Sousa, Graça de (2023). O avesso. Lisboa: Astrolábio Edições.
Texto de Francisco Topa na apresentação do livro
Podemos começar esta apresentação com uma pergunta: O que leva tantas
pessoas a escrever romances? Não haverá certamente uma resposta única, mas é
provável que a mais comum seja a vontade de contar uma história, que quase sempre
tem alguma coisa que ver com o percurso de vida de quem a escreve. Nesse sentido,
contar uma história é também uma forma de dar sentido ao mundo interior do seu autor
e ao mundo que o rodeia, tentando assim de algum modo fazer dele um mundo melhor.
Não sei se será exatamente esse o caso de O avesso, de Graça de Sousa, embora
haja uma série de pontos comuns entre elementos centrais da diegese dos seus romances
e a história pessoal da autora. Temos, por um lado, a condição de mulher e professora,
bem destacada neste e no romance anterior, Pegadas na areia; e temos, sobretudo, o
nascimento no sul de Angola, num tempo colonial de relativa felicidade que a
descolonização e o (falso) retorno convulsionou para sempre, originando aquilo a que a
autora chamou, com propriedade, almas mutiladas. Estamos, assim, de um lado, perante
um conjunto de aspetos universais e intemporais, e, do outro, de questões que,
parecendo exclusivas de um tempo histórico, são, afinal, mais ou menos de sempre: é o
caso da identidade e das interrogações que a rodeiam e do tema do exílio, em sentido
próprio ou numa aceção mais alargada que inclua também a fuga e a migração.
No caso deste romance, o ponto de partida é aquele que o título anuncia: o
avesso, isto é, o lado contrário do direito, o lado torto ou gauche (como lhe chamou
Carlos Drummond de Andrade), o lado escondido e inacessível aos outros, e às vezes
também ao próprio. Todas as personagens – e a história coletiva que elas ajudam a
contar – têm assim um lado oculto e um tanto escuro que só no final será revelado. Para
isso, o narrador vai abrindo uma série de histórias paralelas que a certa altura se
começam a cruzar, gerando enigmas que serão desvendados num grand finale que não é
totalmente cor-de-rosa.
Embora morta prematuramente, Antónia é a protagonista do romance. Mestiça
de grande beleza (que é alertada desde cedo para o perigo que isso representava para si
mesma), é oriunda de uma família cuanhama cujas mulheres tinham ido para Sá da
Bandeira, em busca de uma vida melhor e de liberdade. Vítima precoce de um sistema
que não lhe permite estudar além da escola primária e que a expulsa da casa onde fora
seduzida e engravidada pelo filho-família, Antónia acaba por ser objeto de uma espécie
de segunda expulsão: depois da independência de Angola, percebe que não havia lugar
no novo país para mestiços como ela. A chegada a Portugal e a instalação em Aveiro
não são fáceis, gerando nova memória traumática:
Ficou a recordação esbatida de bandos de pessoas, deambulando pelos
corredores de hotel ou constituindo-se em pequenos grupos no passeio dianteiro
do mesmo, autênticos autómatos que, quando trocavam impressões essas
versavam sobre Angola, de onde tinham partido – exactamente como Antónia –
sem saber bem porquê e como. (82)
Mãe solteira num país estranho e frio, vítima de exploração e de abusos, a
protagonista acaba por entregar o filho ao casal para quem trabalhava como empregada
doméstica, morrendo anos depois – já na Quinta do Mocho, nos arredores de Lisboa –
vitimada por um aborto clandestino. Por esta rápida síntese, percebe-se de imediato que
o livro toca em problemas centrais do nosso tempo e da nossa sociedade: a
subalternização e a exploração da mulher; a adoção oficial e as formas paralelas de a
concretizar; a guetização para que é empurrada uma parte da população, sobretudo a de
origem africana; a prática clandestina de atos médicos. E são pertinentes e bem
fundamentadas as reflexões das personagens sobre estas questões. Sirva de exemplo esta
passagem sobre a adoção:
A Antónia já viu o que é procurar uma criança de entre as que estão na
expectativa de serem adoptadas? Um filho não se escolhe, Antónia! Um filho
calha-nos! E quando isso acontece, por diferente que seja o sorteio, aceitamo-lo
e achamos que o nosso filho é o mais belo de todos, porque é, certamente, o
mais amado. Imagine-nos a seleccionar um filho de entre várias crianças, numa
instituição social. Escolheremos pelo olhar? Pelo sorriso? Pela beleza? Pela
desenvoltura que será prenúncio de inteligência? Ainda pior que seleccionar,
será refutar. Como rejeitar a criança que nos olhou, nem que seja por segundos?
(75)
Para além destes, há uma série de outros temas difíceis, como o consumo de
drogas, o suicídio, a atividade de acompanhante ou o casamento de fachada.
Abordando-os com inteligência e sensibilidade, Graça de Sousa propõe-nos um retrato
sem filtros da sociedade globalizada em que vivemos, sugerindo que a proximidade que
julgamos ter é falsa, uma vez que pais e filhos, amigos e outros familiares são incapazes
de reconhecer-se, mesmo que vivam lado a lado.
Apesar de tudo, o livro termina com uma nota de esperança, graças ao “mea
culpa” de algumas das personagens, que não terão a força dos heróis da tragédia grega,
mas têm a humildade do herói moderno capaz de se dar uma segunda oportunidade.
Livro corajoso e com uma arquitetura complexa mas discreta e elegante, O
avesso revela também uma narradora atenta à psique das suas criaturas de papel e ao
modo como elas se relacionam, por exemplo, com o espaço. Veja-se este exemplo:
Nos dias que se seguiram, a Antónia pareceu que a casa dos Valadas encolhera.
Os compartimentos pareciam menores e mais pequenos e os circuitos mais
apertados, pois com grande frequência se cruzava com Carlos Alberto, que
quase a tocava na passagem. (50)
Este e outros pormenores revelam-nos uma autora que vai amadurecendo de
livro para livro, enquanto nos conta episódios da traumática história luso-angolana que
muitos continuam a querer silenciar.
Porto, 30 de novembro de 2023
Francisco Topa
|