Falhei ontem o Tour. A partida, às 7.20 da manhã, da Praia de Lecidere, era cedo demais para mim, mesmo com os galos. A chegada será na sexta, comigo em aula. Lá andarão eles a percorrer a ilha, de bicicleta, a tentar apanhar tudo em meia-dúzia de dias, como eu: subirão ao Ramelau, eles, talvez até uma etapa seja a do pico Tata-Mai-Lau, literalmente, qualquer coisa como “morder para andar”? Lá foram eles, correr Timor, morder para andar. Eu não. Ficarei em Dili. Com sorte, talvez vá um dia à ilha de Ataúro, que se vê de Lecidere. Desisti ontem definitivamente da minha ideia de ir à Austrália, aproveitando estar tão perto. Desisti também da ideia do Ramelau, de ir à Ilha de Jaco ou de saber como é a “uma lulik”. Em Portugal, como um cientista que via as constelações a um telescópio, tudo me parecia perto. Agora, como um cientista que vê uma célula ao microscópio, tudo me parece enorme. Na aula, ontem, espantavam-se os alunos com a palavra “pequenininho” que eu tinha utilizado e eles não conheciam: alguns repetiam-na alto, acentuando a sucessão de iis, demorando-se nas nasais, sibilando, passando devagar o pau pelo gradeado dos portões, como fazem as crianças e os poetas. A palavra ficava comprida e longa. Talvez só então eu tenha compreendido que falarmos demoradamente de uma coisa pequena a torna incompreensivelmente grande e terna. Foi o prazer deles que me fez ver isto, porque, por mim, andaria fascinada com o tétum que, para pequeno, diz “ki’ik”. O que quererão dizer estes nomes, “pequenininho” e “ki’ik”? Acreditando eu piamente em Crátilo e Diderot e Herder e Nietzsche quando associam o nome das coisas a uma sensação original das coisas, “Ki’ik” só por significativo acaso pode ser dissociado de “pik”, que era o que nós chamávamos ao mais “piqueno” lá de casa. O que não quer dizer que Hermógenes não tenha as suas razões. Tudo permite equivalências mínimas: “Pequenininho” em tétum dir-se-ia “ki’ik oan”, à letra, “filho do pequeno”. Mas tudo se traduz porque tudo se arrasta. A minha colega Eugénia espanta-se com o meu nome tão português mas relativamente raro em Timor. E explica-me, sem eu lhe pedir, que em Timor os nomes tinham de ser todos aprovados no batismo. Chegava-se à igreja com um nome em mambai, em tétum ou em fataluco. Na terra dela, de fala mambai, um rapaz chamava-se quase sempre “Mau-qualquer coisa de significativo do dia em que nascia” e a rapariga “Bi-qualquer coisa de significativo do dia em que nascia”. “Mau-manu” é homem nascido ao cantar do galo. “Mau-gunda” é homem nascido a uma segunda-feira, e também “Mau-terça”, “Mau-quinta”, “Mau-sexta”, “Mau-sabu”, ficando definitivamente por esclarecer o facto de os “Mau-quarta” serem muito raros. “Mau-bere”, não quer dizer nada, esclarece-me ela, lamentando a conotação política: “- Só quer dizer “nascido”/-bere, “homem/mau-, “nascido homem”, é só o que quer dizer “maubere”! Também há “Bi-bere”, nascida mulher”. Mas chegava-se ao batismo e o padre mandava escolher outro nome, um que fosse cristão. Agora já não se faz isso. Mas os nomes cristãos ficaram. Nomes tirados dos portugueses que por aqui andavam. Há pois nomes que foram deixando de se ouvir em Portugal, Afonsinos, Mários, Marias, Eugénias, Zulmiras, Albertinas, Fátimas, Teófilos, Abílios, Tomás, Tomásias e Alises [sic]. Martim é aqui vulgaríssimo (em Portugal qualquer dia também volta a ser), mas muitos nomes parecem tirados dos livros de História ou de estórias: há Agriphinas, com ph que se lê p, Joaninhas, Adolfos, Aquilinos, Césares, Moisés e Emilianos. Eu e a Eugénia acabámos por falar da conotação que têm sempre os nomes, afinal de contas. “Eu-génia”, por exemplo, acabava também por ser significativo: de bom nascimento, de boa cepa, afinal. E eu era “Ludovica”, mulher valente em godo. O que nós esquecemos! No tempo da guerra, continua a ensinar-me a Eugénia, apareceram muitos rapazes “Mau-brani”, homem valente, ou raparigas chamadas “Bi-terus”, mulheres do sofrimento. Como Dolores, acrescentei eu, ou Maria das Dores. Fiada na pertinência linguística, perguntei: - E não apareceram na guerra também as “Bi-brani”, as “mulheres valentes”?... Mas não, não era costume chamar “brani” às mulheres. Só os homens eram “brani”. É pena, disse eu preocupada com a afirmação das ludovicas no mundo... É um nome bonito. E pensei, pelo que li no Museu da Resistência, que devia ser esse o nome de Maria Gorete Joaquim, antes de ser uma portuguesíssima Maria Gorete.
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