Espaço Associados



       Trabalhadores líquidos

Publicado no I em 2011-04-26 -Pag. 3; Publicado no PÚBLICO em 2011-05-02 -Pag.30



"Trabalho em migalhas" foi, há cerca de 60 anos, a metáfora utilizada por Georges Friedman para o que em plena revolução industrial era prática nas empresas: trabalho em cadeia, hiperdividido, monótono, repetitivo, intensificado e alienante. Charlot, no filme Tempos Modernos, caricaturou bem esse modelo de organização "científica" do trabalho teorizado e promovido há cerca de cem anos pelo engenheiro Frederick Taylor. Todavia, estranhamente (ou não) esse tipo de organização do trabalho era então praticado em empresas muito estruturadas, verticais, com organização rígida, "sólidas".

Agora são as empresas que estão "em migalhas", fragmentadas por outsorcing, subcontratação, franchising, ACE, consórcios, "unidades de negócio", "grupos", etc...

A metáfora "migalhas" está mesmo ultrapassada, porque cada vez mais as empresas têm que se tornar "líquidas", adaptarem-se à "forma" (exigências) de mercado que as "contém". E tendem mesmo a tornar-se "gasosas", surgindo "na hora" e "esfumando-se" num ápice em deslocalizações, encerramentos e "falências" repentinas, "bolhas" e off shores.

Com a precariedade como regra, o "trabalho em migalhas", já degenerou em "trabalho às gotas": a termo, temporário, em falsos "estágios" e falsos "recibos verdes". "Gotas" (períodos de emprego, duração dos contratos) cada vez mais pequenas e a "pingar" mais espaçadamente (períodos de desemprego cada vez mais longos).

Mas, "tutores" externos, com alguns auxiliares internos, estão agora a "ajudar-nos" a compreender que a "rigidez do mercado de trabalho" é a eterna e única mãe de todas as crises e, portanto, já não basta "esmigalhar-se" e "liquidificar-se" o trabalho, a organização e condições em que as pessoas o realizam. E que é preciso "refinar" esse processo "físico e químico" (ou será político e gestionário?) "esmigalhando" (ainda que de forma "flexível") também os trabalhadores: por vários empregos, funções, horários de trabalho, locais e trabalho e, mesmo, por vários empregadores.

Não tardará que também nos "ajudem" a concluir que é "inevitável" que se volte ao modelo científico "competitivo" do trabalhador "amorfo" (submisso, humilhado, sem participação, sem direitos, multifunções mas sem profissão), "feito em água", espremido" e "sugado" física, mental, familiar e socialmente pela duração, ritmo, (des)organização ou falta de meios no trabalho, sujeito a ser "despejado" para a rua de chofre e de qualquer maneira.

É natural. Quem nos "ajuda", tem talvez por claro como a água que, para diluir melhor a empedernida, recorrente e eterna "rigidez do mercado de trabalho", nada melhor do que "trabalhadores líquidos".


João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa