A dança da lua
Fotografias para Urbano Tavares Rodrigues.
Um olhar súbito, uma imagem dissipando-se entre a poderosa afirmação do granito de
uma cidade de pedra eterna (p.22) (*) , qual tela impressionista que procura fixar no
tempo o momento breve, uma visão flutuante, incerta, apenas com a certeza que nada
se repete numa vida (p.37). Assim é a Dança da Lua, fotografias para Urbano Tavares
Rodrigues que o olhar – mais do que a lente – de Sérgio Jacques nos oferece.
O olhar do Sérgio – como o de Urbano – percorre Santiago de Compostela. Um cenário
que se identifica claramente numa imagem fugaz, quase trémula, como se nos
transportasse para um “mundo imaginário” ou uma Estranha visão medieval! (p.15),
numa semi-obscuridade que, esfumando os transeuntes, faz sobressair as densas
paredes graníticas e define as curvas dos arcos que ladeiam as artérias, adensando o
mistério do espaço. Esta é Santiago que, vista a outra claridade, aparece cinzenta, de
veludo (p.14). As ruas cruzadas por silhuetas inquietas, anónimas, um friso subtil,
embaciado cujas silhuetas se misturam e ondulam (p.37), por vezes pequenas
multidões caminhando numa mesma direção, ou recantos povoados de solidão, o
passo apressado de uns, indiferente aos andarilhos que, aqui e ali, pontuam espaços -
Santiago resiste à fria observação de todo o forasteiro que não dispa, para vê-la, as
roupas bordadas que usa no teatro da vida. Há que tirar a máscara às portas de
Compostela. (…) quando o homem já não representa nem para si próprio, queda-se
desconhecido e simples como nunca (p. 22).
O Sérgio não é um forasteiro em Santiago. E por isso o seu olhar capta muito mais do
que a imagem. Ele traz-nos a poderosa sugestão de Santiago (p.22), sem receio de
“excesso” de emoções, honesta e verdadeira, repleta de familiaridades, de
sentimentos confusos, de proximidade, de partilha, de interrogações e inquietações...
Traz-nos Urbano Tavares Rodrigues lado a lado com Rosalía de Castro e Garcia Lorca…
ou Alfonso Raimundez e Zaida de Sevilha…
Procura emoções em figuras surpreendidas e inquietas.
Sugere-nos o outro lado de uma “cidade perfeita” tantas vezes incendiada por ouros e
vermelhos (p. 14), despida das roupagens de que vestem o Apóstolo, em ruas e praças
onde conseguimos ouvir os cânticos entoados em surdina entre palavras que se
esbatem, e a melodia dos violinos, percorrendo os muitos e os sós, a noite e o dia, as
sombras e a luz.
Entre recordações e impressões, névoas e nitidez, o olhar do Sérgio busca, não o
entendimento, mas a verdade entre o que é e o que vê – o que sente -, porque a arte é
ver diferente (p.44).
E por isso esta visão, distinta e diferenciadora, este perscrutar da realidade do que se
observa mas nem sempre se vê, é um dos traços identitários do fotógrafo que, desde a
década de 80 do século passado, busca essa outra verdade oculta, numa plasticidade
muito própria através da contaminação e da valorização artística da Memória e do
Património. É já um longo e consistente percurso que, entre muitas outras
abordagens, passa pela sua tese de mestrado em Madrid alicerçada nas memórias
pessoais e fotográficas da prisão política do Forte de Peniche, ou pelas suas
reinterpretações plásticas das “Lendas do Porto” (5 volumes), passando pelas
releituras pictóricas que tem produzido nas páginas da centenária revista “O Tripeiro”
do que, sobre o Porto, escreveram alguns dos maiores vultos da nossa literatura
contemporânea. Um trajeto feito também de exposições sobre heranças industriais
em risco, da produção do sal aos mecanismos da desaparecida ponte móvel de
Matosinhos, ou do titânico guindaste a vapor do porto de Leixões. Mas um ver
diferente que não é incólume, de igual modo, a uma perspetiva “engagé” da
Fotografia, nesta sua relação com o Património e a Memória, como um instrumento,
também, de intervenção social. E a Compostela escrita por Urbano e descrita 80 anos
depois pelo Sérgio é, continua a ser, essa urbe de contrastes, de cinzentos,
movimentos, luz e obscuridade.
Uma cidade e um apóstolo usados como símbolos do nacionalismo e da imposição
ditatorial franquista, sub-repticiamente denunciado por Urbano, num tempo em que
também vivíamos em ditadura. Terra de apostolado, terra de combate, é Espanha – a
Espanha de uma nova cruzada, em prol de Cristo, contra os modernos inimigos da fé.
Uma Compostela remetida, pois, para uma dimensão de intolerância que não rima ou
não se enquadra e foca fotograficamente numa outra dimensão mais telúrica e
identitária da cidade e das suas gentes. Porque ela era nessa época, como é hoje e
sempre foi, afinal, um local de encontros, de introspeção e reflexão, o corolário de
caminhantes e andarilhos que, sozinhos ou em multidões, guiados pela Via Láctea ou
Estrada de Santiago, aqui chegam por caminhos que se foram construindo alicerçados,
não na intolerância nacionalista e no erguer de fronteiras, mas no espírito de
fraternidade e solidariedade entre os povos da Europa, independentemente dos seus
lugares de origem, das suas línguas, das suas tradições e dos desígnios dos poderosos.
É essa Santiago de Compostela, de Urbano e Sérgio, que nos convoca para uma Dança
da Lua.
Suzana Faro e Joel Cleto
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