O CRÍTICO DA HORA ABSURDA
(Texto escrito em abril de 2005, que serviu de base à intervenção de 4 de julho de 2020, no Museu Marítimo de Ílhavo)
Revoltado pela sua condição de médico à força, custava-lhe cobrar pelas consultas. Ensaísta e crítico literário, respirava literatura, mas mergulhou no combate político a Salazar. Foi um dos rostos do Congresso Republicano de Aveiro. Morreu prematuramente há 36 anos.
No dia 19 de Novembro de 1952, o médico aveirense Mário Sacramento cometeu um erro fatal. Preocupado com as condições de saúde de alguns presos políticos há cinco dias em greve de fome no Forte de Peniche, escreveu uma carta. Respeitoso, formal, invoca a sua condição de "cidadão português e amigo pessoal" de alguns deles para afirmar a necessidade de um "rigoroso inquérito oficial”, face às notícias chegadas a público "sobre certos acontecimentos ocorridos" nos estabelecimentos prisionais portugueses. Informado pela família de um dos presos acerca da situação vivida no forte, Sacramento, então com 32 anos, garante que "mentiria covardemente” à sua consciência se ocultasse ao seu interlocutor "a preocupação em que tantos cidadãos portugueses” vivem acerca "do que se passa nas cadeias com os presos políticos”. Termina com uma frase assas sina, do ponto de vista da sua própria tranquilidade ou bem-estar. Assegura que quem, como ele, e por força da sua profissão, "vive em contacto com as mais diversas camadas sociais, sabe, aliás, que há muito a Nação anseia que seja dada" aos presos políticos "uma ampla amnistia".
O destinatário da missiva é o Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar. Durante meses, o médico, ensaísta e político residente em Ílhavo não tem notícias das consequências do seu acto. Ignora, por exemplo, que o Presidente do Conselho remetera a carta para o Ministro da Justiça. Não poderia imaginar que a 17 de Fevereiro de 1953 o chefe de gabinete do ministro a faz chegar à direcção da PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado. Muito menos sonharia que a 20 de Abril, quatro meses e um dia depois de ter escrito pelo seu punho uma carta que terminava "com os protestos" do seu "profundo respeito”, a PIDE iria entrar-lhe pelo consultório/residência do n.º 13 da Rua José Estêvão, em Ílhavo, revolver tudo e prendê-lo. Levado para Coimbra, onde pontificava o inspector Jose Barreto Sacchetti, é no mesmo dia transferido para Lisboa, de comboio. onde chega ao início da madrugada. A 22 é submetido ao primeiro de mais de uma dezena de interrogatórios que vão repetir-se ao longo dos meses, até Setembro. Neste período de meio ano, mantido preso sem culpa formada vê a sua detenção duas vezes prolongada pelo período de 45 dias, “por ser necessário à investigação". Preocupada com uma muito particular visão da segurança do Estado, a PIDE quer arrancar do preso Mário Emílio de Morais Sarmento informações tão transcendentes como, por exemplo, "quais os elementos informativos que possui acerca dos acontecimentos ocorridos com os reclusos do Forte de Peniche", como lhe chegaram essas informações e quem lhas transmitiu. Quer saber porque dirigiu a carta "a Sua Excelência o Presidente do Conselho de Ministros quando, em boa verdade, se poderia ter dirigido a quem os serviços da Cadeia estão directamente subordinados". Questiona-o para saber "em que se baseia para afirmar na sua carta que os presos políticos não são tratados e respeitados como pessoas humanas". Interroga-o sobre se pertence ou já pertenceu "a alguma associação secreta e subversiva e designadamente à que usa nome de 'Partido Comunista Português', por quem foi aliciado, em que data e quais os trabalhos conspirativos' em que tem tomado parte". Neste caso, a resposta transcrita no auto da PIDE é lapidar. Mário Sacramento, que até ali se limitara, em todas as questões, a reafirmar que nada tinha a dizer ou a remeter para o conteúdo da carta que não imaginara ser, afinal, tão perigosa ou subversiva, afirma que “muito embora não reconheça o direito de se formularem tais perguntas nas actuais condições políticas, isto é, enquanto não vigorarem em seu pleno uso as liberdades fundamentais, declara em atenção apenas aos imperativos da sua consciência não ter qualquer delas cabimento com a pessoa do respondente”. Oficialmente termina ali o interrogatório. Mário Sacramento, numa atitude que irá manter até final desta prisão, não assina a acta do auto de perguntas. Com uma regularidade pendular, os agentes da PIDE vão interrogá-lo duas vezes em cada mês. Para as mesmas questões, obtêm invariavelmente as mesmas respostas. Até que desistem. A 8 de Setembro de 1953, são postas à consideração superior as conclusões da direcção da PIDE. Os responsáveis policiais explicam que "embora fosse empregado o melhor esforço para apuramento da verdade, não se conseguiu conhecer as suas actividades políticas e ligações, nem, nas muitas vezes que foi ouvido em auto, confessou a sua actuação política, mantendo-se sempre na recusa de responder às perguntas que lhe foram feitas". No dia 30, Mário Sacramento é restituído à liberdade. Na folha assinada pelo subdirector da PIDE sublinha -se que o processo fica a aguardar produção de melhor prova.
Até o dia da sua morte prematura com um aneurisma, (…), Mário Sacramento sempre soube que o problema não era uma carta, ainda por cima inofensiva e escrita com todo o respeito. Até por isso fora uma prisão exemplar, entre as cinco de que foi vítima, porque, na aparente ausência de violência física contida neste caso, fica retratada toda a brutalidade de um regime que simplesmente não precisava de motivos ou justificações para destruir as vidas de quantos ousassem dizer não.
Clara Sacramento, a filha que cursou Letras, ao contrário do pai, que nunca escondeu a sua frustração por ter sido quase empurrado para Medicina, sente, ainda assim, que o seu progenitor "deve ter sofrido muito na prisão”. O ambiente que por ali se respirava "deu-lhe cabo da saúde”, até porque estava muito avançado no tempo, apoiado em leituras que só muito mais tarde apareciam por cá”. Clara admite que a circunstância de “viver em Portugal, em Aveiro, ter família, ter que sustentá-la, ter que exercer uma profissão que não era o que gostava, foi um grande problema".
Nascido em Ílhavo a 7 de Julho de 1920, Mário Emílio Morais Sarmento, filho de Rita de Morais Sarmento e de Artur Rasoilo Sacramento, comissário de bordo de grandes navios, tem uma infância muito marcada pela voragem das leituras, um hábito deixado pelo pai. Isso acabará por lhe marcar o destino. Em 1931 entra para o Liceu José Estêvão, em Aveiro, onde se distingue pela qualidade da sua escrita, vertida primeiro para um pequeno jornal manuscrito, intitulado O Furão, até que o reitor, José Pereira Tavares, e um dos seus professores, o depois célebre filósofo Agostinho da Silva, o convidam a assumir a direcção de A Voz Académica, o jornal do liceu que começava a dar os primeiros passos. Em simultâneo, o jovem Mário começava em Ílhavo um trabalho de implicações sociais que iria constituir uma marca de vida. Segundo a irmã Maria Ivone, citada na tese de doutoramento de Eunice Malaquias Vouillot, intitulada Mário Sacramento, un Auteur neo-realiste portugais (1920-1969): La vie et l'oeuvre, apresentada na Universidade de Sorbonne, em Paris, no final de 2002, a partir dos 13 anos decide partilhar os seus conhecimentos com os jovens da sua terra natal, quase todos sem recursos, mas com muita vontade de se instruirem. Numa sala cedida por umas tias, recheada com os livros retirados da biblioteca do pai, organiza sessões de leitura, cursos de francês, de inglês e de esperanto, língua que tinha aprendido por si mesmo. As sessões de leitura duram pouco tempo. As autoridades de Ílhavo decidem um dia inspeccionar o local, proíbem Mário de prosseguir com as suas actividades, consideradas subversivas, e instigam as tias a não lhe cederem a sala.
Aos 16 anos, Mário, já eleito presidente da Associação de Estudantes do liceu, passa por uma experiência marcante, relatada no seu diário. Entusiasmado com os bons resultados escolares obtidos pelo filho, o pai convida-o a passar os dois meses de férias de Verão numa viagem a bordo do paquete Moçambique, na qual participam várias figuras eminentes do regime. Dessa viagem guarda a memória da presença de Marcelo Caetano, ao tempo Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. "Intelectual eficiente e frio, procurava formar uma nova elite fascista", escreve Mário Sacramento no seu diário iniciado a 10 de Junho de 1967 e ao qual pretendeu originalmente dar o título de "Aqui Jaz quem Me Matou". O tempo de escrita destas memórias, depois intituladas Envelhecer, é já o de uma época de crise do regime. Não anda longe o dia em que Oliveira Salazar irá cair da cadeira e Marcelo Caetano ser indicado para o substituir na presidência do Conselho. Num sinal da invulgar capacidade de análise que o caracterizava, Sacramento escreve, a propósito de Caetano: "As suas lições (...) eram claras, objectivas, coerentes com o seu ponto de vista. Quem defende daquele modo o autoritarismo e o colonialismo não pode mudar de opinião sem crise interna de mentalidade. (..). O que ele procura é ser um 'relais neofascista do fascismo. Há que estar atento a isso, amigos!"
Nos primeiros dias de 1938, o ano em que é preso pela primeira vez, com apenas 18 anos, e dois anos após esta viagem, o filho do comissário de bordo recebe, na sua qualidade de director do jornal A Voz Académica, um documento preocupante, cujo significado iria perceber e sentir como uma chaga que o atormentou até o último dos seus dias. Os serviços de Censura em Lisboa comunicam-lhe que o jornal não poderá voltar a publicar-se sem ser submetido a censura prévia. Nunca mais vai libertar-se deste tormento. A 19 de Março de 1968, assinala no seu diário o início da sua colaboração com o Diário de Lisboa e acrescenta que os cortes literários são, agora, mais ferozes que nunca, devido à censura-”intelectual". Em Julho, no dia 19, regista que "a Censura cortou, de novo, a recensão reescrita a 0 Delfim. Não “justificam', sequer".
Eduardo Prado Coelho, professor universitário, recorda estes tempos, por terem, em conjunto, "de certo modo artilhado a crítica literária no DL, embora com perspectivas diferentes" um do outro. O ensaísta fala de Sacramento como "uma pessoa finíssima, inteligente, mas também de uma ortodoxia ideológica muito forte, o que dava uma combinação curiosa".
Já para José Manuel Tengarrinha, também professor universitário, o médico aveirense, que conheceu através da luta antifascista, revelava "um grande valor intelectual e político, reconhecido por todas as áreas da Oposição numa altura em que havia grandes discriminações e muitas barreiras, nomeadamente por parte dos republicanos liberais, que normalmente repudiavam qualquer colaboração com a área comunista, mas aceitaram o Mário Sacramento, embora sabendo da sua proximidade ao PC”.
Mais do que próximo, era o principal quadro comunista em Aveiro. Quem o garante é Jaime Serra, o dirigente do PCP com quem Sacramento partilhou a prisão em Caxias, a partir de Maio de 1955. Serra, que em Janeiro de 1960, com Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes, Carlos Costa, Francisco Miguel, Rogério Paulo, Francisco Martins Rodrigues, José Carlos, Guilherme Carvalho e Pedro Soares, iria participar, a partir do Forte de Peniche, na mais espectacular de todas as fugas de uma prisão do fascismo português, diz ter conhecido Sacramento no início dos anos cinquenta. Já nessa altura "ele era o camarada mais responsável de Aveiro na organização partidária", atesta.
Desta vez, em Maio de 1955, a PIDE assalta-lhe a casa, encontra-o ainda na cama, lacra-lhe a porta do consultório e não tem contemplações para com a mulher, Cecília, grávida de sete meses, que também é levada no carro prisional e a seguir adoece com gravidade. Um mês depois vai a Caxias visitar o companheiro. No regresso fica às portas da morte e perde a filha, no oitavo mês de gestação. Antiga colaboradora de Mário no jornal do Liceu, Cecília Marques da Maia, formada em Românicas pela Universidade de Coimbra, continua a viver em Aveiro e a publicar, de quando em vez, romances memorialísticos. Casaram-se, pelo Registo Civil, a 19 de Dezembro de 1944, após um namoro de oito anos, e tiveram dois filhos: Rui e Clara. A ausência de cerimónia religiosa marca uma atitude do jovem casal, e em particular de Mário Sacramento. Não obstante a religiosidade da mãe, uma mulher que sempre o fascinou, Mário caminhou de uma intensa religiosidade juvenil para um racionalismo idealista, sob a influência de Eça de Queirós, António Sérgio ou Agostinho da Silva. Clara Sacramento diz da mãe ter sido "uma grande companheira" para Mário. "Sacrificou-se muito para ele ir especializar-se em Paris em gastrenterologia" e nem sempre a vida era fácil. “Fazia muitas consultas de graça, dava os medicamentos e ainda emprestava dinheiro, caso fosse necessário”. Clara recorda um episódio ocorrido com o então padre Tavares Rebimbas, que chegaria a bispo do Porto nos anos oitenta, responsável por uma obra social em Ílhavo. Sacramento "dava muito dinheiro para lá, mas depois o padre ia devolvê-lo à minha mãe, porque sabia que tínhamos dificuldades".
Apesar do carácter fechado, ao ponto de "não ter muita paciência para as nossas coisas", diz Clara, e da circunstância de passar todo o seu tempo disponível a ler, no que se incluíam as noites, Mário Sacramento era um homem de grandes amizades que cultivou intensas relações com quase todos os grandes intelectuais do seu tempo. Colaborou sucessivamente em publicações como o DL, O Comércio do Porto, Vértice ou Seara Nova. Todos lhe conheciam o ensaio escrito aos vinte anos, intitulado Eça de Queirós, Uma Estética da Ironia, ou um dos trabalhos pioneiros sobre Fernando Pessoa, escrito em Caxias em 1953 durante a sua terceira prisão. mas publicado apenas em 1959, e intitulado Fernando Pessoa - Poeta da hora absurda. Mário Sottomayor Cardia, que com ele colaborou enquanto chefe de redacção da Seara Nova, fala da surpresa que terá constituído um médico comunista a escrever sobre Fernando Pessoa". Considera-o livre inteligente, sobretudo por ter surgido numa época em que não se publicava quase nada sobre Pessoa”. Por isso se percebia "que era uma grande figura intelectual que ali estava".
O escritor Urbano Tavares Rodrigues aponta-o como "o mais briIhante de todos os teóricos do neo-realismo, dado ser de uma grande abrangência e possuir uma enorme subtileza". Com uma perspectiva diferente de Óscar Lopes ou de Álvaro Salema, Mário Sacramento "tinha uma visão muito entusiástica do neo-realismo, mas tinha, também, o desejo de que fosse mais longe na análise dos seres humanos”, diz Urbano, que realça o facto de o crítico aveirense ter capacidade de "fazer justiça aos que saíam do neo-realismo e tomaram um caminho diferente, como José Cardoso Pires ou Baptista-Bastos".
Com um trabalho ensaístico a precisar de ser resgatado, com a particularidade de ter sido construída por "um heterodoxo dentro da ortodoxia”, no dizer de Eduardo Prado Coelho, Mário Sacramento é sobretudo recordado pelo seu papel nas lutas da Oposição ao regime de Salazar. Manuel Alegre, que teve a segunda edição do seu célebre Praça da Canção enriquecida com um ensaio de Sacramento - e a partir do qual teria nascido o equivoco de o considerarem um poeta do neo-realismo -, vê nele "um homem muito limitado pela censura, pela sua vida profissional, pela actividade política". Contudo, "não foi apenas um teórico do marxismo, foi um nome marcante da cultura e da esquerda portuguesas”.
José Manuel Tengarrinha fala do papel excepcional do médico na organização do primeiro Congresso Republicano de Aveiro, que decorreu, em condições particularmente difíceis, nos dias 5 e 6 de Outubro de 1957.
Paradoxalmente, é a partir do III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Abril de 1973, que o seu nome começa a surgir como um símbolo, não obstante ter estado fisicamente ausente, por ter morrido em 1969. Milhares de congressistas convergiram de todo o país para Aveiro, uma cidade sitiada. Nos principais acessos, nas ruas da cidade, impunha-se a presença ostensiva da polícia de choque, da GNR e dos agentes da PIDE. O último acto e ponto alto desta manifestação de força da Oposição era uma romagem à campa rasa de Mário Sacramento. A pretexto de impedir que "os sequazes" de correntes oposicionistas que preconizam o uso da violência e a praticam", e a quem nada nem ninguém "podia impedir” de se incorporarem "na referida romagem, desvirtuando a sua finalidade e eventualmente provocando alterações da ordem pública", o governador civil de Aveiro, por despacho de 26 de Abril de 1973, proíbe a visita ao cemitério. Depois de todas as movimentações policiais e da grande manifestação cívica conseguida pela Oposição durante o seu funeral, em 28 de Março de 1969. Mário Sacramento voltava a funcionar como pólo aglutinador da luta.
Sottomayor Cardia foi um dos muitos que lá esteve. Assistiu às cargas policiais, tanto mais que “ia na frente da manifestação, onde só estavam as pessoas mais idosas" e ele próprio, na altura com graves problemas de visão. Foi uma jornada dramática. Os confrontos com a polícia assumiram uma violência rara. O jornal Avante! de Maio fala de uma polícia de choque armada de metralhadoras que, "acompanhada de cães, investe sobre os manifestantes com grande ferocidade, agredindo todos os que aparecem à sua frente". O fim do regime estava próximo. Marcelo Caetano, de quem Sacramento desconfiara quando o conhecera ainda adolescente, revela durante esta crise uma crispação inusitada. Era outro o tempo que nascia. Mário Sacramento, que sempre fora um crítico da hora absurda que lhe calhara viver, confessava ao seu diário, pouco mais de um ano antes de morrer: "Sempre pensei que a minha vida só começaria quando caísse o fascismo. O que estou é em trabalho de parto, ainda! Que aprenda a envelhecer um raio que os parta a todos".
Cartas para Mário
Nos anos 50 ou 60 bastava escrever num envelope: Mário Sacramento, Ílhavo, e a carta chegava ao destinatário. Muitos dos principais nomes da literatura e do ensaísmo literário desses tempos corresponderam-se com Mário. Esse é um espólio riquíssimo, ainda inédito, merecedor de um tratamento adequado ao nível editorial. A par das dezenas de cartas de Vergilio Ferreira, que ao longo dos anos manteve correspondência regular com Sacramento, avultam os escritos de José Cardoso Pires, Agostinho da Silva, Fernando Namora, José Gomes Ferreira, José Régio, António Sérgio, Urbano Tavares Rodrigues, Miguel Torga, Eugénio de Andrade, Egito Gonçalves, Hélder Macedo, Óscar Lopes, Alvaro Salema, Eduardo Prado Coelho, Mário Dionísio, Joel Serrão, Ruy Luís Gomes e tantos outros.
Se em muitos casos predominam os cartões de circunstância, quase sempre de agradecimento por alguma referência nas colunas de crítica literária mantidas por Mário Sacramento em publicações tão diversas como: Seara Nova, a Vértice, o Diário de Lisboa ou o Comércio do Porto, noutras desponta viva a polémica, não apenas inspirada em questões suscitadas pelo neo-realismo, como nas opiniões expressas pelo crítico literário. Frequentes, nos mais diferentes escritores, são as referências à interferência da censura. José Cardoso Pires, numa carta sem data, mas coincidente com a edição do seu romance 0 Delfim, cuja primeira edição é de 1968, envia um exemplar do livro para Sacramento, com os maiores desejos que lhe agrade. Por mim, confesso: mexi-lhe tanto que já nem sei". Mais adiante refere-se a um episódio passado com a censura que, "como viu, devolveu intacto o artigo sobre o Abelaira. Bastou um telefonema a perguntar com estranha indignação' o que se passava..."
Em Janeiro de 1967, Fernando Namora escrevia a Sacramento para lhe dizer que "a sua crítica (inteligentissima) não ‘passou’. Nada 'passa' sobre o livro. Têm sido feitas várias (algumas de muito interesse e-porque não dizê-lo? - entusiásticas), mas a censura elimina-as”. Dez anos antes, Namora fora solicitado a ser testemunha de Mário em mais um processo em tribunal. O escritor não recusa, mas escreve a avisar Sacramento que o seu nome "talvez o prejudique, mais do que beneficie". Não só por o seu depoimento já fazer parte do processo de outros réus, mas sobretudo devido à "campanha feita pelos jornais" a seu respeito, o que fará o nome de Namora "indesejável para a sua defesa". Acontece que, por aquela época, Fevereiro de 1957, os livros do autor de Casa da Malta tinham aparecido, pelo que diziam os jornais, numa exposição em Moscovo "e desse facto a nossa imprensa e a nossa rádio têm deduzido as habituais coisas tenebrosas”.
Particularmente curiosa e reveladora de algumas contradições e hesitações existentes no campo democrático, é uma missiva assinada por António Sérgio e enviada numa altura em que se preparava o I Congresso Republicano de Aveiro, realizado em 1957, e que, naquele ano de "eleições” legislativas, ficou para a história como uma das raras movimentações da oposição em pleno regime de ditadura. Convidado por Sacramento a participar, Sérgio responde-lhe para dizer que "eminentes republicanos" seus amigos lhe dizem, "por um lado, que o Congresso é dos republicanos do distrito de Aveiro (...); e, por outro, que consideram a realização do Congresso, neste momento, favorável à propaganda do governo junto do estrangeiro: e pedem-me que me abstenha de intervir. Não quero concorrer para acentuar divergências dentro do campo democrático, e mais uma vez me convenço que não nasci para a acção política".