É feriado aqui. Já o segundo que apanho. A 20 de Agosto, quando cheguei, comemorava-se a formação das FALINTIL. Timor gosta de feriados e a ponte começou já ontem na véspera. Mas ao feriado de hoje eu não queria faltar, hoje catorze anos depois do 30 de agosto de 1999, dia do Referendo. Uma farsa, na época. Os apoiantes da autonomia gastaram uma fortuna. Os apoiantes da independência não puderam fazer campanha. Sairam-se com um slogan retórico sobre o assunto: “Não fazemos campanha. A Indonésia fez 24 anos de campanha por nós”. Nos panfletos com estatísticas que trouxe da exposição do Congresso, há muito menos pessoas que tenham agora 30-34 anos. Faço as contas: é essa a geração que morreu quase de fome, quando, nos primeiros 4 anos da ocupação, Timor perdeu 23% da população. Esperava a praça do Palácio do Governo cheia, mas estava só composta. Esperava que às 9h30 ainda tivesse de esperar pelos políticos e discursos do costume, mas o Xanana falava já, a horas. Dois jornalistas australianos, talvez uma indonésia e timorenses. Gravam umas imagens. Primeiro vão-se os australianos, depois a indonésia, ficam os timorenses. O Xanana continua a falar, discurso longo, pausado, com silêncios longos, perguntas ao público: já não se faz disso por cá, é tudo mais ritmado. Ha’u la ko’alia tétum, mas entendo o que ele quer dizer quando se move entre um grupo de velhos, vestidos com os tais tradicionais (tais-mane, tais-fetu, consoante os sexos) e um grupo de crianças, de t-shirts e sapatilhas. Participar nas eleições, pensar na cidadania, não é nunca um dado adquirido. Penso na praça que julgava mais cheia, e na responsabilidade que cada um de nós tem de pensar na vida política, sem desistir, ainda quando tudo parece uma farsa. E penso também que é preciso não nos esquecermos de passar o testemunho. Penso nos meus filhos. Sim, o Xanana deve ter falado de tudo isto. Deve também ter dito coisas com piada, porque as pessoas riam e um timorense ri com todos os dentes que tem na boca, ou todos os dentes que ainda tem, com vontade que dá gosto, só tapa a boca quando o malai olha sério para ele. Cantaram-se depois canções sobre a terra de Lorosae, e o palco maior passou para fora do palco. Dou-me então conta de que, idos os dois australianos, e uma passante de mochila, sou eu a única malai que por ali ficou. Não há políticos das embaixadas. Não há cooperantes. Ao meu lado, um antigo combatente, diz-me que ainda não saiu a bala que levou depois do referendo, num ataque de milícias. Ensina-me a contar em tétum até 10, para eu ir seguindo a lotaria de oferendas: mas eu não tenho cartão. Uma senhora vem convidar-me para entrar na roda. E um senhor com um enorme penacho na cabeça teimou, em vão devo dizer, ensinar-me os passos certos que eu tinha de fazer com o pé direito. Do palco, o cantor mete-se com a minha saia ocidental, porque era feita de tais. Aquilo dava a ideia de ser um elo que faltava entre os dois grupos que no início estavam no palco: os velhos, vestidos de tais e diadema, e as crianças, de t-shirt e sapatilha. Ora a minha vida! E eu que gosto é de estar quieta a observar! Pergunta-me se sei tétum? Lai, koitadu! Se era australiana? Portuguesa? Então fala inglês? Sim. Francês. Também. Indonésio? Não. Não gosta de falar indonésio? Como pode ser uma portuguesa? A multidão ri. E depois vem falar comigo uma senhora a dizer que gostaria muito de ir um dia a Fátima. E um rapaz que quer jogar na escola do Cristiano Ronaldo. Uma senhora aperta-me as mãos e agradece-me estar presente ali: que há para agradecer? E muitos querem mostrar que ainda sabem algumas palavras de português, que eu começo a tentar responder com tétum. Porto não é Portugal? Fica em Lisboa? É como Dili e Baucau. O Xanana, que andava por ali a oferecer bolos e água aos miúdos (assusta-me tanto ver comida pisada, num Timor ainda tão pobre) vai agora embora. Agradeço-lhe somente o livro de poemas que me deixou assinado e ele agradece-me o Manual Anti-Tiranos que eu tinha deixado à Secretária. Vindo de um guerrilheiro é muita bondade: o livro é um explosivo artesanal. Mas foi o que a arte me ensinou. O essencial disse-o ele, fê-lo, que as ideias querem-se palavras como as palavras se querem atos. Descontadas as palavras de época, escreveu um dia: “O irreversível não é o que se impõe de momento, seja ele curto ou longo, pela força [...]. O irreversível é a correcção que a história faz dos erros [...]”.
O que eles têm para nos ensinar...
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