Espaço Associados

Textos de Maria Luísa Malato


       Postais de Dili, 1 de setembro de 2013



Há coisas que parecem impossíveis. Porque nunca as vimos. Revejo a minha pasta, os apontamentos, com o nervosismo de quem vai à escola pela primeira vez. Começo a dar aulas amanhã na UNTL, quatro dias por semana. E propus à Fundação Oriente trabalhar lá ao Sábado de manhã: adeus, manhãs na Praia da Areia Branca. Dou mais uma vista de olhos ao caderno onde vou anotando as leituras, para não me esquecer daquelas coisas que só aprendi aqui, durante os primeiros 15 dias. Coisas úteis, a que preciso de dar muita atenção:

Há árvores que dão flor no meio da água salgada do mar.

Os javalis podem saltar muros de quase um metro de altura.

Os crocodilos de Timor são réptéis que podem vir do lado do mar...

Há culturas que não sabem o que é a “Literatura”: são aquelas em que contar histórias é tão importante que faz parte da vida.

O mar (tasí) tem dois sexos. Tasí-mane, o mar homem, é o mar revolto. Tasí-feto, o mar mulher, é o mar calmo.

Cada aluno chega à Universidade de Dili a falar duas a três línguas: a materna (provavelmente o fataluco de Los Palos, que é da família papua, ou o mambai ou o tétum do sul, que são da família austonésia), o tétum-praça (o de Dili, que se distingue do tétum térik do sul da ilha), e o bahasa (em indonésio, “a língua”, a única língua que foi ensinada em Timor durante quase 30 anos, uma geração). Depois, na universidade, tem de saber a língua do professor cooperante. Terá algumas aulas em tétum ou em bahasa, de professores timorenses e indonésios. Terá certamente aulas em inglês, com sotaque americano, australiano ou japonês (consoante as áreas económicas envolvidas), aulas em espanhol com pronúncia cubana (se quiser seguir medicina ou enfermagem) ou em sul-coreano (um professor e a perspetiva de um bom mercado de trabalho). Terá também aulas em português, com sotaque brasileiro ou europeu, sobretudo em cursos como Direito ou Educação. A UNTL é a única universidade pública de Timor, e tem cerca de 5500 alunos. Mas há mais 2500 alunos em 10 instituições privadas do ensino superior. Em cada curso domina a língua da comunidade de cooperantes. Tento lembrar-me de quantas línguas se queixam os nossos alunos, quando mal aceitam ler bibliografia em inglês...

Na UNTL, os alunos não andam com livros.

Veem-se muitos telemóveis com internet. E um número razoável de tabletes. Quando os alunos atendem um telemóvel, dizem: “Hallo!”

Aqui, 35% das casas timorenses têm rádio e 25% televisão. Isto quer dizer que 75% das casas não têm televisão e 65% não têm rádio?

As escolas primárias têm, em geral, 700 a 1200 alunos.

Cada aluno tem duas horas de aula por dia. Das 8 às 10h. A seguir começa outro turno: 200 + 200 + 200 + 200... até todos terem aula.

Não há salas suficientes. 90% das escolas foram parcial ou completamente destruídas em setembro de 1999 pelas milícias indonésias, depois do Referendo de 30 de agosto.

Não há professores suficientes. Segundo o último plano estratégico (http://timor-leste.gov.tl/wp-content/uploads/2012/02/Plano-Estrategico-de-Desenvolvimento_PT1.pdf), 75% dos professores não tem habilitação própria.

Duas fontes asseguram-me que grande parte dos 25% restantes não está provavelmente a dar aquilo para que esteve a ser formado.

Não há estatísticas, mas o percurso dos professores de português (os timorenses que estiveram a aprender português como língua estrangeira/ não-materna) é incerto: muitos não chegam a dar aulas de português, entre a tentação de concorrer a um emprego administrativo e a obrigatoriedade de dar matérias mais importantes, de acordo com a estratégia do diretor da escola.

Na rua, há crianças de seis anos que fumam enquanto brincam com carrinhos.

No distrito de Dili, mais de 93% dos jovens entre os 15 e os 24 anos são alfabetizados. (Censo de 2010). A maior parte dos professores só consegue ensinar tétum.

Em 2001, a taxa de alfabetização geral era de de 40%.

38% das crianças timorenses têm níveis claros de anemia.

Moro perto de uma escola que tem 1200 alunos: descobri isso porque os ouvia cantar. Cantam tudo, tabuadas ou cópias: não há livros para quase ninguêm.

Em Dili, veem-se muitos jovens e crianças: cerca de metade da população tem menos de 15 anos.

Em 2001, os analfabetos representavam 10% da população portuguesa. Passaram a ser 5% no Censo de 2011. Portugal continua a ser o país da Europa com maior número de analfabetos.

Nas aldeias timorenses, ainda hoje há o “lia-nain”, literalmente “o dono da palavra”. É ele que se move entre a poesia, o direito e a medicina, num lugar sem-lugar de onde a Literatura partida parte.

O mundo, na verdade, está cheio de coisas incríveis em que temos de acreditar.

     




Maria Luísa Malato