Espaço Associados



       EVANGELHO SEGUNDO ME PARECE

José Vigário Silva

PORTO, DEZEMBRO DE 2006





1. Ao longo dos séculos, muito se escreveu, a torto e a direito, sobre a vida de Cristo e, em seu nome, a história está repleta de comportamentos e acções as mais variadas. Foi pena que não tenha deixado umas memórias, um catecismo ou um tratado da convivência humana. A sua imagem e o seu estilo foram moldados, após a sua morte, no contexto das religiões solares que vigoravam nas grandes civilizações que precederam a cultura judaico-cristã. Os seus biógrafos revelam conhecer aquelas civilizações e nelas contextualizaram a personalidade de Cristo. Se depurarmos os evangelhos dos traços e esquemas de exposição e caracterização da pessoa divina de Cristo, encontraremos um homem sobredotado que enfrentou a sociedade e os poderes da sua época e deixou marcas profundas no seio da população, imprimindo aos que o ouviram e seguiram uma ideia de destino individual e colectivo, eivada de utopia, mas fonte duma dinâmica de verdade, justiça e solidariedade que fundaram uma ética autenticamente universal. E diz-se “universal”, porque todas a aceitam como mito, embora não a pratiquem por comodidade, fraqueza e prevalência do interesse egoísta e imediato.

2. As instituições básicas do cristianismo, que moldam a sua filosofia, são, em primeiro lugar, a crença no deus único, forjada na monotonia dos desertos, na necessidade de unir povos diferentes (famílias, tribos e gentes) e no escopo de obter uma organização unitária. Moisés, Cristo e Maomé viveram o deserto. Moisés pretendeu manter unidas as tribos de Israel; Cristo desenvolveu a ideia de unidade do povo de Israel contra a ocupação romana; e Maomé procurou juntar as diversas tribos que acampavam no Norte de África e da Ásia Menor. Moisés esforçou-se por ser o guia do povo de Israel, concentrando nele a energia colectiva e orientando-o a caminho da Terra Prometida, com uma lei comum – Os Dez Mandamentos. Cristo rodeou-se duma equipa de colaboradores, correu o território a pregar e foi levado em triunfo a Jerusalém, como descendente do trono do Rei David. Maomé encabeçou os seus seguidores, por todo o lado, e empreendeu a caminhada triunfal de Meca a Medina. Em segundo lugar, o Cristianismo debita, na unidade divina, o dogma da Trindade Santíssima, que, em várias versões, já fazia parte da civilização celta, assíria, caldaica, persa, egípcia e dos matra. Esta asserção parece ter sido introduzida pelos sábios egípcios que escreveram os evangelhos, no século II depois de Cristo, em Alexandria – João, Mateus e Lucas. Não passa duma constante das denominadas religiões solares. Em terceiro lugar, a ideia duma mãe, que se mantém virgem, já existia nas religiões celtas, como forma de serem obtidos filhos de deus através de mulheres sem cometerem o “pecado da carne”. Em quarto lugar, a ideia da salvação individual e do culto dos mortos nasce no princípio dos tempos, face à recusa da morte como constante da cultura do homem na Terra, e veio a ser elaborada filosoficamente por Sócrates, Platão e Aristóteles, ao conceberem a dualidade corpo/alma e encontrando nesta última a ideia de projecção na eternidade. Até à noção grega de matéria e espírito, os homens ficcionavam uma segunda vida idêntica à primeira, e até colocavam alimentos nas sepulturas, ou tratavam os mortos como deuses, ou simplesmente os faziam lembrar através de memórias. Aqui, abre-se parêntesis para enunciar um aspecto dessa última concepção. Queimavam-se cadáveres e no local onde ficava o monte de cinzas, colocava-se um busto. A palavra “busto” significa “queimado”, e ainda aparece com esse significado em “com – bust – ível”. Em quinto lugar, a ideia dos “santos”, que, embora se tente considerar simples mediadores junto de Deus, são adorados. Essa ideia nasceu da necessidade de absorver o panteísmo grego e romano, na primeira fase da cristianização, pois era difícil impor nas cidades a religião do deserto – um só deus – e tornava-se relevante permitir a esses povos a troca dos seus variados deuses por outros – os santos. Anota-se que, tal como nas religiões solares, os santos cristãos adoptaram uma auréola na cabeça, que constitui a representação do Sol.

3. Um aspecto importante do Cristianismo, a quando do seu lançamento após a morte de Jesus, sobretudo na área do Império Romano, foi o esquema de marketing e de sinais usados. Desde logo, a palavra Cristo não era nome de Jesus, mas palavra grega, com o sentido de Salvador, adoptada como “marca” e meio de divulgação das ideias de Jesus. Deveriam dar a denominação de “Jesuísmo” para a doutrina de Jesus, mas esse termo não pegou, sendo adoptado o conceito de Salvador (Cristo) e a palavra “Cristianismo”. Depois, a representar os cristãos aparece o desenho dum peixe, em vários locais, como símbolo dos seguidores de Cristo. Em grego, peixe é representado pela palavra “ICTUS”. Essa palavra é composta pelas primeiras letras da expressão: Jesus Cristo Filho de Deus Salvador (IESUS CRISTHOS TEOU UIOS SOTERAS) . Um outro símbolo primitivo e ainda hoje usado é um X com um P sobreposto. Trata-se das duas primeiras letras da palavra Cristo em grego: XPISTOS. O X (qui) é o C e o P (rô) é o R. Um outro dito vulgar aparece na sequência INRI, que significa “Jesus Nazareno Rei dos Judeus” (IESUS NAZARENUS REX IUDEORUM). Significa isso que houve uma estratégia bem montada para o lançamento das ideias de Cristo entre os povos exteriores à Judeia. Aliás, o grupo cristão da Judeia, aparentemente dirigido por um irmão de Cristo, de nome Tiago, teve uma rotunda derrota, desenvolvendo uma rebelião que viria a ser completamente sufocada pela violência romana e com a destruição do Templo de Jerusalém. E, curiosamente, é no interior do Império Romano, à volta do Mediterrâneo Oriental, que o Cristianismo vai desenvolver-se com a acção eficaz dum homem de vulto, de elevada cultura e de profundo saber – S. Paulo. Este pregador militante activo do ideal cristão, em suas cartas, releva as comunidades cristãs de Roma, Corinto, Galácia, Éfeso, Filipos, Colossos, Tessalónica, Macedónia, Creta, Dalmácia, Tróia, Antioquia, Icónio, Listra, Mileto, Nicópoles, Damasco, Acala e outras, que se situavam, em termos da geografia actual, na Itália, Grécia, Turquia, Síria, Chipre, Creta, Tunísia e outros países próximos.

4. Maria, natural da Galileia, e ao que parece descendente do Rei David, era uma menina sensata e acreditava no amor. Aparentava o aspecto duma linda jovem, quando um centurião romano, líder e chefe duma expedição militar de ocupação da Palestina, a conheceu. Era ele também um jovem, de 30 anos, que, tal como os demais militares em comissão de serviço, fazia galanteio às raparigas da terra ocupada. Ontem como hoje, o amor vence barreiras, e, no caso, eram muitas. Desde logo, não era adequado que uma donzela de país ocupado namorasse um militar da potência ocupante. Depois, não fazia sentido que uma judia se detivesse em relação de amor com um pagão, adstrito a uma religião de heróis e de mitos ligados a tudo quanto se via na natureza e se procurava na indústria, no comércio e na guerra. Os judeus acreditavam num deus único, que, vivendo noutra galáxia, tinha contactos, através dos profetas, com um único povo, seu eleito, o povo de Israel. Finalmente, os pais de Maria não viam com bons olhos essa relação e tal como acontecera no Antigo Egipto, com Moisés, esperavam derrotar o invasor e retomar a relação com o seu deus. Mas Maria apaixonara-se pelo centurião, via nele um homem forte, bem constituído, de olhos claros e de fino trato. Por isso, tinha encontros com ele, à escondida dos pais e da vizinhança. Por sua vez, ele via nela uma companheira ideal, de origem nobre e de condição social elevada, o que estava bem para sua dignidade militar. A convivência foi-se desenvolvendo e o centurião falava-lhe da cidade imperial, da grandeza de Roma, da vida que se lá fazia e começou a convencê-la a seguir com ele ver o fausto daquela cidade de sonho e passar a ser sua companheira para o resto da vida. A jovem Maria deixou-se entusiasmar por essa ideia, mas a sua consciência bailava no lá-e-cá. Trocar a capital do Império pela modesta cidade onde vivia valia demasiado no âmbito dos seus sonhos; mas deixar a terra e a família e as ligações ancestrais era um pesado prato da balança. Manteve, porém, essa relação sem saber o que decidir. Mas o calor da paixão cresceu e tornou-se irreversível. Precisava de desabafar com alguém, trocar impressões, obter opiniões, mas esperava sempre o pior. Ninguém lhe ia aprovar a fuga para Roma. Os judeus constituíam uma comunidade fechada, voltada para um passado glorioso e impregnada da religião até dizer chega. Lembrou-se então de consultar uma prima, que vivia longe e era uma pessoa aberta, sem complexos religiosos e capaz de a apoiar na decisão. Chamava-se Isabel e era casada com um fariseu, que passava o tempo a cumprir preceitos religiosos, o que a irritava solenemente. Foi ter com ela, expôs-lhe a sua situação e ela incentivou-a a desposar o centurião. Como este estava prestes a regressar a Roma, ao concluir-se o tempo de comissão militar na Palestina, Maria procurou-o e disse-lhe: “Vou contigo!”.
- E os teus pais sabem?
- Não. A minha prima conta-lhes depois.
Nessa altura o militar romano ponderou como levar uma donzela consigo, no meio dos soldados, sem que isso fosse permitido pelo regulamento. Fez diligências e procurou autorização superior. Em vão! Um militar podia servir-se das filhas dos ocupados, mas era-lhe vedado integrá-las na centúria em viagem. Que arranjasse forma de a fazer chegar a Roma por outro meio. Certo é que, apesar de vários esforços e tentativas, o centurião seguiu para Roma e deixou a jovem Maria na Palestina, no estado de gravidez, resultante das suas divagações amorosas. Ao saber disso, Maria chorou a bandeiras despregadas, entrou em desespero e foi acolher-se à casa da prima Isabel, onde se deteve durante três meses. Contou-lhe tudo o que se passava. Isabel, mulher activa e compreensiva, ao prever o espectro do apedrejamento da prima, grávida fora do casamento, moveu os cordelinhos e procurou arranjar-lhe uma solução. Conhecia um quarentão, também da descendência do Rei David, chamado José, que se dedicava á profissão de carpinteiro e que, em tempos, namoriscara Maria e deixara passar os anos, mordido por essa paixão mal sucedida. Lembrou-se dele e viu a hipótese de obter esponsais com a jovem quase mãe solteira. Para ele seria ouro sobre azul e ela evitaria ser apedrejada, quando o povo descobrisse a sua gravidez sem varão de companhia. Isabel moveu influências, pôs em evidência a sua habilidade de casamenteira e conseguiu enlaçar José e Maria para todo o sempre. Mas fê-lo, escondendo a razão da pressa em vê-los casados e alegando apenas a motivação normal. Maria era uma jovem bonita e prendada, de ascendência nobre, tinha já trinta anos e precisava dum esposo. E Isabel lembrava-lhe que ele sempre se batera por ela, e só por motivos de diferença de idade, ela se afastara, nos verdes anos; mas, agora, madura e sem complexos, estava disposta a dar o nó, criando uma família nobre, e, quem sabe?, um herdeiro ao trono de Israel. Conjugando os interesses e notificadas as pretensões recíprocas, Isabel levou José a sua casa e pô-lo a dialogar com Maria. Ficou tudo tratado. E ambos se desposaram.

5. Maria foi acolhida por José em sua casa, na Galileia. Tal como era próprio da época, Maria entretinha-se nas lides domésticas, tratando da limpeza e conforto do lar, fiando linho, costurando e preparando as refeições, enquanto José serrava madeiras, construía portas e armários e ia aplicá-los à casa dos clientes. Aparentemente, tratava-se dum casal feliz e sem mácula. José orgulhava-se da sua linda esposa e esbugalhava os olhos nela, acariciava-a a tudo o momento e dava-lhe máxima atenção, quando estavam juntos. Maria, porém, correspondendo aos mimos do marido, esboçava sorrisos de compromisso e escondia a mácula com que o enganava. Um certo dia, começou a levantar-se o véu da tramóia de Isabel: Maria, aproveitando um momento de carícias e afagos do seu esposo, segredou-lhe: “Vais ser pai!”. José exultou de alegria e, como homem temente a Deus, e virtuoso, logo ajoelhou e deu graças pela felicidade que lhe acabava de chegar. Abraçou Maria, beijou-a nos lábios e, num tom frenético, declarou-lhe: “Se for menino, terá o nome de Abraão; se for menina, será Zara”. Buscava assim nomes da sua ascendência para atribuir ao nascituro. Maria não se pronunciou, mas o seu rosto atirava para o ar alguma divergência. Corria-lhe o pensamento da paixão do centurião, que a deixou abalada, e, sem jurar vingança, alimentava a esperança de que o domínio estrangeiro chegaria ao fim e seu filho, se fosse varão, podia ocupar o trono, retomando a dinastia de David. Por isso, achava melhor encontrar na voz da tradição profética um nome que estivesse previsto como condutor do Povo de Deus. Dias depois, em convívio com José, disse-lhe:
- Não achas que o nosso filho, se for varão, pode ter um papel a desempenhar, quando acabar a ocupação romana?
- E achas que está próxima a retirada?
- Tenho um pressentimento que me diz que o nosso povo se vai revoltar. Está cheio de pagar impostos ao Imperador.
- Será?! alvitrou José.
- Além disso, retorquiu Maria, não vejo repetição de nomes na genealogia da família: Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacob, Jacob gerou Judá, Judá gerou Farés, Farés gerou Esron, Esron gerou Arão, Arão gerou Aminadab, Aminadab gerou Naassou, Naassou gerou Salmou, Salmou gerou Booz, Booz gerou Obed, Obed gerou Jessé, Jessé gerou David, David gerou Salomão, Salomão gerou Roboão, Roboão gerou Abias, Abias gerou Asa, Asa gerou Josafat, Josafat gerou Jorão, Jorão gerou Ozias, Ozias gerou Joatão, Joatão gerou Acaz, Acaz gerou Exequias, Exequias gerou Manasses, Manasses gerou Amon, Amon gerou Josias, Josias gerou Joaquim, Joaquim gerou Jaconias, Jaconias gerou Salatiel, Salatiel gerou Zorobadel, Zorobadel gerou Abiud, Abiud gerou Eliacim, Eliacim gerou Azor, Azor gerou Sadoc, Sadoc gerou Aquim, Aquim gerou Eliud, Eliud gerou Eleazar, Eleazar gerou Matan, Matan gerou Jacob, teu pai. - Repete-se Jacob, filho de Isaac, e Jacob filho de Matan! – criticou José. - Sim, mas, de qualquer modo, tenho cá uma coisinha dentro que me diz que o nosso filho vai ter um papel relevante, e o melhor é dar-lhe um nome que o identifique entre os outros e deles de distinga.
- Deus falou a Acaz e disse-lhe que o libertador de Israel seria Emanuel. Seguindo a vontade do Altíssimo, talvez, fosse de optar por esse nome – disse José.
- Não pode ser – retorquiu Maria – porque Emanuel será filho duma virgem. E, depois de longa conversa, assentaram que, se fosse rapaz, teria o nome de Jesus que, na sua língua, significava “Deus é Salvador”. Era o sexto sentido da mãe que, à boa maneira da sociedade judaica, ligava os nomes à divindade e exercia através deles o espírito profético. Gerado por um romano e adoptando um pai judeu, o filho da Maria vingaria o desdém do progenitor pela sua mãe, sucederia aos reis e profetas da linhagem de Abraão, expulsaria o ocupante e recriaria o reino de Israel. Assim, seria o Salvador do seu povo, com a ajuda do deus dos antepassados.

6. Ao fim de três meses após o casamento, José verificou que o seio de Maria crescera desmesuradamente e ficou perturbado. Serão gémeos? – pergunta-se a si próprio. Mas, começou a vir-lhe à ideia a pressa com que Isabel o contactara e lhe propusera os esponsais. E matutava nisso, dia e noite. Terei eu casado com uma mulher grávida? E de quem? Certo dia, Nataniel, seu amigo de infância, entrou-lhe na oficina e, no seu tom irónico e maldoso sempre a fazer chacota, alvitrou:
- Então, José, casaste tarde mas não perdeste tempo! Qualquer dia, aí temos um bebé a chorar. Não me digas que provaste o fruto antes de plantar a árvore?! Está tão cheia que ou já te veio à mão madura, ou andaste a chasqueá-la às escondidas e meteste o ferro antes do tempo. José ficou irritado e atirou-lhe com um sarrafo, dizendo: Vai-te daqui e deixa de provocar-me. És sempre o mesmo! Não acho piada nenhuma às tuas graçolas. Nataniel vira Maria, sentada à porta da cozinha, a dobar lã. E trocara com ela alguns galanteios. Em tempos, cortejara-a sem êxito. Era já pai de quatro filhos e, por isso, tinha a noção da gestação e do tempo, reparando que a barriga de Maria aparentava aproximar-se dos nove meses, o que contrastava com cerca de metade de duração do convívio dela com José. Mas Nataniel viera ter com José para lhe encomendar duas portas para sua casa. Estavam velhas e precisavam ser substituídas. Acalmou José e, depois do negócio, foi-lhe dizendo: Consta-me que Maria andou enfeitiçada por um militar romano. Da fama não se livra! E sabemos lá o que aconteceu! E, dito isso, despediram-se. José interrompeu o trabalho e pôs-se a pensar com os seus botões: A Isabel veio muito mansinha propor-me o casamento. Ela já é useira e vezeira neste tipo de intervenções. Quem sabe se ela me veio enganar com a história da paixão de Maria e do argumento da idade!? Mas essa do romano!... Toda a gente sabe e diz que os militares da ocupação se atiram às nossas raparigas. Mas Maria? Não pode ser! Não acredito! Arrumou as ferramentas e, sem que Maria se apercebesse, desceu a um olival deserto, sentou-se e abriu os olhos para o Deus de Abraão, Isaac e Jacob e pediu-lhe ajuda. Deus, porém, habitava na sua cabeça e no seu coração e era aí que se travava a sua luta. Dizia-lhe a razão que desposara uma jovem desvirgulada e em condição de parir. Mas o coração falava mais alto, e ele adorava Maria. Regressou a casa, cabisbaixo, deixando transparecer algum desgosto. Maria apercebeu-se. E logo imaginou do que se tratava. Ficou perdida entre o companheiro, que nunca desejara, e o risco que corria se algo se abrisse à vizinhança. Humilde com José, trocou com ele um olhar de ternura e baixou-se a lavar-lhe os pés. Após a refeição da noite, foram deitar-se. Ela fingia dormir, enquanto ele, sonhando alto, lhe foi dando a conhecer o seu drama. José não podia perder Maria a troco de nada. Mas o parto aproximava-se e tudo se ficaria a saber. De manhã, José levantou-se e, num tom brutal e receoso, disse a Maria:
- Já vi que tu e a tua prima me enganaram. Quem é o pai da criança? Maria balbuciou palavras que José não entendeu, entrou em desmaio, ficou lívida e caiu no chão, permanecendo, por momentos, sem fala. José temeu o pior. Mas o seu coração iniciou fortes batimentos e esteve a perder os sentidos, de joelhos no soalho e com os olhos fitos na sua esposa. Não sabia o que fazer. Agarrou ternamente a mão direita de Maria, fria como glaciar, deu-lhe duas amenas sapatadas no rosto e esperou que ela voltasse a si. Quando lhe viu os olhos, de novo, abertos, com o ar triste de quem sofre e a ternura de quem ama, começou a varrer-se-lhe da memória o sentido da realidade e entrou no sonho romântico de alimentar a sua velha paixão. Maria recuperou do colapso, levantou-se, com a ajuda de José, e seguiu em silêncio para a cozinha, enquanto este desceu à oficina e iniciou a jornada de trabalho. Foi um dia de cortar à faca. Pela cabeça de José passavam todos os pensamentos, os mais tenebrosos. Repudiar Maria? Mas isso ia expô-la ao desprezo da sociedade. Ficar com ela? Teria contra ele a lei e a moral. E se chegasse à opinião pública a tese de Nataniel? Seria o fim de Maria. Esta, nas lides domésticas, cogitava. Sem ter dormido a noite inteira, acoitou-se ao banco preguiceiro e entrou em sonhos horríveis. Via-se no meio da praça, a ser apedrejada por todos os presentes. Gritava, pedia clemência. Mas a tradição mostrava enfurecidos, mesmo os amigos, os familiares e os seus próximos. À noite, alquebrada e cheia de mazelas no coração e na mente, Maria foi-se deitar ao lado de José. E dormiu desalmadamente. No dia seguinte, José acordou-a bem cedo e segredou-lhe: “Vamos sair de Nazaré! Passamos pela tua prima Isabel, e ela tratará de dar a notícia da nossa retirada. Vou trabalhar para Belém. Se não arranjarmos casa, vamos ao monte e pedimos abrigo aos pastores em qualquer gruta. Aí montarei uma oficina e não faltará trabalho. Embora meus pais sejam de lá, ninguém irá reparar na tua gravidez e aí nascerá o nosso filho. Não troçarão de ti nem de mim”. Maria ficou encantada com a decisão de José. Vestiu-se e preparou uma refeição ligeira, enquanto José seleccionava as ferramentas e as colocava no dorso dum dos seus burros. O outro levá-los-ia pelos caminhos pedregosos até à cidade Santa de David. No percurso, deram a boa nova à prima Isabel e esta rejubilou de alegria ao ver salva a dignidade da Maria e consolidado o casamento, cuja ruptura tanto temera. E, dirigindo-se a Maria, vaticinou: “Bem-aventurado o fruto do teu ventre. Será um rapaz, retomará a dinastia de David e será rei, expulsando o inimigo estrangeiro e devolvendo a dignidade ao povo de Israel”. Lenta e penosamente, os dois asnos lá seguiram, de colina em colina, com pequenos descansos para comer e beber. E José, conhecedor das estradas, conduzia, a pé, ambos os animais por atalhos com receio de encontrar gente conhecida que levasse a notícia antes de Isabel. A certa altura, repousando junto duma fonte, Maria confidenciou a José:
- Tenho um palpite que o nosso filho vai entrar na História.
- Queira Javé! – concluiu José.
- Vamos educá-lo com rigor e fazer dele um homem notável. O nosso povo sofre com a ocupação. Os nossos chefes estão mancomunados com Roma. É preciso levantar o moral da nossa gente e dar-lhes um chefe. E ele terá de sair de casa de David.
- Dizes bem, opinou José. Tudo faremos para o tornar grande. Mas, agora, é preciso que ele nasça com saúde e pujança.
Retomando a viagem, José agarrava a corda presa ao aparelho do burro da frente, onde seguia a esposa sentada de lado sempre preocupado com o seu equilíbrio e o seu bem-estar. Chegados a Belém, José parou as arreadas, ajoelhou e pediu ao Deus de Abraão, Isaac e Jacob a sua protecção. Depois, deu uma volta à procura de casa. Como previra, não encontrou qualquer local onde habitar, fazendo-se ao monte. Chegado a meio da encosta, viu rebanhos de cabras e ovelhas, pastor aqui pastor ali, e começou a reparar nas grutas onde se recolhiam os rebanhos e seus zeladores. Parou a caravana, fez descer Maria e pôs os burros a dessedentarem-se num corrido de água através de fragas. Depois, dirigiu-se a um ancião, cumprimentou-o com toda a vénia e fez-lhe uma proposta: - sou viandante, sigo para os lados do Egipto. Minha mulher está grávida em fim de tempo. Corri a cidade e não encontrei onde pernoitar. Serás tu capaz de me dar guarida na tua gruta até que o bebé nasça? O velho cofiou as barbas, passou a mão pela cabeça e disse:
- A minha gruta é pequena. Mas o Tabed, que anda ali arriba, tem gruta que chegue para ele, para ti, para tua esposa e para os teus burros. Vou falar-lhe. Dito isto, Moab, assim se chamava o ancião, subiu um pouco e gritou por Tabed. Este, num rápido, abeirou-se dele e logo disponibilizou a gruta e conduziu José ao seu interior. Escolheu um recanto, separado do resto da caverna, onde ele habitualmente dormia, mandou os filhos Zabadel e Becá mudar as mantas e pôr o leito com todo o conforto. Depois, pediu a Zabadel que matasse um cordeiro e o amanhasse para o jantar, enquanto Becá se encarregara dos burros, dando-lhes palhas secas. Maria logo foi convidada a reclinar-se no leito, na companhia de José. Este, porém, momentos depois, foi descarregar as ferramentas do burro maior e arrumá-las como era seu hábito. Seguiu-se uma ceia, oferecida por Tabed ao casal e em que participaram alguns dos pastores da vizinhança, além do anfitrião e seus dois filhos. José devorou a fome com o cordeiro assado à pastor, enquanto Maria timidamente ia metendo na boca bocados de carne, acompanhados de pão e de água. Reparando nisso, Tabed, com ar bonacheirão dirigiu-se a Maria, nestes termos: - A senhora precisa de comer para que o rapaz saia forte. Deixe-se de cerimónias. Mandei preparar o cordeiro por causa de si. Maria, tímida e em baixa voz, ripostou:
- Muito obrigada.
- Não tem que agradecer! Connosco é assim! Amanhã, terá novo cordeiro para encher bem as peles e alimentar o garoto que vive no seu seio. E assim será, enquanto aqui estiver. José interveio, dizendo, enquanto fazia estalar na boca o resto do último copo de vinho:
- Nem sei como agradecer-lhe. Se quiser, já que sou carpinteiro, posso arranjar-lhe a cerca, pois as tábuas já estão velhas e a carunchar!
- Bem, é boa ideia… murmurou. Nesse caso, Zabadel, vai amanhã à cidade a casado meu primo Sabid e pede-lhe tábuas para o redil. Umas trinta devem chegar. E traz pregos. Perante isso, José ofereceu-se para ir à cidade, com Sabid, utilizando os seus dois burros para o transporte dos materiais.
- Não! – retorquiu Tabed. Não vais deixar a tua mulher sozinha, no monte e em véspera de parir. Aproveito a sugestão, e vai também o Becá e o filho de Moab com os teus burros, e as três azémolas trazem tudo numa só viagem. Concluído o repasto, foram todos dormir. Maria, na leveza do ar puro do monte, arrimou profundamente, ajudada pelo cansaço da viagem. José chegou-se a ela, mimosenando-a durante o sono e vivendo a felicidade etérea dum jovem. A sua exaltação e a ansiosa espera do parto gastaram-lhe parte da noite. Acalentava a ideia de que o tempo de gestação chegara ao fim: dentro de horas, poderia agarrar o bebé, levantá-lo ao ar e oferecê-lo ao Deus de Abraão, Isaac e Jacob. Na manhã seguinte, quando já ninguém se encontrava no redil e começavam a chegar os burros carregados de tábuas, Maria acusa dores e antevê a eminência do parto. José aflige-se, conta a Becá e este chama o irmão, e vão os dois à cidade, cada um em seu burro, buscar uma parteira, chamada Zebedeia, muito famosa na região. Uma hora depois, lá estava ela, junto de Maria, a dar-lhe as instruções para facilitar o parto. Mas a futura mãe não lhe prestava atenção e gritava com dores. Pela hora noa, abriu-se-lhe o ventre e saiu um menino forte, pesado e corpulento, mediante a intervenção competente da parteira. Esta tomou-o nas mãos, deu graças a Deus e mostrou-o a José, que ajoelhou. E, empunhando-o, pôs os olhos no céu e dirigiu-se ao Deus de Abraão, Isaac e Jacob, dizendo:
- Obrigado. Seja ele digno dos profetas e da dinastia de David. Fazei-o forte e poderoso. Tomai-o como vosso! Depois, colocou-o junto de Maria, com ternura, e cobriu-o com a manta. Olhando-o, de soslaio, a jovem mãe, refeita das dores, exalava um sorriso de doçura, uma expressão de contentamento e um pensamento distante. Nisto, o menino chora. A mãe põe-lhe as mãos, puxa-o para cima dos seus seios e aperta-o como coisa sua. José não saía da beira da cama, enquanto Maria descansava, com as mãos no filho e visando o rosto daquele, com um contraditório sentir. Intervala os olhos com pequenas quebras de sono e repouso. A certa altura, Maria dirigiu-se a José, dizendo:
- Já estou bem. Vieram as tábuas, podes ir arranjar o redil.
Entretanto, os do monte fizeram passar a novidade, de boca em boca, e outros pastores, curiosos e espantados, foram aparecendo para ver o menino, trazendo crias para alimento da mãe, assim como mel silvestre, frutos e leite. Estava José a acabar a reconstrução do redil, quando vê chegarem três homens, bem vestidos e arreados em seus camelos. Pararam, desceram das alimárias e tentaram dialogar com ele. José, porém, não entendia nada do que eles diziam. Chamou Simeão e Moab e, por sinais, foram trocando informações com os três estrangeiros. No fundo, o que eles queriam era instalar-se, arranjar comidas e bebidas, para si e para os camelos e passarem no monte alguns dias, pois sabiam que um cometa atravessaria os céus e dali seria visto. Depois de os compreenderem, os pastores deram-lhe estalagem nas grutas. Dormiam de dia e passavam as noites a olhar para o céu. E lá viram o cometa. Afinal, eram sábios astrónomos, vindo do lado do Oriente. Como permaneceram ali cinco dias e cinco noites, terminaram por se aperceber de que nascera Jesus e também quiseram honrar seus pais com prendas.



7. Quando os sábios do Oriente se foram embora, José cogitou com Maria:
- Devíamos ir ao templo, a Jerusalém, levar o menino e circuncizá-lo, porque se trata dum primogénito. Estamos perto… Sem dizer sim nem não, e continuando a esconder o seu segredo, Maria ripostou:
- Tu é que sabes!
Mas José não queria voltar para Norte, com receio de encontrar pessoas conhecidas em Jerusalém, muito frequentada por gente de todos os lugares da Palestina, que se deslocava ao templo. Ao contrário, comentava com os seus botões, mesmo Belém não era local seguro. Havia os comerciantes, que, vindos do Norte, caminhavam até Hebron e às cercanias do Mar Morto. Hesitou entre cumprir o dever, perante o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, e defender a dignidade da sua estimada esposa. Por fim, decidiu-se:
- Olha, Maria, corremos montes e vales desde Nazaré, atravessámos a Samaria, por Jericó, evitando Jerusalém… Ele há tanta gente lá. Acho que o melhor seria continuar a viagem para Sul, e, em pouco tempo, entramos no Egipto. Um carpinteiro leva a vida em qualquer lugar.
- Como queiras.
Nesse dia, José agradeceu aos pastores a hospitalidade e preparou tudo, para seguir caminho, no dia seguinte, bem cedo, aproveitando a frescura da manhã. E assim aconteceu. Avançaram para o Ocidente, em direcção a Gaza, e daí flectiram para uma cidade modesta, junto ao Mediterrâneo, já nas terras do Egipto. Inicialmente, José ocupou parte duma casa, onde vivia Oseiafá, viúva dum antigo mareante. Montou uma oficina e procurou serviço. Nos começos, foi difícil arranjar trabalho, mas, a pouco e pouco, lá se integrou na pequena sociedade e passou a viver da sua arte. Quando dominou os problemas da sua integração, construiu uma carpintaria com todos os quês e pês e teve de admitir pessoal para o ajudar. O menino ia crescendo, como os outros meninos, amparado pela sua mãe. Maria e José eram felizes e a vida corria-lhes bem. A certa altura, Maria vê-se, de novo, grávida. José desfazia-se em afectos e carinhos, num apoio doentio, sempre correspondido pela meiguice e os olhares serenos da sua adorada esposa. Ao fim do tempo, repetiam-se os procedimentos e, de comum acordo, deram ao recém-nascido, outro rapaz, o nome de Tiago. Um dia, encontrando-se todos à beira do mar, ele com o Tiago ao colo e ela com Jesus pela mão, Maria olhou o horizonte e recordou o centurião, do outro lado do Mediterrâneo, em terra distante, na faustosa Roma… Apercebendo-se da fixidez do rosto de Maria, em direcção à lonjura, José exclamou:
- Como é imenso o mar! Como é inebriante ver as águas ondeadas, sempre iguais, serenas… O que estará para além? Maria manteve o silêncio, enquanto suportava os ruídos do seu coração.

8. Passara o tempo das preocupações, os miúdos já estavam crescidos e as saudades da terra começaram a vir ao de cima.
- Que achas, Maria? Vamos voltar, instalamo-nos na Judeia e ficaremos perto de Belém.
- Como queiras – disse Maria, com a habitual doçura.
Foram pensando no regresso, prepararam tudo e meteram-se ao caminho. Atravessaram a Judeia, em direcção a Belém, mas não quiseram ficar por aí. Resolveram subir para Norte, até à Galileia, e voltarem a Nazaré, onde se fixaram. Nessa altura, Jesus tinha oito anos e Tiago seis.

9. Aproximando-se a Páscoa, José propôs a Maria uma viagem ao templo de Jerusalém, com os filhos, a fim de celebrarem a memória passada do povo judeu e de circuncisar os garotos, explicando que a falta se deveu ao facto de terem nascido e vivido no Egipto. E lá foram. À volta e no interior do templo, encontravam-se velhos ortodoxos, conhecedores da história do seu povo e das previsões dos profetas, que não cessavam de rezar e jejuar pela libertação de Israel, a levar a cabo por Javé através dum escolhido. Vários deles, incluindo Simeão e Ana, ao verem Jesus e ao certificarem-se da sua ascendência, logo louvaram a Deus e viram nele o futuro arauto da sua gente. Tinha a legitimidade da casa de David e palpitava-lhes que seria agora, que se cumpria o que a tradição dizia. Aprenderam, numa crença sebastiânica, que havia de chegar um menino, que iria crescer e tomar a liderança do povo, denunciaria os poderosos e conduziria as tribos de Israel à libertação. E apostavam que Jesus era esse menino! Outros, que por ali andavam, ao ouvirem essa premonição de tais anciãos, também se convenceram disso. E manifestaram, de boca em boca, que viram no templo o príncipe herdeiro da casa real e que ele seria em breve o senhor da Palestina. Impressionado, José regressou a Nazaré e confidenciou a Maria:
- Estou a matutar nos dizeres da Ana e do Simeão. Nunca sabemos os desígnios de Deus… Temos de estar preparados e atentos. Maria, ouvindo-o com toda a atenção, fez um silêncio e, depois, adiantou:
- O importante é educá-lo para as grandes coisas. Quem sabe?!
- Mas como? – perguntou José.
- Vamos falar com Nicodemos, que é um homem influente e sabedor e ver qual a sua opinião. Sempre é o primogénito varão da casa de David…
- Dizes bem.
Jesus, desde cedo, mostrou-se inteligente e curioso. Fazia muitas perguntas à mãe e ao pai. Gostava de saber tudo, e os porquês de tudo. E, ao ouvir as conversas dos pais acerca do seu futuro, ficava meditativo e silencioso. Em casa, Jesus dividia-se entre a mãe e o pai. Metia-se nas lides domésticas e Maria ia-lhe transmitindo a história das tribos, comandadas por Moisés, desde o Egipto até à Terra Santa. Falava-lhe na escravidão do seu povo no Egipto e na situação colonial face ao Império Romano. Ajudava o pai na carpintaria e fulminava-o com questões acerca de Abraão, Isaac e Jacob e do rei David e Salomão e da relação dos profetas com o seu deus. E maravilhava-se com as múltiplas cenas, dando particular relevo à figura de Moisés. Certo dia, conforme o combinado, Maria e José visitaram Nicodemos e pediram-lhe conselho sobre a educação de Jesus, que se lhes aparentava como muito evoluído para a sua idade e não queriam deixar de desenvolver-lhe a formação o mais possível. Depois de os ouvir pacientemente e de testar os conhecimentos de Jesus, Nicodemos ofereceu-se para o acolher em sua casa, durante algum tempo, e fazê-lo conviver consigo e com um tal Anaef, grande conhecedor da história do Povo de Deus. Assim, dos dez aos doze anos, Jesus conviveu com Nicodemos e vários sábios da época, sendo seu discípulo dedicado. Quando Maria e José voltaram ao templo de Jerusalém, passados dois anos, verificaram que Jesus já discutia com os doutores da lei, encantando-os com a sua preparação cultural. Quando os pais decidiram regressar a Nazaré, levando consigo Jesus, criou-se um incidente: Nicodemos entendia que Jesus deveria aprofundar os estudos numa comunidade essénica, nas margens do Mar Morto; mas José, sabendo que isso implicava o afastamento do filho durante dezoito anos, opôs-se. Maria, cordata, sensata e desprendida, ficou perplexa: a distância de Jesus, durante tanto tempo, incomodava-a; mas queria o seu bem e criara a expectativa de que ele seria um sábio. Ao ver José exaltado com Nicodemos, e no sentido de arranjar uma solução, propôs que fosse o filho a decidir aquilo que queria. Jesus, muito pronto e aguerrido, declarou peremptoriamente que queria seguir a sugestão de Nicodemos, vencendo, com essa determinação, o veredicto de seu pai. Assim, foi Jesus para umas grutas, próximas de Qumran, e aí, no meio de sábios, alguns já centenários, passou grande parte da sua vida, decorando passos da história, aprendendo pensamentos, estudando a Natureza, iniciando a introdução à arte de governar e contactando com os processos de cura de doenças. Teve como preceptor um velho sábio, de nome …………., que o acompanhava a maior parte do tempo, sempre a expor-lhe, até à exaustão, quanto sabia da Vida, da História e da Natureza. E foi-se formando. Levava uma vida monástica e de sacrifícios, colaborando também nos serviços domésticos e no tratamento das terras da comunidade. Jesus notabilizou-se como o melhor membro da escola essénica: adquiriu, com profunda inteligência, todos os conhecimentos, desde a área das plantas e das terras, e seus efeitos na saúde, até ao domínio do pensamento, em termos de filosofia, de teologia, de política e de medicina. Era um sábio. Com ele estudava João Baptista, seu primo, um pouco mais velho.

10. Aos trinta anos, Jesus acabou o tempo de recolhimento e estudo e ficou mestre. Ganhou o direito de exercer a medicina, a discussão filosófica, a pregação teológica e participação na vida pública. Arranjou uma série de colaboradores – os apóstolos – e passou a andar de terra em terra, curando doentes, ensinando, pregando e enchendo as cabeças de ideias. Tornou-se famoso como médico e pregador. E foi arrastando consigo as pessoas que o ouviam e lhe espalhavam a fama. Um dos aspectos mais relevantes da sua intervenção pública teve lugar, quando foi provocado para expressamente se pronunciar sobre se concordava com a ocupação romana da Palestina. E, em frase inteligente e bem delineada, respondeu: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Esta frase encobre uma leitura sobre o conceito que os judeus tinham da sua nação: entendiam que eram o povo eleito de Deus e que era este que os governava através dos profetas, reis e sacerdotes. Por isso, o povo de Deus não era um povo de César: o povo de Deus era de Deus e o povo de César era de César. Assim, o sentido dessa frase era esta: César pode mandar em tudo o que quiser, mas não no povo de Deus (Israel). Manifestou, assim, Jesus o entendimento de que Deus, através dos dirigentes da Palestina, desejava a expulsão dos romanos e o fim da ocupação. E como havia cumplicidade política entre os chefes religiosos desse tempo e os chefes políticos de Roma, essa doutrina de Jesus veio a ser considerada como oposta à dos dignitários religiosos. E estes desenvolveram influência, quer junto do procurador romano, quer junto do rei-palhaço dos judeus, no sentido da punição exemplar de Jesus, como agitador das massas populares em ordem a efectuar um levantamento contra o Imperador Romano. Nesse contexto, e como é costume nas revoluções, as massas populares erigiram Jesus em seu ídolo e caudilho e tentaram proclamá-lo rei. Organizaram um cortejo, em Jerusalém, e aclamaram-no rei dos judeus. Essa exposição pública criou movimentos, ao nível das chefias, que vieram a cortar-lhe o passo. Jesus escondia-se, em acampamento distante, com os seus seguidores: mas um deles traiu-o e anunciou o esconderijo. Jesus foi preso e condenado à morte. Assim, acabou a sua vida pública, tinha ele trinta e três anos, sem alcançar o almejado objectivo de descolonização da Palestina. Com medo que lhes acontecesse o mesmo, os seus seguidores negaram a ligação às ideias dele. E terminaram por fugir, uns para cada lado, abandonando a Palestina. Só o irmão de Jesus, Tiago, se manteve na Palestina e tentou reorganizar um grupo de acção que terminaria vingado pela força do exército romano, dezenas de anos após a morte de Jesus. Há várias histórias de milagres, idênticas às que hoje se contam de médicos e curandeiros. Já naquele tempo eram conhecidas as propriedades curativas de ervas, de argila, do vinagre, do azeite e outros que, às vezes, davam resultado. Também já naquele tempo havia curas de teor psiquiátrico, em que a intervenção activa dum terceiro e a colaboração activa do paciente davam resultado. E, quanto ao Mar da Galileia, importa lembrar que, no Inverno, chegava a gelar, pelo que atravessá-lo a pé, não era nada de anormal. Por outro lado, sendo um mar interior, a sua salimidade era de teor elevado, o que permitia maior resistência aos corpos, impedindo ou dificultando o mergulho.

11. Jesus, sob a marca de Cristo, veio a servir de inspiração a S. Paulo para criar uma religião alternativa às religiões solares tradicionais e às religiões panteístas praticadas à volta do Mediterrâneo. Os povos já começavam a não acreditar nas tradições; tinham a consciência de que os cadáveres se decompunham; os deuses criados a todo o momento já não satisfaziam o pensamento filosófico, sendo demasiado concretos; esses deuses também tinham defeitos e não ofereciam credibilidade. As histórias de Jesus, ligadas aos conceitos tradicionais da história do povo de Israel e das suas relações com Jeová, perpassados pelo pensamento grego e a ciência de Ptolomeu, e mantendo alguns aspectos das religiões solares, vieram a permitir criar um deus abstracto e só com qualidades – as máximas previsíveis pelos homens. Daí criou-se um ideal de perfeição, um conjunto de regras lógicas de concepção e aderiu-se a um deus distante, credível e explicável. E foi fácil, com uma estratégia bem montada, divulgar a nova religião, mesmo cedendo à tradição panteísta com a introdução da ideia dos “Santos” – quase perfeitos, veneráveis e úteis.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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