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REFLEXÃO ENTRE DOIS COPOS


por Adão Cruz



Todos aqueles que me conhecem e já me leram sabem que eu considero o vinho como a melhor droga estimuladora da criatividade, moderado, claro está. Meio copinho de tintol ou mesmo de branco fresco nestes dias de verão, é uma bênção do céu.

Gostaria que nesta extemporânea reflexão coubesse tudo o que há de bom no mundo, mas infelizmente há muito mais de mau do que de bom, o suficiente para gerar a extinção do ser humano, a espécie que, apesar de tão infinitesimal no Universo, mais tem envergonhado a natureza e mais tem dado cabo de tudo o que, naturalmente, poderia criar o equilíbrio e a harmonia.

O vinho, como disse, é uma espécie de fio-de-prumo que equilibra o nosso pensamento. O pensamento é o resultado de triliões de neuro-transmissões, e não é grosseira metáfora dizer que o vinho é uma espécie de óleo que ajuda um poucochinho a lubrificar as nossas sinapses neuronais. Quem quiser acreditar que acredite, quem não quiser que beba água. Sem pretender colidir com a ética e a estética da existência, o vinho permite chegar mais depressa à interface que eu considero como fronteira entre a condição antropológica e a condição universal do ser humano. Só aí, calmamente sentados em qualquer tosca pedra que tenha sobrevivido à mão humana, poderemos ver ao longe o infinito e poderemos sentir-nos capazes de reconhecer o grão de areia que somos.

O ser humano é a sua mente, uma complexíssima estrutura de sentimentos e pouco mais. Tudo o resto é um aglomerado de acessórios. O sentimento é a única expressão de vida, dentro da cadeia neurobiológica. São muitos os sentimentos que conhecemos, mas estamos muito longe de conhecer a sua infinidade. Cada segundo da nossa vida é um pedacinho de um qualquer sentimento de que não nos damos conta. Penso que o sentimento é um fenómeno indispensável ao mais pequeno gesto vital. Tenho, como toda a gente, muita dificuldade em analisar os sentimentos, isto é, em definir as suas incomensuráveis formas e manifestações. Os sentimentos constituem um mundo tão vasto de diferenças que me parece estultícia pretendermos dissecá-los e dimensioná-los fora das tentativas do campo neurocientífico. E muito menos separá-los dentro do cesto da mente, como se de fruta se tratasse.

Vem isto a propósito de uma conversa acompanhada de um branco fresco, versando aquilo para que se sente atraído quem não fala de futebol e já está enjoado de política. A Arte e a Poesia. Sentimentos nobilíssimos, todavia muito mal tratados, muito mal sentidos, tentando expressar-se, tantas vezes, através de palavras e gestos de pretensiosa alma seca, talvez sem o humilde, filantrópico e filosófico calor de um copo de vinho. Eu diria que a Arte e a Poesia, que eu considero os mais nobres sentimentos a seguir ao sentimento da Solidariedade, existem em todos nós. Contudo, muitos dos que os vivem ou aparentam vivê-los são, por vezes, os seus próprios predadores, aqueles que lhes destroem a alma, ou seja, a música e a harmonia, ignorando que as palavras e os gestos são parte integrante das cintilações do infinito.

À nossa saúde!

31/07/2022

Adão Cruz

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