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       A urgência do essencial (e vice versa)

Publicado no PÚBLICO de 2011-03-08 (pag. 36) e quinzenário GAZETA DA BEIRA de 2011-03-31 (pag.28)



"Temos hoje uma ditadura da urgência", declarou, com sentido crítico, o líder parlamentar do partido do Governo numa recente entrevista radiofónica (Antena Um, 4/3/2011).

Ainda que se concorde com essa análise do processo político, talvez não seja alguém com as responsabilidades do líder parlamentar do partido do Governo quem tem mais autoridade moral para fazer essa crítica.

Sob a bandeira da "coragem e determinação", habituou-nos o Governo à "aceleração" com que adoptou várias reformas, por exemplo, Código do Processo Penal, Código do Trabalho, Código da Acção Executiva, taxas moderadoras nas cirurgias, fecho das "urgências", restrições no transporte de doentes, reorganização da rede escolar, avaliação dos professores, reforma curricular do ensino básico, último processo eleitoral, Ota, TGV, PEC I, PEC II, PEC III e, "prego ao fundo", PEC IV...

Todas essas "reformas", por razões "adjectivas" ou "substantivas", tiveram, como se sabe, que ser ... reformadas, rectificadas ou suspensas, por, a breve trecho, se vir a concluir (nalgumas, inclusive, pelo próprio Governo) terem sido, no mínimo, precipitadas, mal preparadas e técnica ou politicamente erradas.

Pela falta de preparação e de diálogo, pela pressa e pelo atabalhoamento do processo dessas "reformas, o Governo, ao desencadeá-las precipitadamente como desencadeou, só criou comprovado prejuízo social, pois que, independentemente da discutibilidade da (im)pertinência e (i)legitimidade política dessas "reformas" , no mínimo, atrasou-se a concretização do que de socialmente positivo delas pudesse, eventualmente, resultar. De tanto "acelerar" para mostrar "coragem e determinação", o Governo não terá percebido que acelerar não é fazer a mesma coisa mais depressa. É fazer (já) outra coisa, (já) com outro processo, com outras (menos) etapas, com outros métodos, com outra qualidade, provavelmente menor. Mas, talvez a explicação para a questão seja mais de fundo, "filosófica". É que a ideia que fica é a de que, para o Governo, a "essência" política destas reformas era, apenas, a urgência da sua imediata "contabilização" mediática, ciente que está que mediatismo depende de imediatismo; ou a urgência de uma imagem de "austera" "contenção de despesas" para mostrar "aos que nos observam do exterior"; ou a urgência do cumprimento, subservientemente "urgente", de qualquer voz de comando com sotaque anglófono ou germanófono.

As confusões, rectificações, desilusões e (necessariamente) contestações quanto à aplicação dessas "reformas" evidenciam que o que delas deveria, de facto, ser considerado essencial (Justiça, Saúde, Educação, Economia, trabalho digno), foi adiado, não foi considerado urgente. Em resumo, no processo de concepção e ou aplicação destas "reformas", conclui-se agora que o Governo considerou "essencial " o que entendeu como urgente e não considerou urgente o que era (é) essencial.

Deixou-se dominar pela "ditadura da urgência".

É certo que talvez possa haver alguma tolerância com esta(s) falhas(s) governativas de, com a(s) urgência(s), se prejudicar o essencial, na medida em que, como nos explica O Principezinho (Antoine Saint Expeury), "o essencial é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração". De qualquer modo, parafraseando Edgar Morin, também aqui bem pertinente, na Política como em tudo, "é preciso que o essencial da urgência não prejudique a urgência do essencial".


João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa