Berlim era uma das poucas grandes cidades europeias que ainda não conhecia. A oportunidade
surgiu quando através do “site” do “Lernu net” foi anunciado um curso intensivo de Esperanto. Tal
revelava-se atraente porque o curso em vez de decorrer entre quatro paredes, seria orientado à
medida que visitaríamos a cidade e os seus atrativos.
Apesar da greve da Air France que quase deitava tudo a perder, lográmos, quase à última hora, um
voo da Lufthansa via Munique. E no regresso foi o mesmo, visto que a greve se manteve.
Feito um breve balanço desta aventura que a Manela e este desajeitado cronista corajosamente
empreendemos (digo corajosamente porque exigiu esforço, menos horas de sono, planeamento
cuidadoso e algum capital, embora ficássemos alojados gratuitamente na casa de um jovem e
simpático casal esperantista), podemos afirmar que valeu a pena, visto que a alma, ou a vontade,
não era pequena, como diria Fernando Pessoa.
Berlim, à semelhança de Nova Iorque, Paris, Londres, Moscovo e algumas mais, é verdadeiramente
uma capital do mundo. Nesta grande metrópole de muitos milhões de habitantes, encontra-se
gente de todas as partes do planeta que acarretaram consigo culturas, tradições, religiões e variadas
filosofias. A atestar o que refiro devo dizer que as refeições que partilhámos com os restantes
participantes do curso foram sucessivamente em restaurantes do Sri Lanka, Etiópia, Vietname e
Japão. Afinal o Esperanto é, ou não é, a verdadeira língua internacional?
O curso não foi tão intensivo como se anunciava. Constituiu mais um agradável convívio entre 14
jovens esperantistas oriundos do Reino Unido, EUA, Itália, Dinamarca, Suécia, Brasil, Colômbia e
obviamente Alemanha.
A cidade está provida duma intrincada rede de transportes públicos, cuja interpretação leva
algum tempo a dominar. É muito extensa e possui vastas áreas verdes com jardins e parques, uns
muito bem cuidados e outros nem tanto. No dealbar da estação outonal as ruas ficam pejadas
de folhagem, uma vez que a maioria da vegetação é caducifólia: castanheiros-da-índia, choupos,
diversos platanóides e sobretudo tílias. Seria deveras interessante visitar de novo Berlim quando as
elegantes tílias se encontrassem em flor, em especial a Linden Strass. Vimos também, em grande
profusão, uma espécie invasora, o ailanto, que para nada serve. Curiosamente já o tinha encontrado
muito difundido em Istambul. Teria sido trazida pela forte comunidade turca muito proeminente em
Berlim? Infelizmente não deu tempo para visitarmos o jardim botânico que se situa nos arredores da
cidade, o qual nos disseram ser dos mais importantes do mundo.
Desculpem-me os leitores este desvio para a botânica, também um dos meus “hobbies” preferidos.
Berlim, cidade de contradições e de conflitos ainda recentes provenientes de sucessivas guerras,
parece orgulhar-se das suas “feridas”. A “Topografia dos Terrores” na antiga sede da Gestapo é
um dos locais que deixa o visitante estarrecido. Abundante documentação do negro período nazi,
fotografias, explicações detalhadas de como proceder face aos adversários do regime, fossem
eles, judeus, ciganos, comunistas ou simples opositores políticos, devem ter servido de lição para a
“nossa” PIDE que tanto martirizou os patriotas portugueses.
Igualmente observámos o espaçoso complexo museológico dedicado à perseguição feita à
comunidade judaica, muito perto das Portas de Brandemburgo, ex-libris da reunificação germânica.
Como não poderia deixar de ser, levaram-nos a visitar uma parte do célebre muro que durante 28
anos dividiu a cidade. Numerosas lápides, letreiros elucidativos em alemão e em inglês, registos
de heróis e mártires, compõem um cenário que, sem mais explicações, têm o condão de revoltar o
visitante. Não há dúvida que, independentemente das contingências militares e políticas diretamente
provenientes da Segunda Guerra Mundial, a construção, em 1961, daquela muralha revela-se hoje
inábil e asneirosa. O que poderia parecer certo acabou por se tornar nefasto. Muros para dividir
povos e nações são sempre impopulares. O que é estranho é que, entretanto, outros muros se
levantaram a dividir Israel da Palestina, a Coreia do Norte da Coreia do Sul, a Índia do Bangladesh,
os Estados Unidos da América do México. Os senhores que regem o mundo parece nada terem
aprendido com o famigerado muro de Berlim que hoje é, principalmente, uma rendível atração
turística.
Muitas referências e imensas explicações denigrem por completo o que foi a República Democrática
Alemã, mostrada hoje como coisa de um passado longínquo. É certo que são os vencedores quem
escreve a História e isso está bem patente no Museu da RDA situado numa das margens do rio Spree.
Este espaço museológico é uma maravilha técnica no que respeita à criatividade e ao permanente
convite à interatividade dos visitantes. O ingresso custou 7 euros mas valeu a pena. É claro que
a História de Berlim-Leste aparece contada através dos quotidianos da época, mostrando as
fragilidades, os ridículos e os erros do sistema. A nosso ver, misturam-se verdades, meias verdades e
inverdades. O resultado é uma amálgama convincente para quem não é politizado e está subjugado
à sociedade liberal consumista que atualmente rege quase todo o mundo. Mas o trabalho está
inquestionavelmente bem feito.
Saber que esta faustosa cidade foi intensamente destruída pelos bombardeamentos aliados (EUA,
França, Inglaterra e URSS) e que em escassas dezenas de anos foi reconstruida com todos os
atributos da modernidade, não pode deixar-nos um sentimento de grande admiração a sobrepor-se
a tudo o resto.
Num passeio de barco pelo rio Spree tivemos também oportunidade de ver imponentes
monumentos do tempo da Prússia, inclusive a belíssima catedral.
Contudo, nem tudo são rosas nesta multifacetada cidade. Informaram-nos que o desemprego atinge
aqui uma cifra que ronda os 20%. Curiosamente, 20% é também a percentagem de estudantes que
fazem parte da população de Berlim e que se manifesta nos centros principais. Alexanderplatz é
um desses locais buliçosos, sempre cheio de gente nova. Outro, como não poderia deixar de ser, é
Brandemburg onde, de longe, presenciámos uma manifestação de curdos.
E eis como, mais uma vez, a pretexto do Esperanto, vimos mundo, praticámos o idioma e fizemos
amizades. Em suma: aprendemos e tornámo-nos ainda mais humildes no tocante ao esforço para
compreender os complexos fenómenos desta época que nos é dada viver.
Somos otimistas. Temos fé de que, mais cedo do que tarde, a Humanidade usará uma língua
internacional, neutra, não pertencente a nenhuma potência militar e/ou económica, flexível, de fácil
utilização para agilizar a compreensão entre os povos e constituir um instrumento de amizade e de paz: o Esperanto.
Miguel Boieiro, Alcochete, 27 de setembro de 2014
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