“Um elevado nível de contestação pode levar aqueles que nos observam do exterior a ter alguns juízos errados relativamente aquilo que é o clima social e económico do nosso país”.
Foi o que disse a Srª Ministra do Trabalho a uma rádio na véspera do 1º de Maio. Nada de surpreendente. Pelo que ouvimos e lemos, já é quase banal a “racionalização” dos nossos pensamentos palavras e obras pelos “juízos dos que nos observam do exterior”. Que, especialistas em letras, passam da “observação” à “notação”.
E, todavia, no 1º de Maio (e não só) houve um elevado nível de contestação.
É natural. Cá no “interior”, os juízos que, na generalidade (há excepções…), as pessoas fazem do clima social e económico são tão menos errados quanto certo é o que “observam” e vivem: 2 milhões com menos de 406€ mês, 150.000 carecem do RSI, 450.000 recebem só o salário mínimo, mais de 100% de (sobre)endividamento familiar, diminuição do investimento produtivo, aumento do desemprego, 75% dos empregos criados são precários (a termo, temporários e”recibos verdes”), degradação das condições de trabalho, cerca de 700.000 desempregados, mais de 250.000 não recebem subsídio de desemprego. E, também, o quanto certos são os “sacrifícios” que lhes “prometem”: redução efectiva de salários, cortes nas prestações sociais, (mais) aumento do desemprego, redução do suporte social no desemprego.
Depois, talvez porque são muito o que são as circunstâncias da sua vida, as pessoas, nestas coisas dos níveis de contestação, perdem ainda mais a “racionalidade” ao, ainda cá do (no) interior, “observarem” outras circunstâncias: em 2009 os lucros dos 5 maiores bancos foram 1.700 milhões de € , o “investimento” em off-shores ascendeu a 2.000 milhões de €, gestores de empresas com salários tão “obscenos” como 20 vezes o do Presidente da República.
Assim, é capaz de ser difícil a muitas pessoas terem em conta o racional aviso da srª ministra e de outros especialistas do “saber” e do poder “daqueles que nos observam do exterior”. É que, face a estas “circunstâncias”, é ainda o “elevado nível de contestação” que lhes serve de “estratégia defensiva”, de recurso de dignidade e de sanidade mental e, mesmo, de antídoto contra a deriva, perversa, da violência social de que a desigualdade social, “bomba relógio do capitalismo”, é uma histórica potencial “mãe”.
Por isso, cá do (no) “interior”, o que talvez seja avisado é que se (re)”observe”, reveja politicamente as tais “circunstâncias”que, objectivamente, justificam “elevado nível de contestação”.
Caso contrário, é justamente o elevado nível de contestação dessas “circunstâncias” que ainda pode travar a “reciclagem” da cidadania pela justiça social (e, em geral, da Política) em, pelos “juízos daqueles que nos observam do exterior”, apatia e conformismo perante “sacrifícios para quase todos e benefícios só para alguns”.
O que, de certo modo, seria o que, no jornal LUTA de 15/7/1976, Alexandre O’Neil, ironicamente, propunha como “Exercício para reciclagem de escritores”: “Copie com a sua melhor caligrafia a frase seguinte: A minha Pátria é a mais linda de todas as Pátrias: merece todos os sacrifícios!”
João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa