Espaço Associados

Textos de Maria Luísa Malato


       Postais de Dili, 9 de setembro de 2013



O ritmo de Timor está a mudar. Muito depressa. O caminho que faço hoje para a faculdade parece desenrolar-se com menos sobressaltos. Não descubro porquê. Talvez eu já esteja mais habituada. Talvez tenha desenvolvido a técnica do peão local: ameaço suicidar-me, atirando-me para o asfalto quando vejo um espaço vago de dez metros entre as vagas dos carros e as vagas das motas. Continuo depois, confirmando com passos decididos a ameaça, e esperando que a seguir não venha a onda mais difícil de todas as ondas: a que é composta por carros e motas, que se lançam sobre nós a diferentes velocidades. Até agora resultou. Cheguei até a obter uma paragem (de um Toyota), facto que me pareceu desmentir a hipótese de as oficinas de Timor irem tirando aquela inutilidade dos travões aos carros. A verdade é que era um carro novo, podia ainda não ter ido à oficina. Pedro, Jorge: não pensem que não faço as coisas cientificamente e segundo a lei. Faço sempre isto a atravessar passadeiras, mas parece que ninguém sabe o que significam aquelas riscas. Talvez por isso elas mal se vêem: de que servirá pintá-las? Mas hoje, não. Hoje passei pela primeira vez com um espaço livre de cinquenta metros. Tási-feto: as ondas faziam entre elas uma autêntica piscina, dava enfim para fazer uma travessia calma. Dia histórico. É provável que se chegasse a Dili hoje, dia 9 de setembro, não tivesse para contar exatamente o mesmo. Muita coisa muda quando muda o ritmo para atravessar uma rua. Foram as ruas que melhor me ensinaram o ritmo de Dili... De um lado, via pessoas de todas as idades, junto às portas das casas e estabelecimentos, de joelhos flectidos, a olhar silenciosamente o mundo. Do outro, carros e motas, que apitavam sistematicamente, uma duas vezes, fazendo-me crer que estava a mais no passeio. Hoje dia 9 de setembro, sei já de fonte segura (por hábito, por costume, porque é assim), que os automobilistas apitam sempre que passam por um peão: devem perguntar-se o que fará uma pessoa deslocar-se ao longo de um passeio, sem pernas fletidas e sem carro? Quererá um taxi? Precisará de algo que a avise para o perigo de se deslocar a pé? Estará ela a pensar suicidar-se? E apitam, por serem prováveis todas estas razões. Quando cheguei a Dili, no dia 20 de agosto, o que desde logo me tinha sobressaltado era a necessidade de esperar carros numa faixa diferente, já que aqui se anda oficialmente pela esquerda. Digo oficialmente, porque o centro é frequentemente uma opção conciliadora entre as várias legislações. Mas afinal foi fácil habituar-me a isso. Custou-me mais conciliar dois ritmos ondulatórios: as vagas de carros e motas que vinham da direita com as vagas de carros e motas que vinham da esquerda, havendo por vezes duas faixas. Digo havendo, porque não me foi muito fácil saber quando as ruas tinham uma ou duas faixas. Segundo confirmei, o automobilista simplesmente sabe, por prática, por hábito, porque é assim. E não há sinais de trânsito? Encolheram-me os ombros: as pessoas sabem, é costume. O costume justifica assim muito dos ritmos timorenses. Usa-se aqui o costume para atravessar a rua. Usa-se o costume para saber se uma rua tem sentido proibido. Da mesma forma que se usa ainda o costume quando se nasce, casa, adoece ou morre alguém. Usam-se aqui costumes muito mais antigos do que os que foram trazidos pelos missionários. É compreensivo numa sociedade muito oral, em que a lei escrita não tinha até há pouco qualquer legibilidade se não fosse traduzida para o suporte do vento. Foram sendo sábios os missionários e os governadores que o compreenderam. Os costumes do tempo das secas são diferentes dos costumes do tempo das chuvas, porque é a natureza que manda nos costumes: manda o sol, manda a chuva. É costume o timorense ir nos feriados à terra: aproveita-se a ida e agradecem-se aos espíritos da casa sagrada as benesses recebidas, veneram-se os antepassados e entregam-se os medos. Tira-se um dia antes, pede-se o dia depois, e fica-se mais um tempo com a família, que as estradas são más e as viagens se fazem longas por isso: que há a fazer de tão inadiável assim? Mas alguns timorenses falam já de “produtividade” e “desenvolvimento”. Os empresários estrangeiros aqui queixam-se há muito: demasiados feriados, demasiadas tolerâncias de ponto, demasiados dias de falta, antes e depois da tolerância de ponto. Mas “hora”, em tétum, diz-se “tuku”, que quer dizer “pancada” (talvez do badalo no sino da igreja ou de um gongo, que todos os trabalhadores ouviam). “Tuku hira”, “Quantas pancadas?” Ou seja, “que horas são?” A palavra “minuto” não existia em tétum. Entrou por via portuguesa, e diz-se “minuto”. Muito menos a palavra “segundo”. Em tétum só há meses (os da Lua), dias (os do Sol) e horas (as das pancadas do homem). Olho para os braços dos que andam a escavar os novos jardins da UNTL: não têm relógio, não têm telemóvel. Onde acabou o costume e começou já a lei? Que sino, que gongo os faz contar agora as pancadas? “Tuku hira?” São seis e meia da tarde, já anoiteceu. E é só por isso que eu vejo a razão do meu dia histórico. Os semáforos começaram a ser instalados em Dili, e o trânsito fluia ritmado pelos sinais verde e vermelho. Não há, nos semáforos, indicadores para peões, mas descubro até um novíssimo sinal de sentido proibido. Timor vai mudar. Vai mudar tão depressa. Corro automaticamente para chegar a casa, ainda vou preparar aulas. E penso no Cinatti que escrevia no caderno, em 1948, perante a perspectiva de suspender o trabalho durante uma bátega de água: “A chuva deve durar mais hora e meia. Não há nada a fazer. Sinto-me feliz, contente... Supor que me encontro tão longe de tudo”.

     




Maria Luísa Malato