Se cheguei ao Cristo Rei, São? Fiquei-me pela Areia Branca que (afinal) era mesmo a Areia Branca, e estive no Paraíso até ao pôr do sol. Digo “até”, porque para mais é preciso talvez não saber ler. Ou não fazer perguntas. Eu no fundo já sabia: o Paraíso é sempre algo de provisório. E dele são invariavelmente expulsos o Investigador e a Curiosa. Esquecida das histórias que li, fui no dia seguinte confirmar mapas e estudar o tétum de um cartaz meio abandonado que tinha fotografado na praia. Por um lado, os mapas fizeram-me perder a fé na transparência dos homens. O taxista, que queria levar à malai 5 dólares para chegar à Area Branca (tinham-me dito 3 o máximo) resolveu, perante a minha negociação cerrada, dizer que aceitava 3 e deixar-me a um quilómetro da dita afiançando que era a tal. Por outro, a consulta ao dicionário de tétum para esclarecer a fotografia fez-me perder a fé na transparência das águas: o cartaz pedia tardiamente a minha “atensaun” para os crocodilos (lafaek) que podiam surgir do mar e recordava-me algumas palavras que já tinha lido no cemitério de Santa Cruz. Eu bem sabia do mito do crocodilo avô, mas lembrava-me lá do Avô-Lafaek! Os mitos não existem, pensava eu. E fixei-me nos aspectos jurídico-filosóficos, achando que a estória era interessante para a velha questão do “jusnaturalismo”. É o que faz viver entre a Literatura e o Direito. Vai a estória para tu também saberes. Um crocodilo pequeno já cansado de debater-se na lama foi salvo por um rapazinho que o ajudou a chegar ao mar. O crocodilo prometeu levá-lo para onde ele quisesse. Um dia, o rapaz pediu-lho e ele assim fez. A viagem era longa, um rapaz é um rapaz e um crocodilo é um crocodilo. E por isso o crocodilo começou a ter vontade de comer o rapaz. Mas não lhe parecia bem. E o mesmo sucedeu de cada vez que encontrava outro animal a quem pedia conselho: uma baleia, um tigre, um búfalo, um macaco... O crocodilo envelheceu e o rapaz também. E quando o crocodilo morreu transformou-se numa ilha para o homem morar: Timor. E é por isso que os timorenses lhe chamam avô e que quando avistam um lhe pedem: - Não me comas, crocodilo, que sou teu filho. Um livro de fotografias de Daniel Groschong, com prefácio do Presidente Clinton, garante que é até por isso que o povo de Timor nasceu assim com tanto sentido de justiça. Desconfiada do estado lastimoso do cartaz, confirmei se ainda apareciam ali crocodilos no mar, se “ainda” atacavam pessoas. Aparecem, sim, “de vez em quando”. Mas é raro atacarem pessoas. “Em Los Palos atacam”, mas naquela praia é muito raro. Os velhos de Ataúro dizem que eles atacam “sobretudo pessoas que falam mal dos outros e dos crocodilos”. E eu achei tudo justo. Que com certeza os Paraísos para serem completos também precisam de crocodilos e de serpentes. Que é preciso um povo com bastante sentido de justiça para ter assim uma estória e uma História. Que o taxista me olhou de forma muito hesitante quando eu lhe deixei mais do que 3 dólares. O olhar dele foi justo. E foi justo eu ter descoberto por causa dele as árvores que davam flor no mar... Só me lembrei depois daquele sonho que teve a Isabelita pequenina, em que eu na praia cavalgava alegremente um crocodilo enquanto ela me avisava do perigo que são essas coisas. São umas preocupadas as irmãs mais novas, Isabelita! Devias aqui estar. Ias ver que concordavas comigo. Em todo o caso por precaução, pedi ao Xisto para me escrever no caderno uma frase em tétum: “- Não me comas, crocodilo, que sou tua filha”. Mas ainda é complicado decorar aquilo.
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