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Por Miguel Boieiro


Cravo


O cravo é talvez a espécie que, em todo o vasto panorama florístico, agrega, para o universo humano, maior extensão simbológica, chegando a alcançar patamares sagrados. Na sua singeleza de cor, perfume e estética, os cravos representam ideias, mitos e significados que vão muito para além da sua ornamentalidade.

Nos finais de março, tivemos ocasião de assistir a episódios das populares “Fallas” de Valência (Espanha), cuja fama atraiu, em 2024, mais de um milhão de visitantes. Era impossível tudo presenciar, dado que, em alguns locais, não se podia romper por entre a compacta multidão, atraída pela espetacularidade dos eventos. Cativavam sobretudo, os intermináveis desfiles em artísticas procissões que juntavam a religiosidade cristã ao mais puro paganismo. Aqui ou ali, também se notavam fugazes mensagens de cariz social e político, mas na esmagadora maioria dos casos, o que sobressaia era a mitologia grega, as figurações lendárias e as personagens dos contos infantis, tudo revestido de artísticas formas e cores atraentes. Depois havia o rebentamento incessante de petardos que fazia lembrar as festividades chinesas da passagem do ano lunar. E havia o fogo que tudo cremava, o fogo purificador que, desde sempre, fascinou a Humanidade e continua produzindo pirófilos e concomitantes desgraceiras criminosas, como bem sabemos.

Mas, e os cravos? Pois os cravos rubros desfilavam também nas mãos de rapazes e donzelas de todas as idades que marchavam garbosos, cadenciados por “pasodobles”. Os ornamentos e as maravilhosas vestimentas mudavam naturalmente de bairro para bairro, mas os cravos não. Eles estavam sempre presentes em todos os grupos. O apogeu dá-se na praça junto da catedral onde se ergue a imagem da Virgem dos Desamparados, padroeira da cidade. A altíssima figura representando uma atraente dama que se reputava virgem, estava toda cravejada de alto abaixo, ostentando um esplendoroso vestido rodado atapetado por muitos milhares de cravos vermelhos e brancos. Ao redor predominavam as oferendas com flores variadas mas, quem ali mandava eram os cravos.

Já com a alma lavada por tanta beleza, dei por mim a refletir. Saberão os humanos que as flores incluem os órgãos sexuais das plantas? Ora, ao cortá-las, não estão a impedir a reprodução e proliferação das espécies? Dúvida inquietante que só se dissipa quando nos lembramos que a botânica, já há milhões de anos, usa a mestria da clonagem, enquanto o soberbo reino animal, pretensamente superior, só agora parece estar a aperfeiçoar tal técnica reprodutiva.

Antes de avançarmos na descrição do craveiro, não podemos esquecer que o cravo, flor nacional em Espanha, Mónaco e Eslovénia, constitui, também em Portugal, um símbolo forte e inolvidável por estar relacionado com a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida e, especialmente, com a nossa Revolução de 25 de Abril, que, no ano presente, comemora o seu cinquentenário. Viva pois a Revolução dos Cravos!

O craveiro, designado cientificamente por Dianthus caryophyllus, pertence à família botânica das Caryophyllaceae e é uma herbácea dotada de folhas glaucas, lineares, estreitas e opostas que surgem embainhadas. Como em muitas espécies, as folhas basais são mais largas do que as caulinares. Os caules, semi-lenhosos e esguios, chegam a atingir 1 metro de altura. As encantadoras flores brotam pedunculadas no cimo das hastes e apresentam-se em panículas de múltiplas pétalas delicadas com coloridos vibrantes e forte fragrância.

Não se tem a certeza do local da origem da planta mas, sabe-se que o seu cultivo tem sido muito intenso nos últimos dois milénios, tornando o cravo uma das mais apreciadas flores de corte de todo o mundo. Existem para cima de 300 cultivares em resultado da engenharia genética que possibilita a obtenção de cravos vermelhos, amarelos, brancos, rosados e até verdes e azuis. As tonalidades podem, inclusive, integrar misturas de cores. Os cravos são hermafroditas mas, a sua reprodução dá-se, quase sempre, por hibridismo em processos geneticamente modificados.

Julga-se que a púrpura rosada era a cor original dos cravos espontâneos na natureza com duração anual, todavia, pela manipulação incessante é agora possível obter craveiros bienais e perenes com capacidade para emitir flores várias vezes durante o ano, em constante refloração.

O craveiro é de fácil cultivo, gosta de sol e dá-se melhor em terrenos férteis e drenados, se bem que o género Dianthus (cravinas), que possuímos espontaneamente em Portugal, prolifera, por vezes, em declives pedregosos. Curiosamente, o “site” Flora-on identifica, no nosso País, 9 espécies de cravinas, todas elas com 5 pétalas distendidas e não enroladas.

Quanto ao domínio da beleza e do simbolismo social, cultural e político, já estamos conversados, mas que dizer dos atributos fitoterápicos da “flor divina”, como lhe chamava Teofrasto? Atualmente, a importância comercial dos cravos tem a ver, quase exclusivamente, com a sua ornamentalidade mas, em tempos antigos, quando o Homem só dispunha dos recursos da natureza para aliviar os seus males, os cravos tinham um lugar de destaque. Às pétalas do cravo eram atribuídas propriedades sudoríferas, antibióticas, antifúngicas, sedativas e tranquilizantes. Em medicina popular usava-se a infusão das flores para aliviar debilidades coronárias, pressão arterial, transtornos digestivos, nervosismos, tonturas, vertigens, tosses, dores de dentes...

Consta-se que, ainda hoje, os chineses, elaboram tisanas baseadas nas pétalas secas para efeitos medicinais.

Esfregando as flores nas partes do corpo martirizadas pelas picadas dos insetos, consegue-se imediato alívio pela diminuição do prurido. O cravo é também um bom agente para repelir formigas.

Há ainda a referir o óleo essencial que entra na produção de perfumes, sabonetes e outros produtos.

A fragrância dos cravos plantados em meio natural sem fito-químicos é bastante superior aos provindos das estufas industrializadas. As pétalas dos cravos são comestíveis e alindam de sobremaneira a apresentação dos pratos. Cuidado, porém! Só as devemos utilizar quando estiverem isentas de tratamentos químicos, o que raramente acontece ao adquirirmos as flores destinadas às celebrações festivas.
Abril de 2024
Miguel Boieiro



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