Espaço Associados



       O “trabalho” da crise

PÚBLICO -19-08-2009-pag.30



Trabalho. Crise. Se há palavras cuja associação é pertinente, estas duas são disso exemplos.

Com o actual nível de desemprego e apesar de nos quererem convencer que o seu crescimento está a decrescer (?), continuamos com uma preocupante crise de trabalho.

Mas as vítimas do desemprego nunca são apenas os desempregados. São, também, sempre, os empregados, porque, de “cá de fora”, o desemprego para tudo é instrumento da “gestão” e tudo obriga as pessoas a “aceitarem” nos locais de trabalho. E, assim, é também o desemprego a induzir e potenciar a falta de qualidade do emprego e a degradação das condições de trabalho, isto é, a “retoma” da secular crise no trabalho.

Não exactamente nas formas, brutais, de alienação, exploração e desumanidade de há cem anos, no tempo da revolução industrial. Se bem que, ainda hoje, muita gente trabalhe em condições que, nalguns casos, não se diferenciam muito das que eram vulgares nessa época. Mas, agora, nas “novas” formas de sobreintensificação (ritmo e duração), individualização e (des)organização do trabalho, na exposição a substâncias e processos “inovadores” mas letais, na dificuldade em conciliar a vida pessoal com o trabalho, nas repercussões psicossociais (stress, assédio moral, violência e, mesmo, suicídios) associadas ao trabalho.

A estas “novas” formas de crise no trabalho, é também o desemprego que lhes subjaz, porque tem sido o desemprego o pretexto para políticas e práticas que lhes estão na base: insegurança, precarização, “flexibilização” e “adaptabilização” do emprego e do trabalho, promovidas pela “mão invisível” do mercado e por uma concepção neoliberal da “gestão”. E, até, regulamentadas pelas próprias leis do trabalho, pelo(s) Código(s) do Trabalho.

Aliada à crise de trabalho, continua, por isso, sob novas formas, a crise no trabalho.

A estafada crise “financeira”, apesar de muito invocada como “a mãe de todas as crises”, é também “filha” destas crises de e no trabalho, porque muito foi gerada pela financiarização da economia e consequente desvalorização da produção e do trabalho.

Pois, mau grado esta “parentalidade”, é “sob as saias” desta “crise” dita “financeira”, desta “mãe” que tudo “explica” e “abafa”, que estas crises de e no trabalho estão a tender para uma refinação ainda mais preocupante: “encerramentos” de empresas à margem da lei, abuso do lay off e dos despedimentos colectivos e algo que, face às desigualdades sociais que por aí grassam, é assaz indigno e aviltante, como é trabalhar com salários em atraso ou diminuídos ou, mesmo, sem salário.

Face à isto, a esta (in)evolução a que temos vindo a assistir em matéria de (não) reconhecimento efectivo do estatuto (humano, social, económico, normativo, político) do trabalho, uma das questões que são de colocar é a de se a “crise” não está(rá) a servir de “laboratório” social para testar a “irreversibilidade” daquilo até onde já se foi e, mesmo, aquilo até onde se pode ir (ainda) mais em matéria de desemprego, de “flexibilidade”, de precariedade, de degradação da qualidade do trabalho, enfim, de retrocesso de direitos de e no trabalho.

Que “trabalhinho” de “naturalização”, de “banalização do mal”, de pro”legalização” (ou pro”contratualização”) é que a “crise” não está(rá) a fazer quanto ao (maior) enfraquecimento do valor do trabalho (mais concretamente, das pessoas que trabalham), na tal “retoma” que os arautos do costume nos anunciam? Crise de e no trabalho. Perverso mas, nada de novo. O que poderá ser novo e (ainda) mais perverso é esse ronceiro “trabalho” da “crise”.


João Fraga de Oliveira – Porto –fragaoliveira@sapo.pt