenção Patrimonial, 1995, 52-54.).

A dita missiva, escrita no momento em que o seu autor deixava a Austrália a caminho de Lisboa, a bordo do navio Angola que haveria de escalar Díli, nos dias 8 e 9 de Dezembro de 1945, uma ocasião em que, ao contrário do que eram os seus desejos bem expressos, ele não seria autorizado a desembarcar, muito menos a permanecer, em Timor, essa missiva, constitui uma narração muito detalhada dos acontecimentos que envolveram a ocupação japonesa da ilha, um detalhe que Cal Brandão, com data de edição do mesmo ano de 1946, expressaria com maior profundidade no seu livro Funo (Guerra em Timor). Um livro que teve, pelo menos, cinco edições (três, em 1946; uma, 1951; uma, 1953), e que constitui um testemunho indispensável para a história desse tempo, tanto como para os contornos do próprio procedimento humano.

Mas aquela carta de Cal Brandão, ao apontar uma das opções de conduta social, das que se depararam aos membros da sociedade timorense de então, no caso, a conduta daqueles que decidiram não se conformaram com a neutralidade colaborante (MNE, Dez Anos de Política Externa (1936-1948). A Nação Portuguesa e a Segunda Guerra Mundial, vol. XIII, Lisboa, INCM, 1986) proclamada pelo governo de Portugal e acatada pelas autoridades da colónia, uma tal alusão, sugere que eu possa agora aludir às outras duas opções verificáveis na colónia de Timor naqueles tempos aflitivos: a opção daqueles que tomaram o partido oposto, ou seja, os que se mostraram claramente cúmplices das intenções japonesas; e a opção dos que, quase de imediato, se colocaram ao lado das forças aliadas, contra os invasores, como foi o caso de Brandão, que viria, depois, a fazer parte de um grupo que conseguiria refugiar-se na Austrália, e como foi, por outro lado, o caso daqueles de que anunciava querer ir a Timor para lhes encontrar os ossos, de modo a poder-lhes prestar homenagem, como era o caso, nestes últimos, do tenente Manuel Pires, cuja vida aventurosa foi já objecto de um precioso estudo (Timor na 2ª Guerra Mundial. O Diário do Tenente Pires, Lisboa, Centro de Estudos de História Contemporânea, 2007), da autoria de um saudoso amigo, António Monteiro Cardoso, um freixeirense que nos deixou, fez agora um ano em Janeiro (Janeiro de 2106).

Ora, foi precisamente no rasto de uma ousadia tipológica que o livro foi organizando. E as duas personagens essenciais da carta ali tomada, são apenas um exemplo: Cal Brandão (navio Gil Eanes, Díli a 21 -10-1931) representa o lado daqueles que, perante a ocupação brutal, se colocaram ao lado da resistência possível; Hélder Ribeiro, também ele deportado para Timor no mesmo passo (navio Pedro Gomes, em Díli a 16-10-1931), representa, na sua leva de deportação, aqueles que foram e voltaram do degredo no quadro de uma amnistia (navio Moçambique, Lisboa a 9-06-1933), face aos que lograram evadir-se, como Utra Machado (fugiu de Díli a 2-02-1932), ou aos que decidiram permanecer em Timor e, aí, haveriam de falecer, como aconteceu a Dias Antunes (morreu em Díli a 22-01-1940).

Minha Senhoras. Meus Senhoras

Um dia, vai para quase meio século de tempo, também a mim me aconteceu ter sido tocado pelo encanto da ilha verde e vermelha de Timor [como escreveu Alberto Osório de Castro]. Um encanto por essa terra tresmalhada no cabo do Mundo, (…) a mais distante e a mais original das nossas Colónias (…) a mais enfeitiçadora para a sensibilidade de europeus enamorados de erotismo [Armando Pinto Correia]. Uma terra de encantamento, como Cal Brandão escreveu naquela carta a Hélder Ribeiro.

Um encanto que, para mim, se transformou em chamamento da rai timor (por vezes em forma de brado). Porventura, o livro que aqui está surgiu desse chamamento. E o brado que deste livro se escuta, é um pequeno eco da martirizada colonização portuguesa de Timor, mormente quanto ao seu destino de deportação.

O livro, para o qual se desejou um título – Na lonjura de Timor/Iha dook rai timor - escrito nas línguas constitucionalmente oficiais em Timor-Leste, dá conta de alguns desses casos de deportação política e a sua edição aconteceu num momento em que ainda se comemorava meio milénio desde que aquelas duas línguas se encontraram, para dar começo a um futuro inevitavelmente comum. São casos de um tempo que correu entre o meado do século XIX e o final do império português, por onde passaram, neste livro mais demoradamente, na sua qualidade de deportados, um duriense do Porto (Cal Brandão), beirões de Arganil (Antero) e de Castelo Branco (Dias Antunes), estremenhos de Lisboa (Utra Machado; Hélder Ribeiro) e de Sesimbra (Bela Kun), um algarvio de São Brás de Alportel (Carrascalão); gentes da Índia, de Macau, de Moçambique, de São Tomé e Príncipe. E timorenses, de Vemasse, também encontrados num degredo moçambicano, no ano de 1881.

São esses os casos, mas outros deportados podiam estar, no livro como nas conversas que, porventura, se seguirão. É que, já muito se sabe sobre as grandes levas de deportação para Timor, uma movimento humana coerciva que chegou a fazer acrescer os membros da sociedade timorense, no dealbar da década de 1930, em muito mais do que meio milhar de pessoas (14, em 1896, da leva dos Anarquistas + 87, em 1927, da leva da Legião Vermelha +13, de uma leva imprecisa nos anos de 1920 + 359, em 1931, da leva dos deportados políticos, + 90, também em 1931, da leva dos deportados sociais, ou dos presos civis, vadios e cadastrados + 19, de chegada desconhecida a Timor, mas cuja presença é notada entre as décadas de 1920 e 1940 = 582). A estes, acrescente-se, em Julho de 19147, o último deportado em Timor, um são-tomense.

Minhas Senhoras. Meus Senhores

A cidade do Porto, foi o lugar primeiro para o lançamento deste livro. Foi lá, na Rua da Alfândega, nº 3, mesmo defronte da Casa do Infante, numa associação timorense, chamada Tane Timor (Tane Timor – Associação Amparar Timor).

O livro volta agora ao Porto. Há nesta cidade uma luz própria. Própria, porque a cidade não se deixa tomar, de todo, pela luz que lhe chega. Antes, toma essa luz, para fazer parte de si. E forma-se então uma luminosidade coada de mistério e encantamento, que é a cidade em si, e que eu me atrevo a supor dever, isso, ser muito próximo do princípio das coisas mágicas.

Chegou o momento cumprir um dever, daqueles deveres maiores. É tempo de agradecer: à Associação Movimento Cívico «Não Apaguem a Memória», ao seu Núcleo do Porto, que aceitou encaminhar este momento, muito obrigado, na pessoa do Elísio Teixeira, do José Manuel Machado de Castro e do Mário Vale Lima; à UNICEPE - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto (Praça Carlos Alberto, 128-A, Tel: 222056660), nascida numa república de estudantes, no ano de 1963, que abriu as suas portas, generosamente, como fazem os anfitriões maiores, muito obrigado, também, na pessoa do Rui Vaz Pinto; Rui Brito da Fonseca, meu amigo, katuas de Aileu, sem ti e sem a tua Crocodilo Azul, este livro sairia à estampa sozinho, ou então, não tão bem acompanhado, muito obrigado.

Finalmente, muito obrigado a todos os que aqui estão, que me permito, com vossa licença, abraçar como amigos. E entre esses amigos, outro katuas, com quem partilho uma intensa paixão por Timor, e que muito gratificante é encontrar aqui: o Manuel Sá Torrão.

Minhas Senhoras. Meus Senhores

Este pode parecer um livro ambivalente. Por um lado, assemelha-se a um livro de história: nos princípios operativos essenciais; na observância e no respeito de fontes legitimadas; na vontade de entrega aos pares, melhor, dizendo, aos verdadeiros historiadores.

Por outro lado, parece um exercício de escrita militante: frontalmente contra qualquer deportação, mesmo se resultado de práticas extremas de violência legítima, como é o tipo de violência que o Estado reclama para si, num atributo que faz o Estado distinguir-se, e só esse atributo o faz distinguir-se, como muitos entendem, de outras organizações das sociedades; um exercício contra o colonialismo, não apenas pela extrema violência da sua existência no amanho dos povos, mas também porque, existindo, fazia perfilar uma facilitação de situações de deportação.

Um livro ambivalente, pois…

… mas que talvez perceber um pouco da história de Timor. Uma história do tempo curto, microscópico. Foi feito de diversidade, o padrão da pequena história que pelo livro passa. Podia ter sido de outra maneira, mas foi essa a intencionalidade do escrevente destas linhas. Tendo partido de vários lugares do designado império português em direcção ao seu ponto mais distante, Timor, esta foi também a abordagem, crê o seu autor, de uma certa maneira de fazer o espaço, que haveria de vir a ser considerado como o da lusofonia. Um espaço que foi muito marcado pela acção intencional dos actores sociais que estiveram presentes na trama, carregando eles uma noção, a de actores sociais, que costuma ser usada para explicar os modos de fazer que moldaram a transição para as sociedades pós-tradicionais, e para a prevalência de elas se irem construindo com base, mais nas práticas de conflito, do que nas de consenso.

É possível que a acção dos actores sociais que passaram por esse palco tenha mostrado simbolicamente a teia de ideias, de reivindicações, de projectos, de promessas, de denúncias, de surpresas, de mudanças, afinal o fio que foi o de cada um deles nessa teia. Mas também os fios que foram os de outros actores sociais de que eles eram parte, como sejam, os sindicatos, os partidos políticos, os jornais, os exércitos, as polícias, entre outros, a que eles pertenciam ou com quem, simplesmente, partilharam a sua vida. Passaram pelo livro, origens, motivações, e destinos diversos. E memórias diversas, também. Tudo como, em geral, costuma mostrar-se a dinâmica da vida social. Ou então, aconteceu não mais do que como viu o olhar de senso comum do observador que aqui trouxe estas estórias.

Minhas Senhoras. Meus Senhores

Já referi noutras ocasiões que, um livro é muito mais do que simplicidade do seu talhe. Um livro vai sempre para além do tamanho das suas folhas, do desenho das suas letras, da moldura das suas gravuras, da pertinência do seu objecto, do sortilégio da sua escrita. Um livro é sempre a afirmação de uma ousadia, seja qual for o assunto por que se envolve ou se espraia. Tantas vezes, pautado pela humildade do seu autor, um livro é também um oferecimento empenhado e uma aliança comprometida. E é ainda, no apelo do retorno que marca as relações entre as pessoas, incessante e imparável, um compromisso de reflexão crítica que a todos obriga. É que, no momento de entregar aos outros um seu livro, o autor, não apenas anseia ao saboreio da sua escrita, tanto como exige que lhe cheguem, depois, o fio das leituras atentas, às vezes diversas, que dão sentido ao seu trabalho amoroso. Nesse momento da entrega, em boa verdade, o autor consuma-se, uma e outra vez. Como agora acontece.

Muito obrigado

José António Cabrita


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