"Um quinto dos portugueses vivia em privação material em 2009".
Esta evidência estatística avalizada pelo INE pouco nos esclarece se não soubermos que a distribuição da taxa global de risco de pobreza ("privação material") em Portugal (21,4 por cento) é muito heterogénea. Por exemplo, nas famílias monoparentais e nos casais com filhos, dependendo do número de crianças dependentes, aquela taxa pode mesmo, na prática, duplicar, registando níveis de 38,8, 42,8, 46,8 ou 47,5 por cento. Outro exemplo é o de que a grande maioria dos pobres são crianças. E outro, ainda, é o de que pelo menos 12 por cento "são pessoas que trabalham mas que ganham pouco".
Por outro lado, um responsável da Rede Europeia Antipobreza (padre Jardim Moreira) garante-nos que a redução do risco de pobreza, dada a entender pela diminuição da respectiva taxa de 2004 para 2008 (de 20,4 para 17,9 por cento) é "meramente estatística" e não real. Para além de que - sustenta ainda esse responsável - a referida taxa de "privação material" referente a 2009 não só está desactualizada face à degradação das condições de vida das pessoas como se vai desactualizar ainda mais com o agravamento dessas condições causado pelas medidas de "austeridade" previstas no Orçamento de Estado para 2011.
Reflicto nisto lendo um artigo, com o título que aproveitei para a primeira frase desta carta, contido no PÚBLICO de 21/10/10.
Ora, o título aparentemente impertinente desta carta tem a ver justamente com o facto de, neste dia 21, me ter surpreendido uma notícia na televisão (o "material" noticiado é mais "visual") falando de... riqueza. Concretamente, do sucesso de um soutien em diamantes, safiras e topázios avaliado em 1.431.000 euros, exibido num desfile de moda por uma modelo "abonadamente" modelada.
O que é que isto tem a ver com as estatísticas sobre o risco de pobreza? Muito, julgo eu. É que, para além de a riqueza ser o antónimo (ou a causa, defendem alguns, baseando-se na até na Bíblia...) da pobreza, é possível estabelecer uma semelhança entre as estatísticas e os soutiens: o que escondem é muito mais importante do que aquilo que mostram.
Daí que, numa altura em que somos ofuscados com as evidências de tantos números, curvas, gráficos e quadros mais ou menos "deficitários", talvez seja importante preocuparmo-nos em ver, reparar, se possível "apalpar" (sentir) o que, realmente, (não) está "por baixo", o que escondem as estatísticas Como (discretamente), fazemos (tentamos) com... os soutiens. Pobreza e soutiens
João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa