2023-11-29, quarta-feira, 18h00:
Lançamento do livro "O avesso", de Graça de Sousa,
com apresentação do professor Francisco Topa


Vídeos da sessão:

BIOGRAFIA:

Graça de Sousa, luso-angolana, nasceu em Sá da Bandeira - atual Lubango - e repartiu a vida entre Angola e Portugal.
      “ O avesso” é o quinto livro de sua autoria.
      Em 2003 lançou seu primeiro livro, “Bandeira a meia haste”, assinado sob o pseudónimo Suzana Benje, que teve como lugar Angola do antes e do após independência até 1992. Segundo a autora, foi o desabafo necessário para poder tentar outros voos no âmbito da ficção.
      “A valsinha” (2008) é um livro de contos permeado de musicalidade em que o palco é o Algarve, nomeadamente Portimão.
      O livro “Pegadas na areia” (2020) é um romance que evoca pessoas e acontecimentos reais e que permite acompanhar diferentes períodos da história de Angola, desde o colonial ao após a independência, abarcando a fase da guerra civil e o período atual, depois do calar das armas. “Nina, a cadelinha muito amada” (2023) é um livro infantil, inspirado em história verdadeira.
      “O avesso” é um romance inteiramente ficcionado que se inicia em Sá da Bandeira, desenvolvendo-se a trama em Portugal, cruzando uma série de temas atemporais com outros muito atuais.
      Os cinco livros da autora foram precedidos por crónicas e contos publicados na imprensa angolana e na regional portuguesa.

SINOPSE:
      “- As pessoas têm um avesso!
      Todas as pessoas têm um avesso. Um avesso que não é perceptível a terceiros, um interior que está camuflado. Habitualmente as pessoas escondem esse avesso. E essa ocultação, às vezes é tão perfeita, que nem elas próprias o conhecem. Isso acontece, sobretudo, quando receiam fazer introspecções e temem as inquietações que delas resultam.
      A vida tem também um avesso. A vida de cada um e a de todos.
      Estamos aqui, juntos, a viver um momento comum que é o que nos é perceptível. Contudo e na realidade, ele pode ser diferente dessa percepção pelo que nos é ocultado, propositadamente ou não.”






Sousa, Graça de (2023). O avesso. Lisboa: Astrolábio Edições.

Texto de Francisco Topa na apresentação do livro

Podemos começar esta apresentação com uma pergunta: O que leva tantas pessoas a escrever romances? Não haverá certamente uma resposta única, mas é provável que a mais comum seja a vontade de contar uma história, que quase sempre tem alguma coisa que ver com o percurso de vida de quem a escreve. Nesse sentido, contar uma história é também uma forma de dar sentido ao mundo interior do seu autor e ao mundo que o rodeia, tentando assim de algum modo fazer dele um mundo melhor. Não sei se será exatamente esse o caso de O avesso, de Graça de Sousa, embora haja uma série de pontos comuns entre elementos centrais da diegese dos seus romances e a história pessoal da autora. Temos, por um lado, a condição de mulher e professora, bem destacada neste e no romance anterior, Pegadas na areia; e temos, sobretudo, o nascimento no sul de Angola, num tempo colonial de relativa felicidade que a descolonização e o (falso) retorno convulsionou para sempre, originando aquilo a que a autora chamou, com propriedade, almas mutiladas. Estamos, assim, de um lado, perante um conjunto de aspetos universais e intemporais, e, do outro, de questões que, parecendo exclusivas de um tempo histórico, são, afinal, mais ou menos de sempre: é o caso da identidade e das interrogações que a rodeiam e do tema do exílio, em sentido próprio ou numa aceção mais alargada que inclua também a fuga e a migração. No caso deste romance, o ponto de partida é aquele que o título anuncia: o avesso, isto é, o lado contrário do direito, o lado torto ou gauche (como lhe chamou Carlos Drummond de Andrade), o lado escondido e inacessível aos outros, e às vezes também ao próprio. Todas as personagens – e a história coletiva que elas ajudam a contar – têm assim um lado oculto e um tanto escuro que só no final será revelado. Para isso, o narrador vai abrindo uma série de histórias paralelas que a certa altura se começam a cruzar, gerando enigmas que serão desvendados num grand finale que não é totalmente cor-de-rosa.

Embora morta prematuramente, Antónia é a protagonista do romance. Mestiça de grande beleza (que é alertada desde cedo para o perigo que isso representava para si mesma), é oriunda de uma família cuanhama cujas mulheres tinham ido para Sá da Bandeira, em busca de uma vida melhor e de liberdade. Vítima precoce de um sistema que não lhe permite estudar além da escola primária e que a expulsa da casa onde fora seduzida e engravidada pelo filho-família, Antónia acaba por ser objeto de uma espécie de segunda expulsão: depois da independência de Angola, percebe que não havia lugar no novo país para mestiços como ela. A chegada a Portugal e a instalação em Aveiro não são fáceis, gerando nova memória traumática:

        Ficou a recordação esbatida de bandos de pessoas, deambulando pelos corredores de hotel ou constituindo-se em pequenos grupos no passeio dianteiro do mesmo, autênticos autómatos que, quando trocavam impressões essas versavam sobre Angola, de onde tinham partido – exactamente como Antónia – sem saber bem porquê e como. (82)
Mãe solteira num país estranho e frio, vítima de exploração e de abusos, a protagonista acaba por entregar o filho ao casal para quem trabalhava como empregada doméstica, morrendo anos depois – já na Quinta do Mocho, nos arredores de Lisboa – vitimada por um aborto clandestino. Por esta rápida síntese, percebe-se de imediato que o livro toca em problemas centrais do nosso tempo e da nossa sociedade: a subalternização e a exploração da mulher; a adoção oficial e as formas paralelas de a concretizar; a guetização para que é empurrada uma parte da população, sobretudo a de origem africana; a prática clandestina de atos médicos. E são pertinentes e bem fundamentadas as reflexões das personagens sobre estas questões. Sirva de exemplo esta passagem sobre a adoção:
        A Antónia já viu o que é procurar uma criança de entre as que estão na expectativa de serem adoptadas? Um filho não se escolhe, Antónia! Um filho calha-nos! E quando isso acontece, por diferente que seja o sorteio, aceitamo-lo e achamos que o nosso filho é o mais belo de todos, porque é, certamente, o mais amado. Imagine-nos a seleccionar um filho de entre várias crianças, numa instituição social. Escolheremos pelo olhar? Pelo sorriso? Pela beleza? Pela desenvoltura que será prenúncio de inteligência? Ainda pior que seleccionar, será refutar. Como rejeitar a criança que nos olhou, nem que seja por segundos? (75)
Para além destes, há uma série de outros temas difíceis, como o consumo de drogas, o suicídio, a atividade de acompanhante ou o casamento de fachada. Abordando-os com inteligência e sensibilidade, Graça de Sousa propõe-nos um retrato sem filtros da sociedade globalizada em que vivemos, sugerindo que a proximidade que julgamos ter é falsa, uma vez que pais e filhos, amigos e outros familiares são incapazes de reconhecer-se, mesmo que vivam lado a lado.

Apesar de tudo, o livro termina com uma nota de esperança, graças ao “mea culpa” de algumas das personagens, que não terão a força dos heróis da tragédia grega, mas têm a humildade do herói moderno capaz de se dar uma segunda oportunidade. Livro corajoso e com uma arquitetura complexa mas discreta e elegante, O avesso revela também uma narradora atenta à psique das suas criaturas de papel e ao modo como elas se relacionam, por exemplo, com o espaço. Veja-se este exemplo:
        Nos dias que se seguiram, a Antónia pareceu que a casa dos Valadas encolhera. Os compartimentos pareciam menores e mais pequenos e os circuitos mais apertados, pois com grande frequência se cruzava com Carlos Alberto, que quase a tocava na passagem. (50)
Este e outros pormenores revelam-nos uma autora que vai amadurecendo de livro para livro, enquanto nos conta episódios da traumática história luso-angolana que muitos continuam a querer silenciar.

Porto, 30 de novembro de 2023

Francisco Topa



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