"Insuficiência económica". 'É, a partir de 1 de Janeiro de 2011, uma das condições para que o Serviço Nacional de Saúde (SNS), garanta aos doentes "não urgentes" o transporte em deslocações a unidades de saúde. A outra condição, como consta de um despacho (Nº 19264/2010) do Secretário de Estado da Saúde (SES) publicado em Dezembro de 2010, é (como já vinha a ser) a "justificação clínica".
Em muitas unidades do SNS onde o tal despacho foi interpretado "a letra", deixaram de ser passadas ou validadas "credenciais" de transporte em ambulância (serviço prestado, em regra, pelas associações de bombeiros) a muitos doentes que, pela sua "condição de recursos" foi considerado não haver "insuficiência económica".
É certo que Administração da Saúde terá suspendido a aplicação do despacho até ao início de Março mas, apenas, porque ainda não terá conseguido operacionalizar, em articulação com a Segurança Social e com a Administração Fiscal, nos termos de um decreto-lei de 2010, o sistema de controlo da "condição de recursos" dos doentes.
Mas é já mais que evidente o impacte humano e social desta medida do Governo, do qual uma das facetas é o de haver doentes a faltar a consultas ou tratamentos (alguns deles sistemáticos e prolongados). Com mais incidência no interior do país, tendo em conta o envelhecimento, isolamento e condição socioeconómica das populações, as maiores dificuldades de transporte, as maiores distâncias às unidades de saúde e a falta de capacidade destas para oportuna resposta domiciliária.
Esta não é "apenas" uma "mera" questão de bombeiros e de fragilização indirecta da sua operacionalidade, depois, em matéria de protecção civil (por exemplo, nos incêndios).
Antes do mais, é uma questão de (des)humanidade, dado o sofrimento (físico ou mental), de cada doente, imediato ou diferido, que tal situação vai implicar.
É, também, uma questão eminentemente social, porque, afinal (contrariamente ao que o Governo diz pretender com o tal despacho), a medida, pelo seu carácter humana, social e geograficamente "cego", acentua desigualdades sociais no acesso à Saúde.
É, evidentemente, uma questão de Saúde Pública. Quer porque o transporte dos doentes (ainda que "não urgentes"), pelo que exige de equipamentos e cuidados especializados e integrados, é "uma actividade instrumental da prestação de cuidados de saúde" (citando, ipsis verbis, o referido despacho), quer porque a dificultação do acesso das pessoas aos cuidados de saúde vai, necessariamente, levar ao agravamento das respectivas doenças, como, aliás, é preocupação reconhecida por muitos médicos, inclusive, publicamente, pelo próprio bastonário da respectiva Ordem.
Para além de tudo isto, o que ainda deprime é que o considerando do despacho de que se visa, com esta medida, a "sustentabilidade financeira do SNS" é mais financista do que "financeiro" (para já não dizer económico). É que, salta à vista, o inevitável agravamento da situação de muitos doentes, assim indirectamente afastados dos cuidados de saúde, vai, com certeza, redundar em ainda mais custos para o SNS e, logo, para... as finanças públicas.
Esta é também, claro, pela sua origem e consequências, uma questão política. A sra ministra da Saúde, pelo menos como médica, conhece, com certeza, o pensamento do prof. Abel Salazar: "Quem só sabe medicina nem medicina sabe". Bem poderia convencer o sr. ministro das Finanças e o sr. primeiro ministro, "autores morais" do tal despacho, de que, sobretudo em matéria com o vincado cariz humano e social como esta é, quem só sabe finanças nem finanças sabe.
Se não tem condições para isso, então a situação é, essencialmente, uma questão de insuficiência política.
João Fraga de Oliveira, presidente da Direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Santa Cruz da Trapa