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       Escolas: “Unidades de gestão” ou unidades de educação?



João Fraga de Oliveira*

Publicado no jornal regional (quinzenário) GAZETA DA BEIRA de 30 de Setembro de 2010 (pag.33) e de 14/10/2010 (pag. 32)

“Unidades de gestão! Unidades de gestão!”.

Estas palavras são do Sr. Secretário de Estado da Educação (SEE). Foi assim que este governante, num recente debate público sobre Educação, retorquiu, corrigindo-a, à jornalista moderadora quando esta, referindo-se aos “mega-agrupamentos” escolares promovidos pelo Governo, dizia ”escolas”.

Relembrar estas palavras do SEE vem agora mais a propósito. Agora quando, no início das aulas, esta teoria das “unidades de gestão” já é generalizadamente assumida pelo Ministério da Educação (ME) e se vê aplicada nas medidas de “reordenamento da rede escolar” em curso, com o encerramento de centenas de escolas e com o (mega)agrupamento de muitas centenas (milhares, em muitos casos) de alunos num único estabelecimento escolar. Ou, pelo menos, com a centralização da gestão de várias escolas e agrupamentos de escolas.

Pelos vistos, as escolas não deverão ser consideradas… escolas mas, ME dixit, “unidades de gestão”.

Absurdo? Nem por isso. Talvez até haja nisso alguma lógica. Mas, também, algum perigo.

São lógicas, desde logo, porque tinham suporte legal. Concretamente, o da Resolução do Conselho de Ministros (RCM) Nº 44/2010, de 14 de Junho, a qual, estando na base da promoção dos famigerados “megaagrupamentos” escolares, visou “criar condições para a criação e consolidação de unidades de gestão que integrem todos os níveis de ensino”.

Portanto, antes de mais, são lógicas essas palavras governamentais, porque, como se sabe (apesar de haver razões para muitas dúvidas… ), tudo o que é legal é (será?) lógico.

São lógicas, depois, estas palavras, por uma razão mais substantiva, (ainda) mais … lógica: a forma como começou a ser feita a promoção da “agregação de agrupamentos” escolares.

Um pouco assim como a “reestruturação” de (“mega”) empresas, instalando numa única “nave” a gestão e os “recursos humanos” ou, dispersos estes pelas várias “filiais”, centralizando toda a gestão na sede.

De facto, esta concepção centralista, administrativa, tecnocrata, gestionária, do “reordenamento escolar” é lógica, “diz bem”, com a caracterização das escolas como ”unidades de gestão”.

São ainda lógicas tais palavras, porque, “sendo” as escolas “unidades de gestão” e estando na moda modelos de gestão “firmes” e “musculados”, tem lógica que, de repente, “à pressa”, pela canícula (com professores, alunos, pais e comunidades locais desmobilizados pelo cansaço de um ano de trabalho, pelos trabalhos de ultimação do ano lectivo e preparação do seguinte, pelas férias) e pela “calada”, de “cima para baixo”, “sem dizer nada a ninguém” (sem diálogo oportuno, efectivo e consequente, garantem-no os directores de escola, os professores, os pais e muitos autarcas), fosse desencadeada a colocação em prática da tal Resolução do Conselho de Ministros.

É também lógico que o ME passe a considerar as escolas como “unidades de gestão”, porque, sendo o “pragmatismo” a essência de muitos dos actuais modelos de “gestão” (e não só), os respeitáveis princípios desta RCM e outros referenciais programáticos invocados e contidos em demais legislação estruturante do sistema educativo e da autonomia, administração e gestão escolar e, até, dos do superior interesse e dos direitos da criança, são relativisados pela urgência, “racionalidade” e “eficácia” da aplicação dessa RCM.

Têm também muita lógica aquelas palavras do SEE face ao que nos “habituámos” nos últimos anos em matéria de Educação.

De facto, é lógico que o Governo (ou, pelo menos, governantes) continue a “observar” a realidade socioeducativa (sobretudo aquela que se desenvolve em locais onde não se vê o mar, no interior do país) com critérios, métodos e instrumentos “objectivos”, “racionais”, que são próprios de grandes (“megas”) “unidades de gestão”.

Ou seja, com aquele distanciamento “técnico”, determinismo tecnológico e rigor jurídico que, face à complexidade destas (“mega”)organizações, só se consegue atingir em gabinetes situados perto do mar e bem isolados do “ruído” da interioridade. Onde, nas grandes secretárias, os consultores de “gestão”, com régua, esquadro e lupa, possam trabalhar os artigos, as alíneas, os inúmeros números, as médias e as medianas, as linhas, os ângulos, as várias “geometrias”, os megabytes com que se desenham e formatam os grandes (“megas”) “espaços de qualidade“ onde se irão “megagrupar” milhares de “elementos”, digo, de alunos, professores, técnicos e funcionários.

“Unidades de gestão”. Três palavras apenas. E, no entanto, tanta é a lógica que, nos últimos anos, elas encerram em matéria de Educação!

Mas há um perigo nesta lógica … de secretária. É que, como escreveu John Le Carré, “as secretárias são sítios perigosos para observar o mundo”.

E quando um governante faz preponderar as palavras “unidades de gestão” sobre a palavra “escola”, surge uma certa sensação de perigo para a Educação, como Serviço Público humana, social, económica e politicamente essencial.

É que tais palavras, por si só, indiciam uma concepção sobre a Escola Pública tendencialmente gestionária, empresarial, em que, invertendo-se princípios que são referência (legal, inclusive) nesse domínio, passa a vingar o primado dos critérios económico-administrativos (de “gestão”) sobre os critérios educativos.

Por isso, merecem atenção estas palavras. Não apenas pela sua “lógica”, como também já vimos. E também não só pelo respeito que é devido ao Governo. Ou, sequer, pelo poder político que, como órgão executivo de soberania que é, o Governo confere a essas palavras.

Devem, sim, essas palavras serem tidas em conta sobretudo pelas concepções e projectos de acção que lhes subjazem e que lhes conferem um “poder simbólico”, aquele poder que decorre da relação, biunívoca e permanente, entre “as palavras e as coisas”. E que faz com que as coisas façam palavras e as palavras façam coisas. Ou desfaçam.

É que, de facto, a forma e condições em que foi desencadeado o processo de “reordenamento da rede escolar”, sob a “bênção” destas governamentais palavras “mágicas”, pode fazer (ou fazer fazer) muitas “coisas”.

As implicações dessas “coisas” podem até nem ser imediatamente percebidas, dado o facto de os efeitos de muitas delas serem diferidos e interligados, como é frequente na maior parte dos processos sociais (e se há processo que seja eminentemente social, esse é o da Educação).

Mas é de temer que, cedo ou tarde, de uma maneira ou de outra, ir-se-ão projectar nas comunidades escolares e locais. E, portanto, na (não) qualidade do ensino. Em termos de, por exemplo:

  • despersonalização e desumanização das relações educativas, pessoais, profissionais e sociais dentro da escola;
  • menos condições de prevenção e controlo, em devido tempo e de forma adequada, da indisciplina e violência escolar;
  • “massificação e diluição das personalidades infantis” e criação de outros riscos sociais pela junção de crianças de pouca idade com adolescentes quase adultos em condições de utilização massificada de espaços (sobretudo fora da sala de aula), quando conjugada com grandes insuficiências de vigilância, enquadramento e apoio, por falta de pessoal técnico e auxiliar com formação adequada;
  • diminuição da proximidade no acompanhamento socioeducativo e, consequentemente, da atenção específica, personalizada e regular às situações socioeducativas que implicam necessidades educativas especiais e ou às que radicam ou são influenciadas por um condicionalismo local, familiar, social, económico ou cultural muito específico;
  • decisões absurdas, desadequadas ou desatempadas da gestão centralizada do “mega-agrupamento”, face à especificidade, à quantidade ou à dispersão das situações socioeducativas a decidir e tratar;
  • maior dificuldade na socialização, ponderada e consequente, de conhecimentos, experiências, propostas e dificuldades socioeducativas concretas da (na) escola entre professores, técnicos, funcionários e pais;
  • maior afastamento e menor participação efectiva dos pais no quotidiano escolar dos alunos e, em geral, na vida da escola;
  • mais formalismo, burocracia e despersonalização nas relações entre as escolas e as comunidades locais;
  • desertificação paulatina de muitas zonas do interior do país, por “sucção” da população para as sedes de concelho pela via da centralização dos serviços públicos essenciais, neste caso (acrescendo a outros, como o da Saúde) do Serviço Público de Educação;


  • Por outro lado, ainda que lenta e despercebidamente, podem vir a ser desfeitas algumas “coisas” que, com uma organização socioeducativa de maior proximidade (física mas, também, educativa, humana e social) possibilitada por um moderado número de alunos, podem já ter sido conseguidas em (por) muitas escolas ou agrupamentos. Como, por exemplo:
  • condições de descanso e de proximidade familiar durante o dia, propiciadoras de atenção, concentração, e equilíbrio (físico, anímico e comportamental), condições essas susceptíveis de serem desfeitas em viagens, esperas e longas horas fora de casa a que, diariamente, muitas crianças vão ser obrigadas;
  • controlo de riscos socioeducativos associados ao condicionalismo social, económico e cultural específico das comunidades abrangidas pela escola, como é o caso do abandono, indisciplina e violência escolar;
  • cultura e identidade socioeducativa já progressivamente construída nas (pelas) escolas ou agrupamentos;
  • credibilização institucional local das escolas ou agrupamentos paulatinamente já conseguida;
  • relações de parceria e de entreajuda de meios já consolidadas com as comunidades e instituições locais;
  • fixação de pessoas e dinamização económica e social local, associadas à escola ou agrupamento, já estabilizadas.


  • Haverá, sem dúvida, situações em que o fecho de escolas e a agregação de agrupamentos escolares são medidas socioeducativas, não só adequadas mas, mesmo, necessárias.

    Mas, em geral, nestas medidas standard e “em massa” de “reordenamento escolar”, não se vislumbra que, essencialmente, lhes subjazam razões socioeducativas mas, sobretudo, objectivos de “racionalização” economicista e tecnocrata e, em “coerência”, de facto, retirada da autonomia e humanização de gestão que deve (cor)responder à especificidade socioeducativa das escolas ou agrupamentos e das respectivas comunidades locais.

    É também inquestionável a importância escolar de “espaços educativos de qualidade”.

    Mas, mais importante que a qualidade dos espaços é a qualidade dos tempos e modos socioeducativos.

    Pelo sobredimensionamento, na fusão física de escolas e agrupamentos, ou pelo distanciamento (não apenas o geográfico mas também o humano, o social, o organizacional e o socioeducativo), na fusão administrativa com centralização da gestão, retira-se à direcção das escolas a efectiva autonomia de que necessita para promover, desenvolver e gerir a integração, a coerência, a relação recíproca e permanente entre a educação, o ensino e as especificidades humanas, sociais, económicas e culturais das respectivas comunidades locais.

    Assim, pode colocar-se em risco, em muitas escolas e comunidades locais, aquilo que, para a Educação, de acordo com princípios consagrados na Constituição e na Lei de Bases do Sector Educativo é (deve ser) uma das condições essenciais da qualidade do serviço público que presta: a unidade socioeducativa, a unidade da (na) educação.

    Enfim, fica a ideia de que, com este upgrade acelerado e generalizado do “reordenamento escolar”, prefere-se o instrumental e pretere-se o essencial:

  • Promove-se a “unidade” (unificação) administrativa e constrange-se a unidade socioeducativa;

  • Afirmam-se “unidades de gestão” e nega-se o que essencialmente as escolas são: unidades de educação.

  • A medida de todas as coisas, a “unidade”, deixa de ser a educação e passa a ser a…“gestão”.


  • As implicações que estes equívocos podem ter ainda estão a tempo de, em muitas escolas e agrupamentos escolares, serem reflectidas e reconsideradas nas decisões e processos que lhes subjazem. Fica, para isso, o modesto contributo de uma pergunta: Escolas: “unidades de gestão” ou unidades de educação?

    *Pai e encarregado de educação