Espaço Associados



       O trabalho, “ângulo morto” da Saúde Pública

Público, 02 de agosto de 2010 – pag.31



São conhecidos os preocupantes problemas orçamentais, de recursos e de resposta oportuna aos utentes do Serviço Nacional de Saúde.

Ouvimos e lemos todos os dias várias opiniões qualificadas sobre esta situação. Aumento da esperança de vida, envelhecimento da população, maiores custos da inovação tecnológica introduzida, encargos com a prevenção epidemiológica, maior acesso das pessoas aos cuidados de saúde, maior consumo de medicamentos e de exames complementares de diagnóstico. Ou, por outra óptica, orçamento insuficiente, falta de técnicos, “má gestão” e “desperdício”. Mas é preciso também reparar nalguns custos e constrangimentos mais ocultos. Por exemplo, os que se projectam no SNS em decurso das más condições de segurança e saúde nos locais de trabalho (empresas, Administração Pública e outras organizações) e pela degeneração da organização da prevenção (“serviços de segurança e saúde do trabalho” previstos na Lei) nas organizações empregadoras para uma actividade exterior à organização empregadora (em regra, subcontratada), com objectivos essencialmente mercantis e muito limitada às formalidades legais. E não, como é legal, humana e socialmente exigível aos Empregadores, efectivamente preventiva dos riscos profissionais.

A saúde não é “um assunto privado”, que dependa só da genética e do comportamento individual. Influem nela, e muito, as circunstâncias sociais em que as pessoas vivem.

E, se há circunstâncias que, em todos os domínios, são condicionante central da vida das pessoas, são as que se relacionam com o trabalho, as condições de trabalho. Tanto mais que as modificações técnicas, organizacionais e de gestão que se têm vindo a verificar no mundo do trabalho e a crise económica e social que atravessamos têm tido por consequência a efectiva degradação das condições de trabalho nos locais de trabalho.

O desemprego (que, aliás, é mais um factor de degradação das condições de trabalho) tem “mascarado” esta realidade que a resposta a algumas perguntas evidencia.

Por exemplo, sendo o cancro o principal problema da Saúde Pública, muitas das situações de cancro não terão origem ou são agravadas no local de trabalho, onde, muitas vezes, os trabalhadores são quotidianamente expostos a verdadeiros cocktails de substâncias, preparações ou processos potencialmente cancerígenos? Não tem nada a ver com o trabalho que as pessoas fazem em ambientes notoriamente poluídos o que se passa com o crescimento das doenças respiratórias (um terço das pessoas que recorrem aos serviços de urgência dos hospitais)? O alastramento das incapacitantes lesões ou doenças músculo-esqueléticas não advirá, sobretudo, da progressiva sobreintensificação do trabalho que é timbre dos “novos modelos de organização do trabalho? Muito do sofrimento psicológico e suas dramáticas consequências (de que, no limite, há exemplos conhecidos de suicídio), de que se queixa mais de um quarto da população portuguesa (e de que é sintoma o aumento desmesurado do consumo de antidepressivos e ansiolíticos) não terá origem ou sido agravado pelas condições físicas e, sobretudo, organizacionais, psicológicas e sociais em que as pessoas trabalham?

Contudo, nos “riscos e incertezas” dos sistemas de Saúde Pública sobre os quais se debruçam os relatórios do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), pouco se “observa” sobre a preocupante “incerteza”, a verdadeira caixa de Pandora que é a subnotificação das doenças profissionais, das doenças em que possa haver qualquer presunção de terem origem ou serem agravadas pelas condições em que o trabalho é realizado. O mesmo acontece com os Planos Nacionais de Saúde (quer no de 2008/2011, quer no “caderno de encargos” do de 2011 /2016).

O debate, a reflexão e a acção sobre as condições de segurança e saúde do trabalho não podem ficar confinadas ao contrato de trabalho, fechadas na “caixa negra” da organização empregadora ou no emaranhado da “teia” jurídica, administrativa e judiciária dos artigos e das coimas. Esta é uma questão eminentemente social e política, quer pelas enormes repercussões sociais de saúde pública, quer pelos encargos públicos que projecta. Claro que, (também) nesta matéria, o desemprego é uma “prioridade das prioridades” da atenção e acção política e institucional (nomeadamente, quanto ao suporte social de que carece), até porque, vários estudos o sustentam, também é um factor de degradação directa e indirecta da saúde das pessoas nessa condição.

Mas a não prevenção adequada e oportuna dos riscos profissionais nos locais de trabalho é, para além de uma ilegalidade e desumanidade, uma forma “oculta” de “captura” do SNS pelos empregadores (privados ou públicos), ao transferirem para este sistema público (e, logo, para os cidadãos em geral) os encargos e a responsabilidade (legal e social) da reparação das lesões da saúde dos trabalhadores relacionadas com o trabalho que, eles, empregadores, estão legalmente obrigados a, efectivamente, prevenir.

Por outro lado, a incapacidade de (boa) resposta do SNS tem, naturalmente, consequências negativas na saúde das pessoas, como tal e como trabalhadores. E, necessariamente, na sua assiduidade e produtividade no trabalho, logo, na gestão e na economia das organizações empregadoras.

Não obstante as consequências económicas e sociais desta relação virtuosa ou viciosa, recíproca e contínua, entre trabalho e saúde, não há memória de ouvirmos ou lermos um ministro do Trabalho posicionar-se consequentemente sobre a Saúde Pública e um ministro da Saúde interessar-se efectivamente pela Saúde do Trabalho.

É um acto de cidadania clamar por mais atenção, articulação e acção política, administrativa, institucional e social para o que se está a passar (também) neste domínio, para a (des)consideração do Trabalho como um “ângulo morto” da Saúde Pública.


João Fraga de Oliveira - Inspector do trabalho (aposentado)