Não somos do tempo de todos os tempos, pessoas, lugares e instituições: somos do nosso tempo e nele tomamos as nossas raízes.
O nosso tempo tem marcas, que nos identificam e nos fazem rever-nos uns com os outros.
Não somos do tempo dos Moreiras, dos Silvas, dos Barbosas, dos Martins, dos Oliveiras… Mas somos do tempo dos da Pinta, dos Bernaldos, dos Canastras, dos Espanhóis, dos Chinos, dos Lenhas, dos Januários, dos Espirras, dos Charrés, dos Tarrés, dos da Mana, dos do Alves, dos Botelhos, dos Gaios, dos Cavadas, dos Pinteira, dos Sapos, dos Chavascas, dos Moleiras, dos da Guilherma, dos Paninhas, dos da Rosaira, dos da Moreira, dos Penetras, dos Cascaneiras, dos Violas, dos Porquinhas, dos Carrilhanos, dos Tinocos, dos Meio-quilo, dos do Reitor, dos do Vira-o-trole, dos da Couta, dos Massas, das Liceiras, dos Torneiros, dos da Libória, dos Polícias, dos Barriguinhas, dos Chechos.
Não sabemos a motivação de maioria desses nomes, mas eram designações ou alcunhas de que nos socorríamos para nos identificarmos.
Não somos do tempo das ruas com nome próprio… Mas somos do tempo das designações de sítios e lugares, como a Senhora das Neves, Trás-do-Moura, Lajes, Trás-do-Cano, Fonte, Fim do Mundo, Costiela de Cima e Costiela de Baixo, Largo da Macaró, Caminho Velho e Caminho Novo, Cruz, Campo da Bola, Aldeia dos Lavradores, Aldeia Nova, Pesqueira, Barraco da Macaró, Solagares, Agra, Bouça, Corpilheira, Pereiras, Praia das Mulheres, Porta do Charré, Quelha da Macaró, Rua de Vinagre, Sobreiral, Marecos, Moinho do Azeite, Laranjas Azedas, Moinho do Linho e Curva de Marecos. Com estes e outros nomes referenciávamos os pontos de ida ou de passagem.
Não somos do tempo dos cafés e restaurantes, nem das lojas de moda ou supermercados… Mas somos do tempo da venda do Moleira, da venda da Guilherma, da venda do Meio Quilo, da venda da Palmira, da venda da Laura, do talho da Almerinda, do sapateiro e poeta Bastos, das barbearias do Luís e do Tinoco, das carvoeiras, do Ti Zé Canastreiro, do Barenga alfaiate, do droguista João dos Ferros, do Marceneiro Silva e da Padaria do Vassoura. E tínhamos à porta o sardinheiro, o azeiteiro, a mulher dos panos, a leiteira, a padeira, e, de longe a longe, o cobrador da Sociedade Fúnebre de S. Bento das Peras de Rio Tinto, para quem quotizávamos em ordem a ter dinheiro para o caixão no momento da morte.
Havia o clúbio, fazíamos as necessidades na necessaira, bebíamos auga, fechávamos as jinelas e comíamos o caldo e o conduto, em três refeições – almoço, jantar e ceia. E os lavradores, que não alinhavam nas mudanças de hora, adoptavam cinco refeições: mata-bicho, almoço, jantar, merenda e ceia.
Predominavam as bolsas de linhagem à tiracolo, onde colocávamos o livro, a lousa, a pena, o caderno e um pedaço de broa. E, em dias de chuva, cobríamo-nos com um saco, dobrado em forma de capuz, que mais não servia do que para ensopar a água contra o corpo. Mas não havia guarda-chuva. E também não havia sapatos: descalços, de chancas de madeira ou de chusos, lá subíamos e descíamos para a escola e para a igreja. Também não havia sobretudos ou gabardinas, mas havia frio.
A escola, numa única sala, tinha as quatro classes, correspondendo cada uma delas a uma fileira de carteiras. Era de manhã e de tarde.
No recreio, divertíamo-nos com o jogo da bogalhinha, em cinco buracos cavados na terra; com o jogo da concheirinha, usando caricas de garrafas de cerveja, para com elas, em espaço pré-definido, perseguir uma meta, por sucessivos toques com a acção do dedo médio sob o polegar; jogávamos à tica, contra uma parede, ora com concheirinhas ora com botões, procurando que caíssem a menos de um palmo dos concorrentes; jogávamos ao trinca-espada, formando dobrados, dois ou três, contra uma parede, e recebendo os saltadores em cima do lombo; saltávamos ao eixo, em sequência, colocando-se uns em posição de cerviz dobrada enquanto outros, colocando-lhe as mãos em apoio nas costas, os ultrapassavam; jogávamos à bola, cinco de cada lado, e duas balizas referenciadas por pedras; lançávamos o pião, com a faniqueira, e fazíamos disputas à nica, na tentativa de destruir o pião dos adversários com pancadas do nosso pião; corríamos o arco com a guia, quer em disputa, quer usando-o como entretém de viagem; jogávamos às escondidas, ficando um com a cabeça fixa e mãos nos olhos, a contar até 10, enquanto os restantes se deslocavam a procurar um esconderijo, perdendo aquele que fosse descoberto em primeiro lugar e não ganhasse em corrida até ao ponto de referência; jogávamos à casquinha, utilizando portas como baliza e tonas de laranja como bola.
Nesse tempo, cantava-se: “Olha a mala, Olha a mala/Olha a malinha de mão/Não é tua, nem é minha/É do nosso hidrovião”. E: “Quem passa por Alcobaça/Não passa sem lá voltar/Por mais que pense e que faça/Não lhe passa da lembrança/Porque não pode passar” E ainda: “Não há maior desengano/Nem vida que dê mais pena/Do que a vida dum cigano/Atravessar a fronteira/Para ser atravessado/Por uma bala certeira/E tudo porque o destino/Só fez dele um peregrino/Companheiro do luar/O pobre judeu errante/Que não tem pátria nem lar”.
Este é o meu testemunho de infância que alguns de vós ratificarão, por nele se reverem e reverem esse tempo.
E outros, que nasceram mais tarde, podem ler aí as suas raízes, porque as gerações sucederam-se, superando-se umas às outras, face à inevitabilidade do progresso. E o estado da geração seguinte é preparado pela geração anterior.
Quando recordo o passado, orgulho-me do presente, porque é sempre honroso ver o trilho ascendente da nossa vida e esse benefício só se colhe quando comparamos o hoje e o ontem.
Vejo em vós os meninos da escola de Atães de há 50 anos, os meus companheiros de sofrimento, mas também testemunhas da nossa alegria colectiva.
JOSÉ VIGÁRIO DOS SANTOS SILVA – Associado nº 2248
Junho de 2006
(Texto preparado para um encontro de colegas de escola de há mais de 50 anos)
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