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       Desemprego, estatísticas e trabalho sem alma

Publicado no PÚBLICO de 2011-01-26 - Pag.34



“O pior do desemprego já passou”. “Previsão mais certeira não poderia ser”.

A propósito da previsão oficial de uma taxa de desemprego de 10,6 por cento para Dezembro de 2010 (menos um por cento do que no mês anterior), era isto que dizia, na TV, o Secretário de Estado do Emprego (SEE), há umas horas. Há já uns anos, dizia, por sua vez, o então Ministro do Emprego (ME): “para cada desempregado, a taxa de desemprego é sempre de 100%”.

Muito optimista, talvez, o SEE (até porque, relativamente a Dezembro de 2009, a taxa de desemprego aumentou 3,3 por cento). Muito pessimista o ME, convenhamos.

Confundem-nos estas posições, aparentemente contraditórias, de dois responsáveis políticos de topo (por sinal de governos do mesmo partido) pela pasta do Emprego. Mas, de qualquer modo, também pouco nos diz a linguagem estatística que utilizam sobre a(s) realidade(s) do emprego e do desemprego.

As estatísticas nada nos esclarecem sobre o como é o desemprego para cada desempregado e o emprego para cada empregado. A sua evidência pode demonstrar que as previsões são “certeiras” mas pode, também, “cegar” politicamente para as realidades humanas e sociais concretas do emprego e do desemprego.

O desemprego, ainda para mais com a drástica redução do seu suporte social (subsídio de desemprego), retira às pessoas possibilidade de satisfação das necessidades essenciais. E, sobretudo, exclui-as profissional e socialmente. “Apodrece-as” profissional, social, física e mentalmente. Mas, para além disso, a sua sombra “desalmada” projecta-se sobre o emprego.

Na impotência de quem governa, empreende ou gere para promover e criar emprego decente, digno (um conceito central da OIT), a “estratégia” e as “tácticas” de “combate” ao (sobre)desemprego estão a degenerar para o “subemprego” e para o “sobretrabalho”. Isto é, para a precariedade laboral como regra (trabalho a termo, temporário ou a falso “recibo verde”) e para a (sobre)intensificação do trabalho (em ritmo ou duração efectiva), num contexto de degradação das condições de trabalho.

Em certas empresas (e, até, na Administração Pública), o desemprego é utilizado como instrumento de modelos de “gestão” assentes na redução “estrangulante” do quadro de pessoal, na intensificação do trabalho até ao limite do esgotamento das pessoas em permanente “fluxo tenso”, na precarização generalizada dos vínculos laborais, nos baixos salários, no abuso da “flexibilização”de horários e locais de trabalho, na invasão de tempos e vida familiar, na descaracterização e desqualificação profissional, no isolamento social, na degradação das condições de segurança e saúde e, até, no assédio moral e na afronta surda e impune da dignidade das pessoas que trabalham. O trabalho é, em princípio, condição de vida, porque de sustento, de realização profissional e pessoal, de integração social, de dignidade, de saúde das pessoas. Mas, desumanizado, entendido como abstracta “activação” das pessoas, pode, como o desemprego, ser factor de exclusão, de indignidade, de doença e, até, de perda da vida. Ou, pelo menos, de insidiosa e quotidiana perda de vida ou da vontade de a viver.

Há 55 anos, na revista francesa L’Express, Albert Camus tinha (tem) razão ao escrever: “Sem trabalho, toda a vida apodrece. Mas sob um trabalho sem alma, a vida sufoca e morre”.


João Fraga de Oliveira, inspector do trabalho (aposentado), Santa Cruz da Trapa