Espaço Associados

Textos de Maria Luísa Malato


       Postais de Dili, 11 de setembro de 2013



Começo a acreditar que ninguém sabe o que é viver em Timor sem um baptismo de réptil. De réptil ou de um qualquer animal rastejante. Isto na perspectiva de uma malai, porque o timorense sempre me falou com carinho de crocodilos e de lagartos: ama-os a ponto de chamar às meninas carinhosamente uma espécie de lagartixas coloridas (Téki) e aos meninos uma espécie de lagartos cantantes (Toké). Mas quem vem “de fora” chega desavisado, ainda que depois tudo lhe pareçam sinais. Primeiro avisam-nos sempre os mitos: em Timor, os mitos não dispensam os répteis, o do avô crocodilo, ou o de Foharai, a serpente que habita na montanha sagrada com o mesmo nome. Mas os mitos são confortáveis. Esperam pacientemente que os incarnemos, segundo diz o Camus, e passam por falsidades até lá. Depois há os cartazes gastos que ao longo da costa vão assinalando a presença possível de crocodilos na praia. Penso no Xisto que me avisava cuidadoso, como sempre: “às vezes, aparecem”. E atacam? “Às vezes...”. Se escavarmos muito vêm de seguida as notícias de jornal. A Ana Luísa disse-me que há tempos foi preciso pedir autorização para matar um crocodilo e conseguir-se fazer o funeral de uma criança de Baucau: a Ana Luísa já viu oito, quatro apanhados e quatro em liberdade, não é assim, Ana Luísa? Mas isso não parece impedir as pessoas de tomar banho de costas para a linha do horizonte. Não. O batismo de répil vem depois: refiro-me à intimidade de um encontro com um réptil. Àquelas histórias que só os cooperantes contam bem: o momento em que mergulharam a mão num pacote de bolachas de chocolate aberto no dia anterior e descobrem estar prestes a meter na boca uma pequena osga, ou aquele em que no meio dos pratos da cozinha estava uma teki e ficaram sem pratos... Há bichos que se metem aqui pelas frestas da porta e pelo espaço em que a caixa de ar condicionado poisa na parede. Há muitos bichos, é verdade. E chegam depressa, sem eu ter tempo para me habituar. Compro pois insecticida. Mas não basta: a natureza aqui tem muita força e parece não ter sido geneticamente suavizada pela seleção humana. As cebolas e os alhos são pequenos e intensos. Os ananazes são pequenos e fibrosos. As bananas pequenas e vermelhas quando amadurecem. O gengibre também mais pequeno e mais picante. Pois os insectos e animais rastejantes são feitos à mesma imagem: pequenos e consistentes. Depois da empregada do hotel me ter limpo o quarto e eu ter despejado nos rodapés meia lata de insecticida, descobri que o método tinha levado um carreiro de formigas a mudar o percurso habitual e a passar pela minha secretária. Por alguma razão a casa tradicional timorense tinha três pisos e o homem vivia no segundo. O primeiro, entre os pilares, era o dos bichos. O segundo o dos homens vivos. O teto era dos antepassados mortos. A casa era assim a imagem do mundo inteiro: os homens vivem sempre no segundo piso, entre os animais e os deuses, entre o que já esqueceram e o que querem ainda recordar, entre o corpo (que em vão abafam) e o espírito (que em vão sublimam). O problema é que a casa (isto é, nós, isto é, o mundo) não tem só um segundo piso, mas é sempre feita de três: tudo o que vem do sobrado pode chegar ao teto, tudo o que cai do teto pode chegar ao sobrado. E assim de pouco adianta esquecer ou querer esquecer o corpo: a serpente sobe. E de nada serve lembrar ou querer lembrar o espírito: toda a ave há-de poisar.

Há pois alturas em que um homem, ou uma mulher, há-de dar de caras com uma ave que desce ou um lagarto que sobe. Foi o que me aconteceu a mim ontem à noite, quando me preparava para dormir e, com a luz da televisão ainda acesa, deparei com um lagarto pequeno e negro, fino e intenso, que tinha subido pelas pernas da cama. Olhou-me fixamente como eu o olhei. Devia ter tido medo como eu, porque tentei apanhá-lo com a almofada e ele conseguiu fugir. Procurei-o o resto da noite, em vão, não era assim tão pequeno, antevendo vezes sem conta o momento em que ele me voltasse a aparecer. Fui dar aulas sem dormir. Mas algo de mim já tinha menos medo daquilo: era só uma lagartixa assustada, éramos só duas. Como se ter visto a lagartixa me tivesse feito mais forte em relação às coisas que se passam no segundo piso, onde hei-de encontrar pombas e cobras. Percebo agora as tékis e os tokés que aqui vão à escola: são répteis que comem os insetos que voam, esses sim um perigo que vem do alto. Ando a reler esta semana, como se nota, o Cancioneiro para Timor, do Rui Cinatti (mais informações sobre a casa sagrada, a “uma lulik” e os símbolos em Timor podem ser lidas aí). Na verdade, tinha-o lido antes de vir para aqui. Li-o pelo teto. Mas hoje, três semanas depois, leio-o pelo sobrado, e parece-me outro livro. Na página 74, Cinatti escreveu um poema à serpente, uma serpente que ele deve ter visto bem, olhos nos olhos, quando andava a recolher espécimens de plantas aqui em Timor: “A serpente, temo-a eu/que me sustenta o juízo/ [...] enrolada no meu corpo/ descerra-me o paraíso.”

     




Maria Luísa Malato