Espaço Associados



      

A PENÚLTIMA LÁGRIMA


por Celso de Lanteuil
 

 

Ana Margarida de Carvalho UNICEPE, 14/09/2018


E aqui, estou, novamente. Em voz, silenciosa, com o coração a bater. Cá estou na UNICEPE uma vez mais. Próximo dos livros, livreiros, autora e leitores. Atento as palavras de Ana Margarida de Carvalho. Ela fala da escrava Anastácia, dos seus maiores defeitos que restou no imaginário de um povo, a rara beleza e o "ser caridosa". Relembra a estátua da escrava que lhe pareceu esquecida num canto, sobrevivente de uma igreja na Bahia também abandonada, que lhe lembrou uma casa que ardeu diante do acaso.

A casa da família, da bisavó, que deixou um luto que parece não ter fim. A casa que falava e se movimentava pelos corredores e cômodos, e ainda vive no subconsciente da autora, com seus sons, cheiros, histórias, quartos, objetos e sua gente. E nos falou da aldeia, até o momento em que a casa ardeu, queimando até a penúltima lágrima.

Sim, da última fileira de cadeiras observo a escritora e me dou conta que a última lágrima está quieta. Recolhida num lugar da história, como um vigilante noturno que observa o movimento das sombras nas ruas e atento, espreita pelo último drama da noite. Nos seus "Pequenos delírios domésticos", Ana Margarida de Carvalho nos leva a tocar, espreitar e cheirar o "Chão Zero", título do primeiro conto da sua última obra. Aquele piso testemunha, que deste poderá resultar o passado da existência que ali floresceu.

"Nenhum óbito" a declarar, escreveu a romancista, mas a perda lá está. A última lágrima é irmã de Ana Margarida e continua a espreitar o passado. Que ela desperte e fale, é uma possibilidade. E se assim acontecer, nos contará algo cuja poeira do fumo escondeu no Chão Zero. De certa maneira, tudo indica que essa lágrima vem e volta para nos lembrar que a casa cujo fogo fez desaparecer, de certa forma vive em cada um de nós, graças a narrativa de Ana Margarida de Carvalho.

LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS