Ai, Maroma! Deixo Dili dentro de uma semana e sinto que quase nada fiz. Parto, agora que estava a saber andar de taxi e chegava à Areia Branca por 3 dólares, como uma experimentada malai. Deixo Dili agora, quando tinha descoberto onde comprar perto de casa ao domingo uma “katupa” em leite de coco e caril que me fazia feliz por 25 centimos. Deixo Dili sem ir a Maubara, a Baucau, sem percorrer sequer a estrada até Manatuto. Sem saber onde fica a Praia do Dólar, sem pôr o pé na Praia dos Portugueses. Deixo Dili, sem ver uma casa sagrada em Lautém, pequena, “uma lulik” que fosse. Sem ver os cafeeiros de Ermera reverdecer e dar fruto. Sem saber se o que fiz valeu a pena. Deixo Dili sem ir a Jaco onde, ao perto, há “um mar tão transparente que com água pelo peito se veem os pés” e, ao longe, a luz declina todas as formas de azul e verde. Deixo Dili sem ver um pôr-do sol que incendeia tudo, furiosamente como o sol só se põe na época das chuvas. Deixo Dili e talvez nunca mais ninguém veja o que eu aqui vi, coisas de que podem duvidar um dia se aqui vierem. E só talvez então “os meus amigos timorenses”, de uma estranha raça malai-timur, vos possam confirmar o que vi, em setembro de 2013, em Dili.
Ai, Maroma! Deixo Dili e já quase tudo mudou. O calor cada vez mais intenso anuncia as monções de outubro e vai tornando as praias cada vez mais cheias. E delas vai fugindo uma gaivota como eu, “a mana da praia”, “pro-fe-sso-ra”, como me chamava o empregado do bar australiano que me deixava estar sossegada na areia sem ter de pedir um coco fresco. A “pro-fe-sso-ra” sabe que, antropologicamente, os rapazes de braço dado e as meninas de mão dada irão desaparecendo à menida que os meninos e as meninas andarem de mão dada, à medida que os pais forem dando mais beijos aos filhos. Mas oxalá fique sempre este hábito de tratar os velhos e os crocodilos por “avô”, as meninas e os meninos por “lagartixas e lagartos” e todas as senhoras por “mana”... Dili vai continuar a mudar. Esta semana pintaram finalmente as passadeiras, mas o trânsito ainda não para. Há cada vez mais carros particulares na cidade. Mais gente a chegar, a querer ficar, afrontando preços de alojamento superiores aos do Porto, desafiando os serviços urbanos de limpeza, feitos ainda para a inexistência de plásticos e metais, sujando as ruas, entupindo os esgotos, estagnando a água. Uma exposição da Universidade da Paz, na praça do Palácio do Governo, apresenta os projetos para um complexo turístico na Areia Branca e um outro em Tasi-Tolo. Os projetos têm seis, oito, treze andares, um lago artificial e, na planta (feita a computador), as árvores que colocaram nas varandas dos apartamentos para disfarçar “o impacto ambiental” dificilmente sobreviverão num vaso em época seca. Alguns alunos vêm ter comigo: não têm muitos visitantes interessados na leitura dos planos por piso. Falo-lhes da necessidade de conhecerem o livro de “Motivos Timorenses”, ou “Casas Timorenses” ou “Arquitectura ad usum animae”, onde Cinatti pugnava por um Timor moderno que não esquecesse a riqueza dos motivos e aquilo que eles ensinam: “Em cada timorense havia um artista latente [...] Para quando, perguntava eu, a consciência generalizada do facto [...]? Para quando as escolas de artes e ofícios devidamente orientadas?”. Mas, é verdade, os alunos aqui não têm livros, não sabem do que falo. Não conhecem, Rui Cinatti, não te leem, não te podem ler, e o livro está há anos esgotado em Portugal. Peço um e-mail, mas só lá está uma rapariga que o tem ou o sabe de cor e eu fiquei de lhe mandar o livro do Cinatti scanarizado, está bem, Inês? E aceitei dar ainda quatro horas sobre Cinatti na UNTL
. A falta que um livro faz: para mudar muitas coisas, e para não deixar mudar outras. Tanta coisa vai mudar em Dili. E eu deixo Dili.
Ai, Maroma! Deixo Dili mudado e eu mudei.
|
|
|