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Quero começar por agradecer à UNICEPE por continuar a ser este espaço de encontro e de partilha de conhecimento, de ideias e de amizade, em torno dos livros, e felicitar o Rui Vaz Pinto pelo seu trabalho continuado e persistente ao serviço da vida cultural do Porto e, em particular, ao serviço desta cooperativa livreira, em vésperas de completar 60 anos de atividade. Quero, também, agradecer a confiança do Filipe Chinita que, através de uma proposta irrecusável, conseguiu vencer a minha inibição. Nunca me vi no papel de apresentar um livro, mas, uma vez aceite o desafio, veremos se não desiludo muito. Apresentar A MULHER DESCALÇA é algo que não posso fazer sem enquadrar o livro no conjunto da obra poética do autor e sem desenvolver algumas considerações sobre o Filipe Chinita, sobre o meu contacto com a obra e o autor e sobre o processo criativo que antecede os seus livros. É óbvio que não vou referir todos os 12 livros de poesia, mas apenas alguns marcos que nos conduzem à abordagem de A MULHER DESCALÇA. Em setembro de 2009 adquiri o livro GENTE POVO TODO O DIA, o primeiro deste conjunto poético. Adquiri-o numa edição acompanhada de um CD, no qual os poemas são ditos pela atriz Fernanda Lapa. A audição do CD e a posterior leitura do livro foram experiências tão surpreendentes que escrevi, logo no mesmo dia, um pequeno texto emocionado sobre as impressões que senti. Nessa altura, os blogues estavam na moda e eu tinha um, chamado cadernosemcapa.blogspot.com. Publiquei lá o texto e publiquei-o também na caixa de comentários de um blogue que eu pensava que era gerido pelo próprio Filipe Chinita. Anos mais tarde, já embrenhado na moda da rede social Facebook, encontrei por lá o Filipe Chinita e enviei-lhe de novo, o mesmo texto, em novembro de 2016. A seguir a este, Filipe Chinita publicou muitas mais obras poéticas, que, como já disse, não vou aqui referir todas, mas não posso deixar de destacar que GENTE POVO TODO O DIA é um caso muito particular, tanto na obra do autor como na poesia portuguesa escrita no século XX (embora só tenha sido publicado já no século XXI). Sei que, como bom pai, ele não aceita que nenhum dos livros seja mais valorizado do que os outros. Ele não vai, certamente, deixar de explicar que a sua obra é una. No entanto, eu mantenho a afirmação anterior e passo a justificar. Ao longo do século XX, até à Reforma Agrária, que a revolução do 25 de Abril tornou possível, foram muitas as obras de romance, conto e poesia que denunciaram a imoralidade, a miséria e a violência do latifúndio no Alentejo e no Ribatejo e que, implícita ou explicitamente, clamaram pela necessidade imperiosa da redistribuição da propriedade de terra. Sem ser exaustivo, recordo que as contradições sociais das regiões do latifúndio (Alentejo e Ribatejo) encontraram eco em obras de Manuel da Fonseca, Antunes da Silva, Fernando Namora, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Urbano Tavares Rodrigues, Joaquim Namorado e até em poetas portuenses como Papiniano Carlos e Eduardo Valente da Fonseca. Diga-se de passagem, que Papiniano Carlos nasceu em Moçambique e Eduardo Valente da Fonseca em Aveiro. Mas foram e são duas personalidades marcantes da vida literária do Porto. No entanto, se muito se escreveu sobre a premência da Reforma Agrária, parece-me que quando, nos anos revolucionários da década de setenta, o Povo tomou a ação nas suas mãos, ocupando os latifúndios e levando à prática a orientação de A TERRA A QUEM A TRABALHA – e isto é uma impressão pessoal que muito gostaria de ver desmentida - parece-me que, nessa altura, os poetas e romancistas, mesmo os que se envolveram de corpo, alma e caneta na construção e na defesa das conquistas da Revolução, não colheram na Reforma Agrária inspiração para muitas obras. Não serão as únicas, mas são incontornáveis duas das exceções. Uma é, obviamente, o romance LEVANTADO DO CHÃO, de Saramago e outra é a epopeia poética GENTE POVO TODO O DIA, de Filipe Chinita. Se Saramago, como é sabido, foi de Lisboa para Lavre e lá viveu algum tempo para melhor conhecer a terra e a gente de que tão elevadamente falou, Filipe Chinita não foi para lá. Não foi para lá porque já lá estava! Escreveu sobre o que estava a viver, e vivia a Reforma Agrária como revolucionário profissional porque, entre 1974 e 1980, foi funcionário da Partido Comunista. Sem ser um trabalhador rural, ele foi um dos milhares de construtores da Reforma Agrária. Como disse, estas duas obras não são as únicas que tomaram como tema aquela tão amada e tão odiada conquista de Revolução. Não tenho a pretensão de conhecer tudo o que se escreveu sobre o tema, mas não quero deixar de recordar o livro de poesia que Modesto Navarro editou, em 1977, com o título O NORTE A CANTAR A REFORMA AGRÁRIA. Como é sabido, de todas as conquistas da revolução, a Reforma Agrária foi a que mais ódios suscitou e a larguíssima aliança das forças da contrarrevolução não teve dúvidas em recorrer a todas as formas de violência para impedir que os trabalhadores rurais mantivessem nas suas mãos o controlo dos meios de produção e, sobretudo, para impedir que o povo do Alentejo e do Ribatejo mostrasse, com toda a evidência, que aquelas terras produziam muito mais enquanto pertenceram a quem nelas trabalhava. Em 27 de setembro de 1979, dois trabalhadores foram barbaramente assassinados quando defendiam a sua cooperativa. Casquinha, um jovem de 17 anos, e Caravela, de 57 anos, foram assassinados quando defendiam a sua cooperativa. Foram baleados pela GNR, tal como, anos antes, Catarina Eufémia. Se a morte de Catarina Eufémia - eternizada por muitos e belos poemas - é indissociável do nome do ditador Salazar, a estes crimes não podemos deixar de associar o nome do autor da lei contrarrevolucionária que estava a ser brutalmente aplicada – a tristemente célebre Lei Barreto. Filipe Chinita, em colaboração com o poeta Manuel Gusmão, escreveu a obra CANTATA, PRANTO E LOUVOR EM MEMÓRIA DE CASQUINHA E CARAVELA, publicado em 2009. Curiosamente, mas não por acaso, se a primeira obra poética publicada por Filipe Chinita - GENTE POVO TODO O DIA – é a epopeia da Reforma Agrária, esta segunda publicação - CANTATA, PRANTO E LOUVOR EM MEMÓRIA DE CASQUINHA E CARAVELA - é escrita numa forma que muito se aproxima da tragédia clássica. É, de facto, a tragédia da Contrarreforma Agrária. . . . Como prometi, não vou abordar todos os 12 livros do autor e passo, de imediato, para a obra que aqui nos traz hoje – A MULHER DESCALÇA, publicada em 2023. A MULHER DESCALÇA é o 3.º elemento de uma trilogia que inclui também os livros 3.º ANDAR JARDIM SUSPENSO (publicado em 2013) e A MULHER EM SALTOS ALTOS (publicado em 2019). São três livros em torno de uma mulher – MARIA – e da relação amorosa de Filipe com Maria, uma relação que foi de amor físico durante poucos anos, mas que marcou toda uma vida. Cito da página 5: “a mulher que descalça caminha em todo o meu viver (1976.77 / 2016.17 40 anos depois) De resto, esta referência a Maria como a mulher que, descalça ou de saltos altos, caminha em todo o seu viver percorre toda a trilogia que agora se completa. 2013, 2019 e 2023 são os anos de publicação, mas precisamos de recuar 4 décadas – repito, 4 décadas - para tentarmos perceber um longo e complexo processo de gestação, que vai desde a fecundação dos poemas, ainda na década de 70 do século passado, até ao parto dos livros, apenas em 2013, 2019 e 2023. Façamos, então, alguma luz sobre o processo criativo. No dia 24 de julho deste ano, o próprio autor escreveu: “sou um ser que não fotografa, mas que (apenas) escreve (de norma) ao momento sobre (todas) as cousas que (humanas lhe) acontecem na vida” (fj, às 6h39m) E assim é. Muitos, ou a grande maioria, dos poemas são registos do momento, feitos permanentemente - por vezes, até em autocarros em movimento. Julgo que podemos chamar-lhes “poemas de escrever em andamento”, andamento do autocarro e andamento do viver quotidiano. Trata-se de registos poéticos sobre tudo o que é real: Acontecimentos e sentimentos; paixões e traições; mortes e desencontros; passeios e trabalhos; países, cidades, aldeias, ruas, casas; restaurantes e cafés; refeições e alimentos; objetos vários; livros, cadernos e canetas; peças de vestuário e marcas de vestuário; viagens e marcas de automóveis; autores, leituras e citações; camaradas, amigos e familiares… Mais uma vez, cito o autor, que escreveu no dia 13 de julho de 2023: “sou contra a quasi toda ‘imaginada’ ‘ficção’ pois que a mais alta e inultrapassável ficção é a própria (diária) realidade” (fj, às 8h25m) Estas caraterísticas – escrita repentina e escrita sobre as coisas e os sentimentos do momento real e do concreto – não é exclusiva das obras da trilogia de Maria. Identificamo-la quando, nesta mesma sala, há cinco anos, nos encontrámos em torno do VERMELHO EU COLETIVAMENTE POR ESSE ALENTEJO AFORA. Voltemos à MULHER DESCALÇA. Feitos os registos em inúmeros papéis, cadernos e pastas, eles ficaram guardados durante anos (décadas) pelo próprio autor ou pela mulher a quem foram dedicados. Maria guardou, durante décadas, uma pasta com 34 folhas A4 – a várias vezes referida “pasta laranja que vermelha deverá ter sido” (p.149). Em 2007, pouco depois do falecimento de Maria – que ocorreu no Dia Mundial da Mulher - uma das suas filhas entregou ao autor esta pasta e os textos que ele julgava perdidos. Anos ou décadas depois do seu registo inicial, os textos são revistos, anotados, acrescentados, agrupados e organizados em livros que demoram mais alguns anos até à publicação. A propósito de textos acrescentados aos conjuntos de textos mais antigos, merece destaque um conjunto de poemas integrados neste livro e que foram escritos, só em 2007, propositadamente para uma exposição do Setor Intelectual de Lisboa do PCP. A exposição constituiu a concretização de um projeto que tinha sido acalentado por Maria e que acabou por ser concretizado meses depois do seu falecimento. Por fim, depois de todo este demorado processo que podemos dizer de fermentação e de metamorfose, aquilo que chega às mãos dos leitores – isto, é, OS LIVROS – são objetos especiais. Desde logo pelo seu formato quadrado, que lhes dá um certo ar de caixas onde foram guardadas memórias pessoais. Por outro lado, os livros são originais, também, por uma muito livre utilização de diversos tipos gráficos: ausência de maiúsculas, letras de diferentes tamanhos, itálico, negrito, parêntesis, traços, sinais de pontuação e pontos que não são o ponto final. A ausência de maiúsculas - que já conhecíamos, pelo menos, da poesia do poeta americano e. e. cummings (1894-1962) e dos primeiros romances de Valter Hugo Mãe – na poesia de Filipe Chinita será, talvez um vestígio da forma repentista como os escritos apareceram. Com frequência, surgem palavras entre parêntesis, o que provoca duplas leituras da mesma frase. Noutros casos, há palavras que têm no início, no meio ou no fim letras ou sílabas entre parêntesis, o que atribui à palavra duplos significados. O tal ponto que não é ponto final julgo ser uma criação original do autor. Surge no interior de certas palavras, pontuando o ritmo da sua leitura, sublinhando-a, mas não tem a função de hífen. Há também notas de pé de página, notas nas margens e citações, o que não é comum encontrarmos em poesia. Este conjunto de peculiaridades gráficas provoca uma abertura a múltiplas leituras, libertando-nos para interpretarmos os poemas de formas diversas. É claro que o poeta deseja ser lido, deseja ser compreendido e deseja ser reconhecido. Mas o revolucionário recusa condicionar a interpretação do leitor e prefere-o livre para encontrar o seu próprio caminho ao percorrer os poemas. É claro que, mais uma vez, esta é uma hipótese que eu formulo. Cada um dos outros leitores poderá explicar de outras formas a singularidade formal dos poemas. Por fim, outro aspeto que atribui especificidade ao livro A MULHER DESCALÇA é o alinhamento. Não existe o vulgar justificado, com as linhas cortadas uniformemente à esquerda e à direita, que normaliza os parágrafos em retângulos sobrepostos. Há textos alinhados à esquerda nas páginas esquerdas e há textos alinhados à direita nas páginas da direita. Mas o que mais abunda são os poemas simetricamente centrados, por regra geral, escritos em linhas curtas, muito curtas, muitas delas apenas com uma palavra ou até só com um sinal de pontuação. Esta forma estética transforma cada página numa imagem gráfica diferente das outras, como se todas e cada uma das páginas fossem peças únicas produzidas num torno pelas mãos de um operário. . . . Detive-me, talvez divagando em demasia, nos aspetos formais e receio estar a deixar passar a ideia errada de este possa ser apenas um livro graficamente original, preenchido por declarações amorosas, louvores da mulher amada e prantos pelo fim da relação. Nada disso! A MULHER DESCALÇA é um livro de quatro décadas da biografia de um homem apaixonado por todas as dimensões da vida. Nestes poemas, Maria personifica todas as mulheres e as mulheres simbolizam o amor em todas as suas formas e em todas as suas manifestações. A mulher amada descalça-se e o poeta que a ama despe-se. Mostrando-nos estes escritos, ele desnuda-se no que há de mais profundo e mais íntimo. Mostrando como interioriza, intensamente, o real e o quotidiano, o poeta partilha connosco as experiências, as emoções e sentimentos mais profundos, a sua intimidade, as suas inseguranças, os seus sonhos de jovem, as suas desilusões de adulto e, acima de tudo, as suas convicções de sempre – o amor à humanidade, a crença no Comunismo e a confiança no futuro. . 11/10/2023 Eduardo Ricardo na sua totalidade no vermelho de chinita fj 18.16 14.10.23 |
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