Espaço Associados

Textos de Maria Luísa Malato


       Postais de Dili, 29 de agosto de 2013



Dia quase todo passado a tentar ter de novo internet, depois de quase uma semana sem ligação. Tinha também de terminar um texto sobre o Albert Camus e cliquei inadvertidamente no teclado do PC que o perdeu na sua memória mais recôndida. Desesperada, achei que merecia almoçar fora, ainda que fosse já tarde, e acabei por entrar no Katuas Hotel, o hotel onde é usual os portugueses ficarem quando não têm dinheiro para ficarem no Hotel Timor. O Hotel Timor é dos donos da Fundação Oriente, uma das casas mais bonitas da minha rua. O Katua’s Hotel (em tétum “Katuas” quer dizer “velho”: a apóstrofe e o “s” são só para inglês ver) pertence a uns portugueses do Alentejo/ Algarve e é um hotel mais tradicional. Empurrada a porta, eu juraria que não podia ser verdade. No ar passava uma canção dos Trovante, não uma canção qualquer mas a faixa de um CD do Luís Represas que cantava “Em Timor”. Sentei-me numa mesa junto à parede de vidro, a olhar para o calor lá fora. Paredes verdes, cadeiras de uma verga qualquer dos trópicos, ventoinhas largas no teto. Um microclima. A ementa falava por si: o prato do dia eram lulas à algarvia, em conta, por 6 dólares, metade do preço das pataniscas do Hotel de Timor. Mas já não havia, tinham tido muita gente ao almoço. Era verdade, ainda estava cheio de gente animada que parecia conhecer-se toda, e já iamos a caminho das 2 da tarde. Consulto a ementa em português e inglês, espantando-me por não encontrar ementa em tétum: à 2.ª f., pataniscas, à 4.ª coelho à caçador! Sopa de grão de bico, de feijão-frade. Mas não me apetecia nada elaborado e demorado, e acabei por pedir sopa e um portuguesíssimo bitoque. No ar passava agora um fado de Coimbra. Era mesmo um fado de Coimbra. Meu Deus, logo de Coimbra. Pareciam ter escolhido aquilo para mim, de propósito. Até a cerveja era Super Bock, para mostrar que naquela “nasaum” a Sagres dos mouros não entrava. E as vozes à minha volta falavam de coisas como é assessor agora, sabes, e do jogo da Académica com o Sporting, jogou pessimamente a Académica, e um Sporting como não se via há muito, já não me lembro. Tudo aquilo me pareceu uma mensagem cifrada, e só eu tinha o código todo na memória, mais ninguém. Mandar uns e-mails, pá, uns problemas. E aquele bacalhau, ontem! Não conheces o Crisóstomo, do Ministério? Uma água das pedras, de Carvalhelhos, se faz favor. Se quiseres eu apresento-to, pá. É o melhor. O Jesus não tem futuro. A empresa faliu em Portugal.

Problemas. Isto em Timor é assim. Tem de ser assim. A gente vê-se. Tenho mesmo de mandar uns e-mails, pá!

Consulto o meu dicionário para saber como se diz “problema” em tétum. “Problema” em tétum é “Problema”. Fico também a saber que a expressão portuguesa “Que pena!”, próxima, no guia de conversação, da área dos problemas, se diz em tétum “koitado!”. Olho através da parede de vidro e vejo lá fora deambular uma mulher com garrafas penduradas no bambu que leva aos ombros. Tão frágil o vidro que nos separa. O restaurante vai-se esvaziando. Saem do restaurante e vão de carro para o trabalho. Não é má gente. Uma rapariga de vestido preto e saltos altos, como consegue ela andar aqui assim?, volta atrás e deixa uma caixa com qualquer coisa para a mulher que ainda deambula as garrafas quentes, para cá e para lá. Desde lado do vidro, timorense, só a empregada, que me pede para pagar: desculpe, ao ver-me surpreendida, é preciso fechar a cozinha. Mas posso ficar o tempo que eu quiser. Dou ainda uma demorada vista de olhos ao cenário verde e às cadeiras de folha de bananeira, talvez seja folha de bananeira: lembra os filmes ingleses sobre os anos 40, em África. No balcão inglês, de madeira escura, dois jornais em tétum, dobrados. Nada daquilo é a sério.

Empurro a porta e sinto-me como uma miúda feliz que tivesse ido ao Portugal dos Pequeninos.

     




Maria Luísa Malato