Espaço Associados

Textos de Maria Luísa Malato


       Postais de Dili, 10 de setembro de 2013



Fui a Liquiçá ver “uma escola de referência”, com a Ana Luísa e fiquei plenamente convencida de que ela tinha razão. As escolas de referência são, por enquanto, só 9. Para o ano abrirão mais duas (a de Dili incluída) e só faltarão mais duas... Isto para haver uma escola em cada distrito. Uma gota de água: metade da população de Timor tem menos de 15 anos. Essas escolas conseguem ensinar português porque têm a dirigi-las pessoas que sabem falar português, em geral, pessoas portuguesas que foram por um ano e já lá estão há três, seis, dez anos. Formam professores timorenses, ensinando-lhes português e a dar mimo, porque, por educação, os timorenses são mais reservados. Pagam do seu bolso aulas de flauta, martelam bancos que recebem partidos, rebocam paredes rachadas, colocam telhas, fazem prateleiras e bancos de jardim com canas de bambu, vão limpando as pedras do recreio, e pedem livros. Livros de histórias, DVS, jogos, ou material escolar (não cassetes VHS, não manuais escolares antigos e desatualizados). Os meninos da ER estão cinco horas na escola, têm miminhos, uma biblioteca e uma televisão. Ao lado existe uma escola normal, timorense, mas não de referência. As paredes estão sujas e quase sem desenhos, algumas cadeiras parecem partidas (90% dos edifícios escolares foi deixado destruído pelas milícias indonésias, para revolta de alguns indonésios). Há meninos cá fora e outros lá dentro: não são obrigados a entrar nas duas horas por dia que passam na escola. Alguns andam descalços ou com as meias molhadas por terem ido à casa de banho. A principal diferença está na direção: uma acredita que pode mudar o mundo, que o real não basta. A outra compreensivelmente desistiu, e nivela por baixo.

Se há futuro para a língua portuguesa em Timor (e tanto trabalho há a fazer), ele está aqui, nestas gotas de água ainda, junto dos meninos que falam as 33 línguas maternas de Timor. E nos pais que não querem agora que os professores vão embora. Em Dili, já com wireless nas esplanadas do Largo de Lecidere, encontrei hoje um miúdo da rua que buscou desesperadamente na memória umas palavras para me pedir esmola em português, e acabou por suplicar: don’t speak english? Na verdade, não é a Mana Cristina, como por aqui chamam familiarmente à esposa australiana do Xanana Gusmão, a única a pensar que não faz sentido aprender português: entre a pluralidade das línguas maternas e o inglês como língua franca, pode-se facilmente pensar que não há viabilidade para o português como língua de identidade timorense. Será o que todos quisermos que seja. Por enquanto, creio que, em Portugal, quando se fala orgulhosamente da lusofonia em Timor, pouca gente sabe o quanto deve a meia dúzia de timorenses que estão em cargos governativos e a outra meia dúzia de portugueses que por aqui ensinam. A Escola Portuguesa em Dili, a que ainda hei-de ir, é excelente, segundo os pais dizem: os curricula são os das escolas portuguesas e os exames são lá, aí corrigidos. Para além da Escola Portuguesa (e, claro, da UNTL, do INFORDEPE e uma ou outra escola de formação superior), parece não haver aqui escolas privadas onde se possa “ir aprender português”: como há muitas para “ir aprender inglês”. Pode-se continuar a ensinar português a uma elite timorense e aos filhos dos cooperantes portugueses. Nada que não tivessemos já feito. No início dos anos 70 (a invasão indonésia foi em 1975), só 6,6% da população timorense falava português, em grande parte devido à prática religiosa desde o século XVI, ou ao trabalho dos militares, desde 1972. Aos nativos que falavam a língua, chamavam-se, a partir dos anos 30, os “assimilados”, distinguindo-se eles quer dos portugueses (há muitas formas de cristãos-novos), quer dos “indígenas” (os que não valia a pena assimilar). É certo que, entre 1972 e 1974, o investimento quase quintuplicou e previa-se que em 1974, 80% das crianças começasse a frequentar o ensino básico. Previsões. A partir de 1975, a língua portuguesa passou a estar proibida: a única língua permitida era o bahasa/ “a língua”, em indonésio, e a igreja relançou o tétum como língua de missionação. Os livros em português tiveram de ser destruídos ou escondidos. Muitos timorenses de Dili, descobriram então a falsidade de um mito urbano: os livros, se enterrados num saco de plástico, não resistem à humidade e aos bichos. Não aqui, quando a chuva penetra em tudo, onde os bichos entram em tudo. Foi unicamente por vontade da resistência timorense que o português se tornou a língua dos guerrilheiros, ela que era a língua dos funcionários. De alguma maneira, o que nos tem mantido com o sonho de falar a mesma língua é uma mútua mitificação. Falamos de Corte-Real, fusilado pelos japoneses por se ter recusado a entregar a bandeira nacional, mas os timorenses sabem que lhes demos três bandeiras para respeitar durante quatro séculos e meio. De Timor hoje temos os Trovante, que continuam a cantar no Hotel Katuas. A RTP Internacional não passa aqui um único programa para as crianças e os jovens (dizem-mo, que eu só sei o que vão fazendo a TV5, a DW (que vai passar um concerto dos Madredeus), a NHK, a Russia Today a a Al Jazeera Internacional. Não lemos Fernando Sylvan aos nossos alunos, parecemos alheios a Nuno Cardoso (que injustiça!, e acabou de publicar um romance fabuloso com a chancela da Porto Editora), mas gostamos da ideia de aqui se lerem correntemente Os Lusíadas, ou na sua falta o Rui Cinatti, que poucos aí tiveram a paciência de ir buscar à biblioteca. O que há são mitos, que alguns teimam em deixar sem forma. Nem todos. Se quiserem mandar material para a Escola de Liquiçá, aqui fica a morada: Escola de Referência de Timor-Leste/ Liquiçá, Apartado 144, Dili, Timor-Leste (ao cuidado da Dr.ª Ana Paula Machado).

     






Maria Luísa Malato