Espaço Associados

Textos de Maria Luísa Malato


       Postais de Dili, 16 de setembro de 2013



Não há árvore que impressione mais que o gondão. Ou gondoeiro. “Hali, hali”, ensinam-me a dizer os alunos. Hali. Vou-os catalogando na memória, como faço no Porto aos jacarandás, para não perder nenhum, como perdi o da Rua Azevedo de Albuquerque nas costas do Hospital de Santo António. Em Dili, conto os meus gondões. Os três que ocupam toda a entrada do Parlamento e um quarto, diante do qual me curvo para poder passar. Os outros, menos impressionantes das ruas transversais. Os que acompanham a linha do mar na praia de Lecidere, na Praça dos Hali. Numa, pelo menos, espreito uma família de macacos. E o gondão que se guarda no jardim do Banco da Ásia e que furtivamente fotografo por entre as grades. Vigio-os quase todos os dias, fazendo às vezes um desvio entre a universidade e a casa. Vigio-os, como um menino conta os ovos do ninho, não vá faltar algum. A razão porque o menino vigia o ninho é a mesma pela qual vigio os gondões do meu território: somos donos por natureza daquilo que tomou conta de nós, tentamos controlar o que nos controla. Olho os gondões. Hali. Impressiona-me pensar que grande parte dos edifícios que os rodeia estavam destruídos há catorze anos. Que a segunda guerra mundial passou por aqui, sem que algum dia os aliados tenham incluído Timor nos territórios do Plano Marshall. Eu não o sabia. Só o soube aqui. Há ainda uma vigia no jardim da praia de Lecidere, a lembrá-lo, mas quem não sabe é como quem não vê. Perante o meu interesse, aconselham-me a ir ver uns abrigos nos arredores de Dili. E há também um depósito de armas japonesas em Bercoli, Venilate. Foram os gondões que me levaram ao abrigo e o abrigo aos livros. Apesar de Portugal se dizer potência neutra, a Austrália e a Holanda invadiram Timor em 1941 para se defenderem. E depois vieram em 1942 os japoneses para os atacar aqui. É destruída a central telefónica logo em 1942 e o Governador português deixa a partir dessa data de poder comunicar com Lisboa. Ainda em 1942, a Austrália deixa a ilha, levando muitos malai. Os japoneses dizimaram sobretudo timorenses. O mítico Aleixo Corte-Real é fusilado com toda a sua família em Maio de 1943. A administração japonesa saqueia o BNU (o Banco Nacional Ultramarino, esqueci-me de dizer, continua aqui a existir, ainda que ligado à Caixa Geral de Depósitos) e tenta impor o japonês como língua timorense. Ah, a língua, a língua, que língua, eterno tema de conversa entre timorenses e em Timor. Imagino Cinatti, a chegar aqui em 1944, como meteorologista aeronáutico da Pan-American. Como lhe deve ter parecido surreal, a ilusão da soberania, o chavão dos “assimilados” (que bastava serem designados por esse nome para o não serem. E escreve ainda Cinatti em Um Cancioneiro para Timor: “os Timorenses comportam-se como heróis camilianos. Os seus gestos passam ante os nossos olhos como uma Novela do Minho. Serenos e precisos nas suas determinações, por vezes espectacularmente barrocas” (p. 36). É preciso talvez apreciar a ironia de Camilo (e de Cinatti) para nos darmos conta dessa heroicidade quotidiana, dessa teimosia coerente que por vezes me surpreende ainda nos meus alunos. Cinatti ri-se daqueles que se riam do timorense que não queria vender um Cristo de marfim, mas acabou por o trocar por um Cristo de madeira, porque “Deus era o mesmo”. Oh, vã glória de mandar. Portugal tinha aqui 150 militares. O Japão 20 mil. Os soldados abandonarão a ilha destruindo a quase totalidade dos edifícios públicos. Entre 1942 e 1945 a população ficou reduzida a menos 10, 15%... É difícil saber quantos morreram na guerra, guerra clandestina no território de um país neutro. Olho os gongões da praia de Lecidere. Um pouco mais adiante, as ruínas ainda da Diocece de Dili, incendiada por milícias da fação indonésia naquele Setembro de 1999, depois do Referendo de 30 de Agosto. Poucos escaparam às chamas. O mesmo se passou em casas de particulares. Uma placa na Fundação Oriente assinala um massacre. Só escapou o proprietário, “porque o filho, o Manelinho, se esqueceu de dizer que havia umas pessoas à espera no aeroporto”, e ele partiu imprevistamente para as ir buscar. Em 1978, 60% da população timorense vivia em campos de concentração. Naquele setembro de 1999, há catorze anos, Dili ficou em grande parte destruída. Olho outros gondões que vão acompanhando a linha da costa. Quantos anos terão: cem, duzentos? E quantas árvores são precisas para fazer um gondão? É uma árvore feita de raízes que vão ganhando folha nas partes terminais. Quantas árvores poderia ter um gondão? Uma grande? Três mais estritas, como parece ter o do Banco da Ásia? Milhares, como se cada uma das raízes fosse uma árvore? Com o gondão é difícil saber. As raízes entrançam-se desde o solo para formar o tronco e deslaçam-se para dar espaço às folhas. Dois gondões parecem encontrar-se nos ramos e fundir-se na copa. As raízes tomam formas antropomórficas, que lembram serpentes, cordas, troncos e membros humanos. Na ilha de Ataúro, segundo o antropólogo Jorge Barros Duarte, era costume pendurar num gondão o cordão umbilical dos recém-nascidos. Não sei se é por ter lido isto que os gondões me lembram agora cordões umbilicais. Na ilha de Ataúro, enquanto a criança não tinha nome, se chamava ao nascituro “avô”. Como o crocodilo, nossa raiz, é nosso avô também. Também nós somos raízes que tendencialmente se deslaçarão se quisermos dar folha! O pensamento chega às coisas mais abstratas juntando várias coisas concretas. Hoje dei no curso de Técnicas de Leitura aquele poema de António Nobre em que o poeta descreve as aves pousadas nos fios telefónicos ao longo da estrada: “- Revolução! – Inútil! – Cem feridos,/ Setenta mortos. – Beijo-te! – Perdidos!/ - Enfim feliz!? – Desesperado. – Vem!/ E as boas aves bem se importam elas! Continuam cantando tagarelas:/ Assim, António, deves ser também”. De que falamos quando falamos? Olho os gondões da praia de Lecidere como António Nobre olhava as aves. Mas eles dizem-me para ser gondão, e não ser ave. Que bem sabem elas, as aves?

     






Maria Luísa Malato