Espaço Associados

Textos de Maria Luísa Malato


       Postais de Dili, 23 de setembro de 2013



Muitas das fotografias que circulam sobre Timor são de velhos, fantásticos katuas. Veem-se no hotel com o mesmo nome, ou na internet. Os velhos são aqui um tópico obrigatório da fotografia, de preferência a preto e branco, sempre mais artística. O sol e o tempo vão traçando na pele dos velhos um impressionante mapa de rios, caminhos e montanhas. E a masca, que é uma mistura de betel, noz de areca e cal (não tendo eu conseguido ver o que eram “betel”, “noz de areca” e suspeitando eu que “cal” tem em Timor uma palavra homónima), deixa-lhes ao fim de muitos anos os dentes de uma cor vermelha acastanhada que pictoricamente combina com a pele. Encolhe tanto o corpo dos velhos com o tempo. Mas aqui parece ainda encolher mais, ficando o corpo a bailar numa camisa de criança. É também um povo que aprendeu a ser frugal: Afonso de Castro, em 1867 achava os habitantes de Timor de uma “frugalidade pasmosa”. São-no certamente ainda hoje: os meus alunos mal almoçam entre as aulas, e há muita gente normalizada que tem aqui somente uma refeição de manhã e outra à noite. Curvo-me perante um povo que conheceu muitas vezes a fome. E por isso baixo os olhos e cumprimento os velhos quando passo por eles. Os olhos dos velhos, esses é que não posso olhar. Parecem distantes... Mas é como se estivessem focados num objeto que está logo atrás de nós. Estranho muitas vezes neles o olhar. Estranho neles os sítios que escolhem para olhar o mundo, de pernas fletidas... O que veria aquele velho ao olhar fixamente uma fossa de água estagnada? Ou aquele outro que passa horas “perdidas” à porta da mercearia aqui ao lado? E acho eu as minhas horas perdidas? Talvez seja nos olhos dos velhos que Cinatti reaprendeu a escrever alguns poemas: “Aprendi a não ter fome/ Aprendi a não ter sede./ Pedra no rio lavada, troco-a pela minha inteireza”. Talvez por isso eu não tenha coragem de os fotografar. Não me deixariam tirar-lhes a alma com a lente, e eu não queria menos. Os miúdos, esses sim, é que me pedem fotografias quando me veem com a máquina. Acenam, colocam o polegar ao alto, sorriem, perguntam-me o nome em inglês. Mas eu queria era apanhá-los como quando os apanho com os olhos. Quando eles brincam com os galos e os abraçam ternamente pelo pescoço, e não veem que eu passo. Quando eles passeiam, de braço dado os meninos, as meninas de mão dada. Ou andam a brincar com a torneira de uma casa, uma das muitas casas em ruínas na avenida onde moro: foram eles com certeza a descobrir que ainda funcionava. As crianças timorenses são extaordinariamente pequenas para aquilo que fazem. O censo confirma que 58% das crianças têm altura e peso inferior ao que seria desejável. Os meninos aqui, pequeninos, franzinos e descalços, quase sem roupa, lembram as gravuras da Maria Keil. Parecem borboletas. Esta fotografia foi tirada em Tasi Tolo (“Tasí Tolo” quer dizer “Três Mares”, “Tolo” é 3, “Tasí” é Mar e “tolo” foi, obviamente, o primeiro número que eu aprendi em tétum). Desta vez tive tempo de preparar a máquina. Apanhei-os desprevenidos, concentrados naquela dificuldade que era chegarem os dois amigos à extremidade periclitante de um galho no meio do lago. Apanhei-os, finalmente. Naquele estado que eu reconheço da minha infância, quando andava de mão dada, e que eu peço a Deus que me conserve na memória até eu ter o rosto sulcado de rios, montanhas e caminhos. Estado inquieto de quem gosta mais de saltar a cancela do que de abrir o portão.

     




Maria Luísa Malato