Rota de Aquilino
por Miguel Boieiro
Não sei como agradecer o convite formulado pelo meu grande amigo Rui Vaz
Pinto, digníssimo Presidente da UNICEPE (Cooperativa Livreira de Estudantes
do Porto) para participar na excursão denominada Rota de Aquilino que, a
partir do Porto, seguiu para os locais mais emblemáticos ligados à vida e obra
do escritor Aquilino Ribeiro. Admirador deste mestre inigualável da língua
portuguesa, envergonhadamente confesso que apenas li escassa meia dúzia
das sua obras. Esta memorável viagem, muito bem organizada, constituiu um
estímulo para aprofundar valiosos conhecimentos.
A feliz iniciativa, que se realizou nos dias 1 e 2 de outubro, foi abrilhantada por
um guia excecional, o advogado e escritor Manuel de Lima Bastos, um
“aquiliano de alma e coração” que já escreveu onze livros sobre a vida e a obra
do notável mestre. Sem o seu contributo esta digressão perderia,
seguramente, 90% da sua valia. Lima Bastos não é apenas um estudioso e
escritor consagrado, com a sua ampla cultura e fenomenal memória, é um
exímio contador de deliciosas histórias que maravilham quem as escuta.
Na sequência deste breve introito, não se pense que irei fazer um relato
minucioso e completo sobre a viagem efetuada. Estou consciente das minhas
limitações, agravadas pela perda parcial da audição e acrescida pela não
habituação aos sotaques nortenhos. Direi apenas, muito ao de leve, o que mais
me sensibilizou, que naturalmente pode não coincidir com as opiniões dos
restantes elementos da comitiva.
1 – Infestantes
A primeira impressão foi negativa! Dada a inclinação quase maníaca para a
ecologia e a botânica, registei com desgosto, a proliferação de espécies
invasoras a medrar nas cercanias do Porto, ao longo da autoestrada A29, com
realce para a erva-dos-pântanos (Cortaderia selloana) que, a despeito dos seus
atraentes penachos, se aliava aos eucaliptos e às acácias para asfixiar
completamente as plantas endémicas da região. Felizmente que, ao entrarmos
nas “Terras do Demo”, o fenómeno esmoreceu. Bom, mas isso não é para aqui
chamado e nada tem a ver com o nosso Aquilino.
2 – Soutosa
Aquilino veraneou com frequência nesta povoação do concelho de Moimenta
da Beira. Fizemos uma visita pormenorizada pela habitação que conserva os objetos do quotidiano do escritor e constitui um interessante museu. Na
respetiva loja adquiri “Flora e Avifauna do Concelho de Moimenta da Beira”,
edição da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, para ler e consultar
devagar.
Noutro edifício, apreciámos a avantajada Biblioteca de Aquilino Ribeiro que
nos disseram estar incompleta dado que o espólio foi dividido pelos
desavindos herdeiros.
Ficou-nos na retina o espaço ajardinado onde preponderam altíssimas tílias e
uma carcomida estátua de São Pedro, resquício primitivo do escritor, filho de
padre e seminarista nos seus primeiros tempos de crente católico. Felizmente
(digo eu que me prezo de ser agnóstico), o escritor que nasceu em 1885, já no
estertor da monarquia, cortou radicalmente com a religião. Em 1907 aderiu à
Maçonaria (Carbonária).
3 – Santuário da Lapa
No dizer de Lima Bastos, este santuário era o mais frequentado em Portugal
antes do fenómeno de Fátima. Aquilino bem o descreve nos seus romances.
Era aonde os pais conduziam as crianças para as educarem nas supostas
virtudes da cristandade. Para aqui se dirigiam magotes de peregrinos,
bramindo a sua fé e suplicando favores à nossa Senhora da Lapa. A igreja,
encravada num enorme rochedo granítico ostenta muitas curiosidades, entre
as quais, a réplica de um crocodilo com dentes arreganhados. Muitas histórias
e lendas se contam acerca da serra e dos milagres da santa. A este propósito,
cabe mencionar a enorme surpresa que foi a de ouvirmos, a findar o almoço
do derradeiro dia, a bonita voz de Ana Ribeiro que, à capela, cantou o “Adeus à
Serra da Lapa” de Zeca Afonso:
Adeus ó Serra da Lapa
Adeus que te vou deixar
Ó minha terra, ó minha enxada
Não faço gosto em voltar.
Companheiros de aventura
Vinde comigo viajar
A noite é negra, a noite é dura
Não faço gosto em voltar
………………………………………………….
Ana Ribeiro, ilustre participante desta memorável excursão, integra a
Associação José Afonso e canta maravilhosamente. Foi, em meu entender, um
dos momentos altos deste passeio.
4 – Convento de São João de Tarouca
Julga-se que foi o primeiro convento erigido depois de adquirida a
nacionalidade. Impressiona pela sua dimensão e pelas esculturas e pinturas
que contém. Ouvimos com atenção a descrição e as vicissitudes sofridas pelo
monumento ao longo de turbulentas eras. O cristianismo, não só como
religião, mas também como movimento gregário de imposição coletiva,
entranhou, por costume, ou por força, nas mentes das populações ao longo de
séculos. Esse fenómeno reproduziu-se e ancorou tão fortemente que penetrou
na genética dos vindouros, manifestando-se nos nossos dias ainda com vigor.
Surpreende como Aquilino Ribeiro, nascido e criado em ambiente férreo e
ultrarreligioso, logrou romper com a teia que o manietava desde criança.
Admirável!
5 – Ucanha
Não muito distante de Tarouca, Ucanha é uma pequena povoação que outrora
teve grande protagonismo. Quem atravessava a sua ponte medieval sobre o
rio Varosa tinha de pagar portagem junto à emblemática torre que, ao
contrário de outras, não tinha fins militares. A aldeia está dotada de típicos
restaurantes e lojas de especialidades locais. Destacam-se as bebidas
confecionadas com bagas de sabugueiro, árvore predominante na zona.
6 - Mosteiro da Tabosa
Visitámos as ruínas do imponente Mosteiro, integrado na Ordem de Cister – cuja designação correta é “de Nossa Senhora da Assunção” – e cuja edificação nos fins do séc. XVIII em estilo barroco tardio causou a admiração de Aquilino, porque “já imperava o ceticismo elegante”. Embora fosse dos últimos conventos a ser edificados em Portugal, acabou, poucos anos após a extinção das ordens religiosas, por ficar completamente abandonado. Atualmente é privado. O seu proprietário tem-se esforçado para lhe dar um ar digno, limpando e reconstruindo as partes mais interessantes onde se salientam as magníficas colunas toscanas. O local é muito húmido como se pode aquilatar pela existência das predominantes rochas graníticas bastante musgosas.
7 – Carregal da Tabosa
Chegámos finalmente à aldeia onde nasceu Aquilino Ribeiro. Lá se encontra a
igreja paroquial do século XVI, onde o sacerdote, pai do escritor, rezava missa.
Mais à frente, está o chamado Páteo do Aquilino com a modesta casinha onde
terá nascido. Uma lápide atesta a visita de Xanana Gusmão. A Câmara
Municipal de Sernancelhe esmerou-se a embelezar o local, pavimentando com
cubos de granito todo o percurso e dotando-o de elementos escultóricos.
Patente está também a divisa do escritor: “Alcança quem não cansa”.
8 - Sernancelhe
Fomos extremamente bem acolhidos pelo Sr. Presidente da edilidade, Carlos
Silva Santiago, no salão nobre da Camara Municipal. Embora fosse domingo, o
Presidente largou os afazeres particulares (as suas filhas gémeas faziam, nesse
dia, 14 anos) para nos receber, acompanhado pelo Sr. Vice-presidente, Carlos
Manuel Ramos dos Santos. Após os discursos da praxe, presenteou cada
visitante com o romance “Uma Luz ao Longe”, recentemente reeditado pelo
município. Foi também a oportunidade deste escriba lhe oferecer o livro de
sua autoria “As Plantas Nossas Irmãs-1º volume”, o qual insere, na descrição
do pinheiro-bravo, o parágrafo inicial da “Casa Grande de Romarigães”.
Apercebemo-nos bem que Manuel de Lima Bastos é muito estimado em
Sernancelhe. Para além dos aturados estudos sobre Aquilino, ofereceu dezenas
de livros para a biblioteca municipal e mantém amistosas relações com a
edilidade desde o tempo do anterior presidente da Câmara, José Mário
Cardoso, que aqui “reinou” mais de duas dezenas de anos, pugnando pelo
prestígio da sua terra. Segundo nos foi dito pelo atual presidente, outra figura
ilustre da nossa História está também ligada a Sernancelhe: acabaram por
descobrir que o Marquês de Pombal ali teria nascido.
A visita prosseguiu até à Casa do Turismo onde provámos as iguarias típicas da
região e abastecemo-nos de prendas alusivas ao mestre Aquilino e à terra que
o viu nascer. Sernancelhe é justamente considerada a capital da castanha, cuja
Festa, com programa sedutor, decorrerá de 28 a 30 de outubro.
Seguimos depois para o Centro Histórico. Penetrámos na Matriz, igreja
românica do século XII. A competentíssima cicerone que nos acompanhou
detalhou aspetos interessantes deste templo dedicado a São João Batista: o
arco triunfal policromado, as pinturas murais de influência bizantina, as
gravações, à entrada, inscritas nas pedras graníticas, só visíveis por
especialistas, a curiosa cachorrada exterior e muito mais. Durante todo o
tempo, um jovem, pertencente ao coro local, tocou música sacra, criando o
ambiente adequado à excelência da visita.
Fomos depois ao Museu Padre Cândido que expõe espólio religioso
proveniente da Matriz. O tempo já era curto. Ficará para outra ocasião analisar
em pormenor outras preciosidades do Centro Histórico: o pelourinho
quinhentista, o antigo edifício da Câmara, a Casa dos Condes da Lapa, o Solar
dos Carvalhos, a Casa da Comenda da Ordem de Malta e outros elementos
patrimoniais de grande relevo. Ficou o desejo premente de voltarmos a
Sernancelhe!
9 – Aguiar da Beira
A última visita foi para Aguiar da Beira, concelho que, com Sernancelhe e
Moimenta da Beira, constitui o fulcro territorial do romance “Terras do Demo”.
Continuámos nas terras graníticas, características desta região da Beira Alta
que produz bom vinho, boa broa, algum pão-alvo, carne de cabrito e “com sua
licença” também de porco. Os concelhos visitados capricham na promoção de
meses enogastronómicos com receitas aquilinianas para atrair os turistas. A
propósito, entre as muitas histórias contadas pelo incansável Lima Bastos,
advogado de profissão e homem culto de fácil falar, registámos a que segue: -
Alguém de fora teria gabado o apurado sabor das batatas da região e
perguntado o seu porquê. Logo o interlocutor respondeu: São batatas “nitas”
que se devem apenas a três elementos, terras granitas, águas granitas e
caganitas.
A paragem em Aguiar da Beira, por exiguidade de tempo, apenas deu para ver
a fonte de chafurdo medieval e a Domus, local descoberto com assentos de
pedra onde os homens-bons do concelho se reuniam, em remotas eras, para
dirimir questões e deliberar sobre os assuntos comunitários. Era a democracia
no seu alvor!
10 – Conclusão
Termino esta breve resenha louvando, de novo, a organização deste passeio
cultural realizado em excelente tempo meteorológico pela Direção da
prestigiada UNICEPE. Louvores e agradecimentos vão para:
- Rui Manuel Vaz Pinto – Presidente da Direção da UNICEPE;
- Manuel de Lima Bastos, advogado e escritor;
- Carlos Silva Santiago – Presidente da Câmara Municipal de Sernancelhe;
- O excelente motorista do autocarro em que viajámos, Sr. José Assunção;
- Os guias locais nos vários lugares visitados;
- O Hotel Verdeal de Moimenta (vila denominada capital da maçã) pelo
excelente alojamento e refeições;
- O restaurante Quinta de Santo Estêvão (Aguiar da Beira) pelo farto almoço-
buffet do último dia;
- O impecável grupo que integrámos, pela simpatia, ajuda mútua e disciplina
no cumprimento escrupuloso das regras estabelecidas.
Outubro de 2022
Miguel Boieiro
Associado nº 7176 da UNICEPE
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