por
José Viale Moutinho
- Um episódio em 1968
Corria 1968 e eram os tempos da Poesia Experimental. Ana Hatherly e EM de Melo e Castro eram os líderes do grupo. Os outros eram o António Aragão, o José Alberto Marques, a Salette Tavares, o Herberto Helder, alguns mais; no Porto, o Abílio-José Santos e eu aderimos um tanto tardiamente, mas enquanto ele ainda ficou por lá, ainda que desorganizado, eu afastei-me, logo a seguir a ter participado na exposição luso-britânica em Arlington Quadro, em Inglaterra. Na Galeria Alvarez, ainda na Rua da Alegria, no Porto, produzi umas sessões com o grupo, que tiveram alguma repercussão. Porém o que quero contar-vos é que nesse ano, tendo assente a minha amizade com o pintor Marco, que acabava de fazer a sua primeira exposição na Galeria Divulgação, por meu intermédio ele aproxima-se dos poetas e começa a editar uns postais de poesia experimental ilustrada por ele, em que figuraram mesmo poetas brasileiros. A Ana Hatherly achava graça à barba loura do Marco e dizia que ele parecia o figurão dos maços de cigarros Players, e brincava dizendo a frase publicitária: Players please!
Ora a Ana o Marco e eu, em 1968, decidimos avançar com uma colecção de livros, cujo design gráfico foi cometido ao Marco. O primeiro livro era o meu primeiro texto, Natureza Morta Iluminada, uma narrativa, com uma ilustração do Fernando de Oliveira, outro excelente pintor que já lá está no Oriente Eterno. E o meu retrato também é da autoria de um camarada morto, o Américo Diégues, repórter-fotográfico do Jornal de Noticias, diário em que eu então trabalhava havia dois anos. Na contracapa do livro figura um texto da Ana Hatherly que passo a reproduzir:
«Neste lugar está uma porta visível que eu abro para dar passagem a uma luz que incidirá sobre uma natureza a que singularmente se chama morta e iluminada. Não vereis tal morte. Não vereis tal luz. Sombra. Vereis, certamente. Melhor: vereis sombras. Sombras móveis. Sombras que desejareis perseguir e vos conduzirão a novas sombras numa sucessão de penumbras e meios tons de luz ausente, mas luz ainda. Perseguindo as sombras vereis como elas a si próprias se perseguem e nessa perseguição se esclarecem. Mas não desejo esclarecer-vos. Suficiente luz encontrareis em vós para vos iluminardes. Se não tiverdes, renunciai. E as sombras virão ter convosco.»
Quer a Ana quer eu somos do signo de Gémeos, pelo que esse foi o nome que demos à colecção cuja regra era que todos os autores incluídos teriam de ser geminianos. E a seguir ao meu livro, logo saiu o 39 Tisanas, da Ana Hatherly, protagonizado pelo porco Rosalina, iniciando a longa série, que se prolongaria por outros volumes de tisanas. O problema é que o nº 3 seria um livro de outro do nosso signo, o António Santiago Areal, que avançou com o original para a tipografia, mas teve um desentendimento com a Ana e desistiu do livro, que era um ensaio. Acabou por publicá-lo sem chancela. Assim, entrou para a Colecção Gémeos - eram edições de autor, naturalmente – o Diogo Alcoforado, pintor pela ESBAP e que depois entraria para a Faculdade de Filosofia, onde ficaria como docente. O livro era um ensaio sobre o movimento dos objectos. E acabou a colecção.
A amizade com Ana Hatherly manteve-se através de alguns encontros e abundante e interessante correspondência, Mas pareceu-me bem a nota histórica deste episódio que ficasse por aqui, tanto mais que a Ana nasceu no Porto e esta foi, que eu saiba a sua única «aventura portuense», salvo um livro que lhe editou o Egito Gonçalves na sua colecção de poesia, a Limiar.
José Viale Moutinho
6 de Agosto de 2015
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