por
Mário Vale Lima - médico
Quem vai parar a lembrar os mortos? "Morreu, está morto!... siga o
jogo e venham os golos!", assim banalizou a morte, em directo para a TV,
um apressado adepto após o infrutífero socorro a outro adepto atingido
por um very light no final da Taça em 1996.
Os mortos não valem nada, "ninguém é mais pobre que os mortos".
Por isso lhes suprimiram o feriado de 1 de Novembro, Dia de Todos os
Santos no calendário litúrgico e, desde há séculos, da celebração do Dia de
Finados, vulgo Dia dos Mortos, assinalado no mesmo calendário a 2 de
Não sendo um mero feriado civil também não era apenas um
feriado religioso. Chamemos-lhe feriado "civilizacional" porque, embora
desde tempos milenários reportasse ao poder religioso, com a laicização
dos cemitérios, oriunda da revolução francesa, a sacralidade dos mortos
não se confina ao pensamento religioso sendo também um ritual de laicos
evocador da morte. Reside nele o mais sério dos fundamentos pelos quais
o Estado deve instituir um feriado. Ao aboli-lo menosprezaram o véu de
transcendência que nesse dia a todos amortalha.
Ainda há poucas décadas o Dia de Finados era colectivamente vivido
com dor existencial, em recato e introspecção e, crentes ou não, todos
eram convocados, nesse dia especial, a pensar na morte e a recordar os
que já haviam partido. Até à década de 60 do séc. XX em muitas regiões
nortenhas, na véspera do Dia de Defuntos, grupos de homens percorriam,
no silêncio da noite, os montes em volta dos povoados a "apregoar as
almas". Este ritual constituía uma teatralização da morte que sobreviveu
até há pouco nas comunidades rurais. Na actualidade todas essas
representações desapareceram banidas pelas quimeras da imortalidade,
excluindo da vida a morte, que deixou de acontecer em casa, foi ocultada
às crianças e enxotada pelos adultos. Será cada vez mais assim.
Estes mesmos ventos varreram ou marginalizaram o ensino da
Filosofia, tal como o da Religião, esta por via da laicidade do Estado. Em
que disciplinas se falará agora de temas como o sentido da vida e da
morte, a finitude e a eternidade, o luto e os mortos?
Pensar a Morte neste dia: que enfado! dirão os entretidos na
trivialidade dos dias a trabalhar e a ver futebol, desatentos à inesperada
rasteira com que ela nos atira de bruços à sepultura.
Num dos seus poemas, J.L.Borges interroga-se: «Onde estarão
aqueles que passaram?/ Pergunta a elegia dos que se foram já (...).
"Aqueles que passaram" representam o supremo património
imaterial que a civilização e a cultura consagraram num feriado com
infinito sentido porque "os mortos sobrevivem sempre": reaparecem na
cor dos olhos, na configuração do rosto, na forma de falar, de fumar, nas
pegadas desta caminhada a que chamamos vida.
Mário Vale Lima - médico
mvalelima@gmail.com
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