Pobreza. Um conceito a que, nesta época natalícia, parece que é politicamente correcto dar alguma atençãozinha. A pobreza a fazer “trabalho(inho)” “político”. No meio destas afirmações e contra-afirmações “políticas” de alto nível, há quem diga que a pobreza é “explorada de forma descarada para retirar dividendos políticos”.
Mas os “trabalhos” da pobreza não se ficam pela política. Há outros “dividendos” que podem estar a ser obtidos pela exploração da pobreza…
Pelo quanto resulta das desigualdades sociais fomentadas ou alimentadas por determinadas opções ou práticas políticas, a pobreza é muito um problema político. Mas, até também por ser um problema político, é, como recentemente afirmou o presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz (professor Alfredo Bruto da Costa), um “problema essencialmente económico”.
E, por isso, como também afirmou o professor Bruto da Costa,” não se resolve apenas com medidas sociais”. Muito menos com meras declarações e contra-declarações “políticas”.
Entretanto, ao focarmo-la por este prisma da economia, podemos chegar a concluir que, paradoxal e perversamente, a pobreza pode ser utilizada para obter (mais) trabalho, “produtividade”, “competitividade”, “dividendos” económicos, criação de riqueza(s)…
Mais de 500 mil trabalhadores (12 por cento da população activa portuguesa) estão em risco de pobreza (working poor ) e não ganham o suficiente para suprir as necessidades básicas e proporcionar uma vida condigna para si e para a sua família.
Isto é o que conclui um recente estudo (Desigualdades sociais 2010, Estudos e Indicadores) promovido pelo Observatório das Desigualdades e apresentado no passado dia 2 de Dezembro no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) pelo ex-presidente da República Jorge Sampaio e pelo professor Freitas do Amaral.
Portugal é dos países da União Europeia onde o trabalho é mais “pobre”. 40 por cento das pessoas em risco de pobreza trabalham, nem sequer estão desempregadas.
Isto acontece não apenas porque, sabendo-se como se sabe que a forma mais sustentável de prevenir e combater a pobreza é através do rendimento do trabalho, em geral, os salários são dos mais baixos da União Europeia. Do que é sintomático um aumento do “Salário Mínimo Nacional” em Janeiro de 2011 em 10 € mensais, 33 cêntimos diários.
Acontece mais ainda porque Portugal é um dos países mais assimétricos da Europa na distribuição dos rendimentos do trabalho. Os 20 por cento mais ricos ganham 6,1 vezes mais do que os 20 por cento mais pobres. Na generalidade das grandes empresas portuguesas, os salários mais altos são 32 vezes superiores aos salários mais baixos (enquanto que, por exemplo, nas empresas alemãs são-no “apenas” 10 vezes).
Com esta condição salarial, não surpreendem as conclusões do estudo do Observatório das Desigualdades, tendo em conta o encarecimento da alimentação, da saúde, da educação, dos transportes e da energia eléctrica, agravado pela diminuição ou mesmo o corte de prestações sociais, pelo aumento de impostos, pelo (sobre)endividamento pessoal e familiar.
Neste condicionalismo socioeconómico, para as pessoas, para o “Portugal concreto” (utilizando uma expressão recente de D. Januário Torgal Ferreira, bispo das Forças Armadas), o desemprego é, actualmente, o maior factor de risco de pobreza e que, como o mesmo estudo conclui, o que mais contribui para uma sociedade ainda mais desigual e que agrava os problemas estruturais do país.
Mas, se para o crescente número de desempregados esta situação é desesperante, também mesmo para a maioria de quem trabalha é cada vez mais incerto poder “ganhar a vida”.
Contudo, quem conhece bem o que se passa nos locais de trabalho sabe que um outro lado mais encoberto desta evidente realidade - a repercussão da degradação das condições de trabalho nas (pobres) condições de vida - é justamente o inverso, perverso, da degradação das condições de trabalho por via das más condições de vida, designadamente, da pobreza.
As condições de vida pessoal, familiar e social são indissociáveis dos salários e das condições de trabalho, visto que, de algum modo, as pessoas sempre acabam por “levar a casa para o trabalho”, tal como sempre levam o “trabalho para casa”.
A expectativa legítima (e legal, a vários níveis) é que esta interdependência entre as condições de trabalho e as condições de vida se verifique num permanente ciclo virtuoso, isto é, numa relação directamente proporcional entre, por um lado, a realização pessoal e profissional, a integração social, a dignidade, a saúde e a remuneração justa que devem ser garantidas por um trabalho digno (um dos referenciais centrais da Organização Internacional do Trabalho) e, por outro, a estabilidade económica, pessoal e social que minimamente permita garantir o sustento, a dignidade pessoal e social e constituir e manter a família.
Mas, num contexto de empobrecimento (mesmo) de quem trabalha, este ciclo corre o sério risco de, perversamente, se tornar vicioso.
Desemprego, baixos salários, precariedade laboral e exclusão social, pobreza, são fenómenos fortemente correlacionados, negativamente sistémicos.
Para quem está desempregado, a degradação das condições de vida pessoal e familiar, induz uma atitude de procura e aceitação de um trabalho “a qualquer preço”, mal remunerado, precário, clandestino ou dissimulado (como é o caso dos famigerados “falsos recibos verdes”), sem condições de trabalho.
Para quem está empregado, o medo de também cair no desemprego, acentuado pela eventual situação de precariedade do emprego e pela fragilidade dos apoios sociais (que muitas vezes resulta da não declaração ou subdeclaração patronal das contribuições para a Segurança Social), encontra na pobreza, na degradação das condições de vida, um “caldo” onde germina, cresce e se generaliza uma atitude de a tudo se sujeitar e ser sujeito no trabalho, de não exercitação (ou até, tão só, de reivindicação) dos seus direitos, mesmo dos mais elementares e “fundamentais” como é o direito a uma remuneração legal e justa, bem como a condições de trabalho que garantam a dignidade, a segurança, a saúde, a integridade física, a vida.
E, assim, a mesma pobreza e sofrimento na vida pessoal e familiar que resulta da degradação das condições de trabalho e dos baixos salários podem ser, perversamente, instrumentos da obtenção de (ainda) mais trabalho, da indigna exploração de quem trabalha.
Este, o “trabalho” que, assim, “produz” a pobreza de quem trabalha, o “trabalhinho” de sobreintensificação (em ritmo e duração) do trabalho e degradação das condições de trabalho que a pobreza, subrepticiamente, também pode “fazer” (ou ajudar a fazer).
Para além de meras (contra)declarações sobre “pobrezas”, é necessário que o poder político, a Administração e as instituições pertinentes prevejam e integrem este risco social na análise das consequências das suas opções e práticas políticas, administrativas e institucionais, a fim de evitar ou, no mínimo, prevenir e corrigir as consequências humanas e sociais que, (também ) deste modo, da pobreza podem advir.
É que, sob o ponto de vista da democracia e da cidadania, por mais que haja quem nos queira acomodar e conformar a um discurso meramente tecnocrata, gestionário e relativista dos referenciais mínimos da dignidade das pessoas, como tal e como trabalhadores, não é admissível que alguém, para não correr o risco da miséria e da indignidade na sua vida pessoal e familiar, tenha que, no trabalho, a “ganhar a vida”, se sujeitar à miséria da indignidade e ao risco de perder a vida ou, pelo menos, pela degradação da saúde e das condições mínimas de sustento e conforto pessoal e familiar, ao risco de ir perdendo vida.
É premente que o poder político e as instituições pertinentes reflictam (e ajam) sobre (mais) este grave risco social da pobreza, visando prevenir e corrigir, pela redignificação, revalorização e efectivo reconhecimento do trabalho, este ciclo vicioso do trabalho a “produzir” pobreza e da pobreza a “produzir” trabalho.
João Fraga de Oliveira (Porto)
*Inspector do trabalho (aposentado)