Torna-se cada vez mais difícil escrever-vos estes postais. Há tanto a fazer, tanto por fazer, que a escrita parece perda de tempo. E o tempo voa, ave de rapina. Aulas, sobretudo cursos, que agora dou todos os dias, menos ao domingo, dia do Senhor, como me lembrava o escultor de Ataúro, e dia de Areia Branca. Acabei por não ir à apresentação do primeiro filme timorense de longa metragem, “A Guerra da Beatriz”. Era no dia 17 de setembro e estava livre, mas pediam 60 dólares pela entrada. Não arranjei companhia e só os australianos devem ter ido. O meu vizinho de quarto, brasileiro, o Luís Gustavo (e que eu só conheci na minha oficina de Leitura na Fundação Oriente) propõe-se fazer aqui um pequeno curso de iniciação ao cinema com câmaras de telemóvel ou fotografia. É difícil descrever-vos Babel. Não é verdade que Babel esteja construída em espiral. Babel são círculos concêntricos, sobrepostos, que raramente comunicam. Em Dili, acontece de tudo e quase ninguém sabe de nada: a informação circula em círculos muito fechados. Também eu me concentro nas aulas. Se eu tivesse mais tempo para aqui ficar... Se houvesse mais livros... Se, se, e eu vou-me embora daqui a nada. “Se cá nevasse, fazia-se cá ski”. E definitivamente, nenhum aluno anda por aqui com livros. Na verdade, nenhum aluno está habituado a lê-los, a tê-los. Se eu pensar bem, a única biblioteca que conheço na Universidade da área das humanidades é a do Instituto Camões. Em Timor, os alunos da universidade não usam livros desde a escola primária. Não havia para todos, não há para quase ninguém. O tétum era, até há poucos anos, uma língua exclusivamente oral. E nós damos aulas num tempo intermédio em que a internet é ainda lenta e intermitente. Muitos alunos não têm e-mail ou não o usam regularmente para receber um documento ou pedir uma informação porque não o sabem de cor. Dou-me conta de que aqui não posso mandar ler sobre um assunto. De pouco serve a Bibliografia. Mas os alunos tomam atenção ao que se lhes diz, ficam nas aulas muito para além do tempo, sem me avisarem que o tempo da aula já acabou, o que no meu caso dá sempre resultados desastrosos. Mas eles não contam as pancadas, e eu imito-lhes o ritmo que eles me dão. Encontro-me por isso perante um desafio pedagógico que estou a gostar de aceitar. Descobri que gostam de cantar e que cantam bem, afinados, com entusiasmo. E tenho aproveitado. Mas não conhecem muitas músicas portuguesas: quase só aqui chegou o fado, e o fado é a Amália. Difícil de bater, confesso. Não chega. Conhecem-na sobretudo os katuas. Bem fazem os cooperantes brasileiros que levam sempre a música para todo o lado. A única vez que eu ouvi falar bem alto português na rua, e com altifalante, fui a correr ver o que era: “Salta a corda, agora, agora, vamos lá pessoal! Desde que eu te vi que eu não sei viver” Era a sessão de fitness, anunciada em inglês, mas o público timorense aprendia português com uma contagiante batida nordestina. Há certamente conclusões que fui tirando e usando nas aulas. Mas dou-me cada vez mais conta de que vivo aqui uma realidade em parte passada, em parte futura, num mundo novo em que a cultura escrita terça armas com a cultura oral. É importante aqui a memória, e por isso usam bem as velhas receitas da memória: as mnemónicas, os trava-línguas, as parábolas, os paralelismos que vão da estrofe/frase às figuras retóricas da cláusula ou da aliteração. As minhas frases são agora curtas como versículos profanos. Tento descomplicar sem simplificar, que a verdade, Wilde dixit, não é pura e raramente é simples. Ensino-lhes a ouvir as pausas na Nau Catrineta, em Pessoa, em Gedeão e ninguém me pergunta aqui, como uma aluna me perguntou no Porto, para que serve tudo isto sobre o silêncio numa licenciatura em ciências da linguagem. “Sem nexo?... para quem?”, isto perguntava o Cinatti, que agora alterna com o Luís Costa. Para quem ouve é flagrante a semelhança entre as ai-kananuk, cantigas timorenses, e as nossas cantigas de amigo. Ah, se eu pudesse ser a Carolina Michaelis da poesia timorense. Se eu ficasse... Se. É preciso talvez vir de fora, ser malai como Carolina era, para ouvir somente a música. Os timorenses, talvez porque não sacralizaram a Literatura, talvez porque não a adoram como ídolo que só se revela ao coração de alguns, a têm como coisa quotidiana e comum. Mas por isso não a estudam, não a nomeiam. Celebram-na sem lhe dar um nome, porque ela acaba por estar em tudo, “numa sucessão harmoniosa de sons e silêncios”. Não é a poesia que vem da música: é a linguagem oral, falada, que de lá nasce. Ko’alia: falar. Lançar parábolas, de onde derivam as palavras ditas. “Paraboles” é donde vêm as “paroles” (não os “mots”, palavras escritas) e as palavras. Lanço pois no ar uma bola de papel para explicar a entoação da pergunta. E a aluna apanha-a entre as mãos. Explico as notas musicais que a interrogação exige, um movimento melódico em que a linha sonora, depois de subir para os agudos, começa imprevistamente a deescrever uma linha descendente, mais grave. E aquele cuidado melódico da resposta, que pega na última nota e a faz descer para níveis progressivamente graves. Tudo aquilo que eu fui aprendendo nos livros e à minha custa aqui o sabem com o corpo, as mãos, a voz. Entusiasmam-se vertiginosamente com a poesia. Que gosto falar aqui do Manuel Bandeira, de quem nunca ouviram falar. Será que lhes levo este poema sobre um combóio? Mas ainda que em Timor não haja combóios, os alunos gostam e movem os braços ao cantar: “Café com pão, café com pão, café com pão, Virgem Maria, que foi isto, maquinista?”. “Que vontade de cantar, oô!” A alguns, para lerem “oô” tenho de lhes ensinar o barulho do apito de uma locomotiva a carvão. Lembro-me daquelas páginas d’O Primeiro Homem, em que Albert Camus recordava o armário do professor primário em Argel: memórias e restos de mundos longínquos, que nunca vimos. As conchas que maravilhavam Camus no armário são como os corais que eu tenho hoje sobre a minha secretária, quem o diria. E a estranheza que as histórias timorenses faziam a Cinatti é ainda a estranheza que sentia o “amigo timorense” de Cinatti, quando Cinatti lhe contava a história daquele rei que casou com a alma da mulher morta. O avô crocodilo é tão estranho quanto o amor de Pedro por Inês. É uma estranheza boa, que sai da suspeita que já tinhamos de sermos incompletos. Cansa por vezes dar uma aula assim, mas cansa como cansa aqui o calor, que vai aumentando à medida que a época das chuvas se aproxima, o contrário do que sucede em Portugal. Há alguma vantagem em ambos: este cansaço e este calor amolecem-nos, fazem-nos pensar duas vezes se conseguiremos aguentar um colar no pescoço, ou uns brincos nas orelhas. Já não os consigo usar. Lembro-me das imagens do livro de Camus, com meninos que viviam entre abetos e neve. E é com alguma malícia que lhes dou como trabalho de casa cantar na próxima aula “Se cá nevasse fazia-se cá ski”, dos Salada de Frutas. O vídeo está no YouTube:
http://www.youtube.com/watch?v=wau6-qDxRy4. A Bibliografia que lhes distribuo tem sobretudo artigos que podem consultar online. É uma semente. É aquilo que eles podem ler “um dia”, se assim quiserem. “Se Sebastião cá voltasse, Se a moleza não cansasse, Se o Eusébio ainda jogasse, Ai, que fintas que ele faria um dia... Há sempre um "se" no caminho”, ouço eu agora mais atentamente os Salada de frutas, “Que me deixa as mãos tão presas”... Como eu as sinto!
Mas, “se não” esperarmos pelo regresso de D. Sebastião, “se não” esperarmos pelas fintas do Eusébio, “se não” ficarmos pela Amália, o mundo está cheio de possibilidades. O resto são cantigas. E a Amália concordaria comigo.
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