Espaço Associados



      


Vem, Poesia!



por Mário Vale Lima



Quando chega a Primavera volta a espectacular floração azul das glicínias com o seu aroma agridoce sobre muros e portais. A elas antecipam-se as ameixoeiras dos jardins, numa erupção de pétalas breves que atapetam de branco o chão das praças. Este olhar poético é improvável no dia-a-dia, em que "passamos pelas coisas sem as ver/gastos como animais envelhecidos ", subjugados pela rotina, sem tempo de contemplar o prodigioso ciclo das ameixieiras e das glicínias.

Nem todos aguardam de forma jubilosa esta época de renascimento da natureza que a simbologia da avizinhada Páscoa copia. Para alguns a primavera traz sofrimento, alegoria do martírio e da paixão de Cristo que nesta estação se celebram: o suplício das crises de asma, das cefaleias vasculares, da euforia desenfreada ou da melancolia mortal da doença bipolar, e tantas outras.

Não poderia então a Unesco ter escolhido melhor data, 21 de Março, para assinalar e celebrar a Poesia, essa brisa de beleza que traz mais cor à vida e consola a desventura.

Yevtushenko, poeta, russo, dissidente e pacifista, dizia, já em 1992, que "(...) a poesia é a educação da delicadeza na percepção do mundo". E acrescentava: "Estamos a assistir a uma conspiração internacional da vulgaridade, triunfante contra a educação da delicadeza humana". Hoje o sentido daquela definição é da maior premência e o teor daquela denúncia acentuou-se atingindo níveis de verdadeiro horror: o dinheiro tudo corrompe, a aparência vale mais que a essência, impera a estética do futebolismo e da passerelle. Mas se a injecção permanente da vulgaridade é inevitável, também o é a resistência contra ela, sendo a poesia "uma asa de vento a que agarrar-se para fugir" ao horror alcançado pela vulgaridade.

" A poesia é a única prova concreta da existência do Homem", nas palavras de Garcia Marquez e, nas de Yevtushenko, "quem não tem poesia interior, sem dar conta, deixa de ser pessoa, converte-se num vegetal, num animal, numa coisa; deixa de ser humano"; sem dar conta, deve repetir-se. Há, corroborando isso, iletrados que nada sabem de trovas ou de versos, de alegorias ou metáforas, mas que por uma intuitiva "delicadeza na compreensão do mundo" caminham pela vida como verdadeiros poetas.

Os poetas, mensageiros da "delicadeza na percepção do mundo", a relembrar "o milagre do pão sobre a mesa", como Neruda, ou a crer, como Sofia "(...) que seria possível construir a forma justa/ de uma cidade humana que fosse/ fiel à perfeição do universo". Vem então, Poesia, rainha das belezas do mundo, vem feita claridade das manhãs primaveris e silêncio das noites estreladas, mesmo só por este dia, para louvar a Vida cintilante como o azul das glicíneas e breve como pétalas das ameixieiras.



Mário Vale Lima
Médico
mvalelima@gmail.com







LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS