Espaço Associados

Textos de Maria Luísa Malato


       Postais de Dili, 12 de setembro de 2013



Exame na UNTL aos alunos que tinham concorrido para universidades portuguesas ou brasileiras. A ideia é ajudá-los a detetar dificuldades linguísticas, e depois encaminhá-los para aulas ou leituras. Achando absurdo avaliá-los por conhecimentos específicos de gramática ou literatura, peço-lhes que escrevam um texto argumentativo sobre as razões que os levaram a estudar no estrangeiro, “e numa universidade lusófona em particular”. Estranho quando reencontro na Reitoria alguns dos presentes no exame; eram meus colegas, afinal, alguns deles, ainda que todos de ciências. Mas cumprimento-os distraída. Venho ainda a pensar na pergunta que um deles me fez: o que quer dizer “lusófona”, “universidade lu-só-fo-na”? Boa pergunta. “Onde se fala português”, respondo. “Pode ser em Portugal, no Brasil, em Cabo Verde”, pensando contudo que alguns colegas brasileiros discordariam da minha explicação. O aluno olha para mim perplexo, como se discordasse silenciosamente da naturalidade de tão arrevezada etimologia. Mas parece esclarecido. Eu, que percebo a sua perplexidade, é que não fico. O que é isto de “falar luso”? Os franceses resolveram claramente a questão. La clarté est française: os Franceses foram todos Francos, esqueceram-se de ter sido tudo o resto para soar a “pessoas que naturalmente falam francês” e transmitem esta semana na TV5 mais uma edição dos jogos da Francofonia, diretamente de Nice. São dias e dias de espectáculos de teatro e canto, artesanato e pintura, desporto e cinema, com pessoas que falam francês em França, na Martinica, no Senegal ou no Líbano. Os espanhóis também não a resolveram mal, concordemos ou não com a hispanofonia: se na península da Hispania em que nasceram, todos falam castelhano, é hispânico todo o que fala castelhano, embora os castelhanos de Madrid não queiram ser considerados hispânicos nos Estados Unidos. Teoricamente pode parecer confuso, mas os espanhóis não teorizam menos. Basta-lhes, na prática, o Instituto Cervantes. Para o entendimento comum, “hispano” lembra “espanhol” que é a língua que todos falam, de Madrid à Patagónia. Difícil é uma portuguesa explicar a um estrangeiro a “luso-fonia”. Como vem Luso parar ao caso. Porque não somos nós “portugófonos” ou “lusitanófonos”, como os Franceses são francófonos e os espanhóis hispanofonos? Ou porque não é um francês “henriadófono”, ou “pleiadófono”? Ou um espanhol “domquixotófano” ou, mais precisamente “amadilófono”? Porque é que um português há-de complicar as coisas, e ser lusófono? “Português” é o amor pouco secreto que têm aqui em Timor à seleção nacional e ao Cristiano Ronaldo. Portuguesa é Maria, mãe de Jesus, filha de Santa Ana. Um pouco depois do largo das microletes, há uma “gruta” artificial (uma pequeníssima capela de Santana) que guarda uma carinhosa oração dos pescadores à família matriarcal de Deus, em português desde o século XVI: “Viva mãe de Deus, viva sem fim/ São José, Santa Ana e o Senhor São Joaquim”; mãe, pai, avó materna, avô materno, como uma típica família timorense. Um brasileiro fala português com a mesma variedade com que um açoriano diz coisas que eu não entendo. Mas “Lusófono” o que é? Quem era Luso? Onde aparece ele nos “Lusíadas”? O melhor artigo que eu conheço sobre o assunto é de longe o de Vítor Aguiar e Silva, mas como simplificá-lo para um timorense de Engenharia? Falo-lhe d’Os Lusíadas, afinal, e da Ilha dos Amores? Muito a despropósito aqui. Falarei quando muito de Cinatti e daquela nota de rodapé em que compara o lema do Infante D. Henrique (“talent de bien faire”) com o de seu irmão Pedro, o das 7 partidas (“désir de bien faire”)... Ou falo de ambas e volto aos Lusíadas, correndo o risco de disfarçar mal os chavões colonialistas, ao sublimar a fé e o império? Talvez o que haja de mais lusófono na lusofonia seja afinal esta refração entre o que é português e o que é lusófono, sendo o lusófono um falante Luso, isto é, literalmente uma personagem mítica e peregrina, dividida entre os excessos de Baco e os excessos de Vénus, que se perde por vezes entre o “desejo” e o “fazer bem”. Talvez o que o português tem de mais “lusófono” é ser como um timorense: alguém perdido geneticamente entre a hereditariedade malanésica e papua, ariana, ou vedo-australóide de que fala Cinatti. Talvez o que o timorense tenha de mais “lusófono” seja afinal esta teimosia de ser não sabendo o que é: teimosia que tem tornado Portugal um dos mais velhos países da Europa e fez de Timor um dos mais novos do mundo... O Pascoaes tem razão: isto de ser português não é uma ciência, é uma arte. Ora aí está uma coisa que os timorenses entendem bem. Talvez afinal “lusófono” seja impreciso por excesso de precisão. Talvez. Mas ainda bem que o examinando não teimou, fiando-se na minha explicação de dicionário Porto Editora, o único dicionário de Português que aqui vejo à venda, sem grandes voos, mas satisfatório, como a minha resposta: “lusófono é um espaço onde se fala português”.

     




Maria Luísa Malato