Espaço Associados



      

“Tear do Tempo Agora”,
poemas de Ilda Figueiredo, pinturas de Agostinho Santos,
Âncora Editora, Lisboa, 2012.

um texto de
Domingos de Oliveira


O TEAR – A TEIA E O URDUME
(Para falar de um livro.)

Que direi eu aqui sobre este livro, nesta noite de Agosto em Espinho, a céu aberto, com pessoas sentadas para ouvir qualquer coisa, outras passando ao fundo? Abre-se um livro… É bom não esquecer a lição de Agassiz, um biólogo. Dava um peixe aos discípulos para desenvolver neles a observação. Observavam os discípulos o peixe, descreviam o resultado, e logo o mestre lhes fazia sentir que não viram tudo. Voltavam os instruendos à observação, de novo o mestre lhes fazia notar que havia ainda coisas por descobrir. Repetia-se o processo e havia coisas sempre a descobrir. Até que os estudantes se apercebiam do valor produtivo da observação, dessa complexidade que se esconde nas coisas aparentemente simples. Iniciemos nós aqui uma primeira observação sobre este livro que, como bem enuncia o título, nos falará do tempo que é este agora de nossas vidas, a teia e o urdume (o tear), destacando-lhes fios que são prazeres, dores, vontades, trabalhos, sonhos…

1. Na sua maioria, estes poemas são experiências reflectidas nas emoções deixadas por situações, viagens, em trabalho, não em recreio (trabalho político – entenda-se aqui o político no seu sentido originário que vem de longe, seu lado sério, pois que tem outro lado, como é sabido, perverso, o de uma prática oportunista, egoísta, lesiva do bem público, experiência dolorosa em nós, actualmente tão ostensiva e destruidora). Não se separam nunca, os poemas, da raiz social que lhes dá vida, onde um sentido entendimento se faz notar essencial, sem excluir a dimensão mais pessoal do poético. / São por isso poemas geralmente expositivos, que se alongam entre emoções e relatos, com excepção de dois que se abreviam (Ruínas (16) e Poema (18) ).

2. Não se trata de um livro de poemas, ou de pintura, mas de um livro colectivo. Que pode entretanto ser preferido como livro de poemas (poemas que são ilustrados), ou como livro de pinturas (motivadas por poemas). Não será a mesma coisa entregarmo-nos às pinturas como sendo produções motivadas em poemas, ou ilustrações deles. Julgo que as pinturas ganham não sendo vistas como ilustrações, que de facto não são. Entretanto os poemas que motivaram as pinturas são preciosos para as entendermos.

3. Qual a matéria deste livro, quais os seus temas e propósitos? Observando os títulos dos poemas, os motivos que os formam, se evidencia desde logo as vivências da autora, os seus empenhamentos no dia a dia que, eu diria, se continuam na escrita dos poemas, uma sua inteligência das coisas que os conduz. Espreitaria aqui o perigo que consiste na poesia se diluir em prosa versificada – aquele equívoco dos poetas que põem ideia em versos, sem que sejam expressão de coisa sentida, sendo a poesia expressão de emoções, convém dizer reflectidas, não vá julgar-se a poesia como um qualquer sentimentalismo discursivo.

4. As lutas políticas accionam todos estes poemas de Ilda Figueiredo, por vezes marcadamente, de forma explícita, como se lê no poema “Esperança” (12): «Está na hora da saída de um lugar / onde se sucederam as lutas políticas». Esta poesia não se afasta nunca da realidade social, não se perde um momento nos meandros do “eu em refúgio” ou, pior, “em fuga”. De um “eu” em transcendência, antes de pés no chão e com os mais, com os outros, que não são todos, pois em Ilda Figueiredo a luta é de classes, entre donos e servidores, exploradores e explorados, senhores e servos – por uma terra sem amos – solidário, o poeta, com os que sofrem. Talvez por isso mesmo não sacrifique um verso, esta poesia, às filigranas da arte, aos estilos em moda, ao culto do que seja. O que possa parecer ligeireza formal é natural recusa de formalismo, não colocando a expressão acima do sentido. Mesmo em poemas como “O pintor rebelde” (14) não deixa que a pintura se aparte do humano. Do pintor Basquiat diz o poema:

(…) / Da relação dúbia Andy Warhol e Basquiat
nasceu o trabalho conjunto de um ano,
o excesso de confiança,
o difícil regresso à realidade,
a frustração com as críticas,
a fuga – Los Angeles ou Havai –
as noites alucinantes
de quem não tinha as ferramentas
para navegar na podridão
e não suportou a pressão
da morte de Andy
e do mundo artificial onde vivia:
acabou aos 27 anos. / (…)

5. Poemas breves, como “Ruínas” (16), mais raros (apenas dois no conjunto de 23) concentram-se no trabalho com as palavras, onde os versos se alongam na sugestão de termos que se comprimem, se libertam da convenção.

Do tronco caíam heras
e acomodavam-se ninhos
– onde já não havia pássaros
nem mágoas de vidros partidos / (…)

Essas heras caindo de um velho tronco, por certo velho de experiências, os ninhos que aí se acomodavam (nessa história de troncos velhos, sem os pássaros que debandaram, o que acentua a ausência, as mágoas de vidros partidos. Estes vidros partidos não dizem nada de discursivo, são linguagem na linguagem, criação verbal, na busca de palavras que já não há, mas poderão, por inventivas artes, forjarem signos, símbolos, sentidos que se avolumam.

6. Se encontra muitas vezes nestes poemas o recurso à linguagem chã de uma prosa apesar de tudo sensível, onde não perca o pé a relação ao poético, tão só porque a matéria em causa, a vontade, bem manifesta, o exigem. Se pode observar no poema “Reflexão marítima” (22).

Na quilha do paredão mar adentro
o olhar espraiava-se no horizonte
e navegava à bolina, na busca da jangada,
ciente que a cultura não é um verniz de alma
a que só os privilegiados podem aceder,
em noite de estrelas ou gala
de passadeira vermelha e vestido de lantejoulas:
a cultura constrói-se na partilha de saberes,
na destruição de barreiras
que dificultam o diálogo e o conhecimento,
no quebrar das grilhetas impostas
pelo pensamento único,
impedido o naufrágio que se adivinha. / (…)

O poema começa com essa imagem da “quilha do paredão mar adentro”, a que seguem outras, a do “espraiamento do olhar”, a da “navegação à bolina”, a do “verniz de alma”, a da “noite de estrelas (não a noite estrelada, a de um certo estrelato que nos martela dia e noite), a da “passadeira vermelha”, a do “vestido de lantejoulas”, sem que possa deixar de inserir-se tudo isso na realidade do mundo, lembrando que

(…) / a cultura se constrói na partilha de saberes,
na destruição de barreiras
que dificultam o diálogo e o conhecimento,
no quebrar de grilhetas impostas
pelo pensamento único,
impedindo o naufrágio que se adivinha. / (…)

Curiosamente aparece aqui um reparo negativo ao “pensamento único”, labéu sistematicamente lançado aos que partilham com a autora a sua ideologia humanista. Como foi destacado, logo as imagens poéticas reclamam do lirismo a relação que o sustem pela raiz social – coisas que, não parecendo do poético, passam à poesia, atravessam-na, lhe estão no cerne. O que começa, talvez, por desgostar o leitor sentado, e o põe de pé. Pois, sintonizando o poema, logo verá de perto, o leitor, as razões da emoção, as razões da razão.

7. Os desenhos /pinturas de Agostinho Santos são eles próprios poemas. E até por isso desprovidos do que produza em nós aquela expectativa quando se olha um quadro, o que se espera, em geral (por hábito enraizado) reconhecer um farol, uma mulher, um gato (7), não como representações confinadas nisso, mas signos visuais na linguagem gráfica, símbolos para chegar por eles a um sentido outro.

8. Ninguém encontraria essas imagens que Agostinho Santos nos dá a ver, pois que são produção de imagens, não mera reprodução, que o artista surpreende nos poemas, leituras que deles faz. Terá ele aprendido com Picasso, que aprendeu com as crianças, sendo que Agostinho Santos é ele mesmo nas visões que compõe e nos lança.

19. Estas pinturas /desenhos surpreendem-nos, nessa estranheza mesma que causam. Há um encanto neles, como que um desafio, um processo engenhoso de se aliarem ao texto, prendendo-nos a nós nessa mesma aliança. Ingénuos que parecem, às vezes mesmo absurdos, são audazes processos de leitura que se dá a ler – não esqueçamos, nunca, a lição de Agassiz. Não se fizeram por serem belos, estes desenhos, nas convenções que há nisso do belo, da beleza, senão por agilidade, que eu diria volátil, da escrita gráfica de Agostinho, que se torna ela própria poema autónomo, por mais acompanhado. Os poemas, não se pode esquecê-lo, moveram o pintor. Tal porém como o mundo moveu o poeta. São dois poetas os autores, ambos pintores a seu modo, cada qual escrevendo /pintando na sua língua. Enriquecem-se mutuamente e por essas mãos dadas este livro é de um só, não de dois.

11. Estes desenhos /pinturas enviam-me para um livro precioso do pintor Eurico Gonçalves, lamentavelmente esquecido, senão mesmo ignorado (o livro) por estes ministros que nos têm tratado na Educação. O livro, “A arte descobre a criança”, editado em 1991, põe em confronto certas telas de pintores como Dufy, Matisse, Picasso, Chagal, Klee, Miró, Dubuffet e outros mais, com desenhos e pinturas de crianças, onde se pode observar vários procedimentos em comum. Assim, por exemplo, o ideografismo (desenho, não das coisas, mas das ideias que suscitam em nós), a transparência (sobreposição de imagens visíveis umas sob as outras), a perspectiva afectiva (interior, subjectiva, ao nosso modo de sentir-ver), o rebatimento (que esbate na superfície do suporte a dimensão tripla dos motivos, do enlace dos grupos deles), o rabisco, o espaço topológico (decompondo o real, reorganizando-o no tecido expressivo) tudo isso se encontra nos desenhos-pinturas de Agostinho, e lhe permitem comunicar mais que o que vê, o que interpreta, reelabora, desenha, pinta.

11. Quando olhamos um rosto de perfil vemos apenas um olho, uma orelha, uma face. A criança nos seus desenhos acrescenta, não raro, ao que vê, o que sabe que há. Pode mostrar assim de uma só vez por fora o rosto e atrás. O adulto, mais ainda o artista, pode ir mais longe, tal, no desenho da página 59, Agostinho põe num perfil não dois olhos, mas sete. Mostra-o por dentro. Sente-se uma visão mais ampla e penetrante, mergulhada lá dentro, até ao âmago. Do que dá conta o pintor em versos que lhe dizem:

Sons, música, palavras
que perduram no tear do tempo agora:
universalidade do trabalho
e da criação
sequência e vida
(mesmo que seja no local mais recôndito
de cada um)
por vezes sem tempo para a descoberta
da centelha que ilumina
o caminho do viajante,
perdido entre palavras sem poemas e sem pintura,
sujeito ao preto e branco
dos que quiseram matar o sonho
esquecendo que ele persiste
e cruza o tempo no voo para o futuro.

Há aqui uma potência da visão que pode ser entendida por esses sete focos cavando fundo, onde nota o poeta “o local mais recôndito”, o caminhante e o caminho.

12. Quando vemos (pág. 21) seis braços ao alto erguendo o mar ondulante, e nas ondas os barcos lançando as redes, e umas casas que são tão só o signo dum povoado, não vemos braços, ondas, barcos nem povoado, senão como expressão de uma leitura que o pintor faz do poema “Tempo de espera” (20). O desenho se apresenta pois como escrita pictórica, expressão de uma leitura que é dum texto verbal, criação, ela também poética.

As ondas formam-se junto à praia
mas crescem quando o vento sopra mais forte
ou a lua incendeia o mar
em noite de tempestade.
Por vezes galgam muralhas,
inundam campos e estradas
e ameaçam casas e vidas
de quem vive com o credo na boca
pelos homens que estão no mar
ou pelos campos salgados
quando a ria salta as margens
e se espraia em toda a zona.

Mulheres e homens protestam, exigem obras,
uma simples vala, a limpeza da ria, a sua dragagem
porque já ninguém retira o moliço.

E voltando ao desenho, bem parece agora que os braços daquela gente que os ergue, erguem sua desgraça em protesto.

13. Onde esvoaçam nossos olhos por muitas coisas, por muitos lados, nossos olhos são muitos em nosso rosto, nossa boca um albergue, nossos braços mil ramos. Conforme nossos olhos vão aqui, acolá, por cima ou em baixo, teremos dele, do livro, uma visão animada, não adormecida. Quem lidou com crianças, com os contos que avançam nas experiências delas, o mesmo com seus desenhos, sabe que é assim.

Livro numa confluência de expressões, este. Que nos congrega e ergue. Por um real de inquietações, de sonhos, que à poesia ousam pedir alento.


Domingos de Oliveira
S. Félix, 8 de Agosto de 2013.







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