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       Trabalhar é uma coisa do século passado

Público –22/03/2010 – pag. 30



“Fazer greve é uma coisa do século passado”. É a opinião do presidente da TAP, assumida a propósito da declaração de greve decretada pelo sindicato dos pilotos.

Mas, apesar disso, não penso que o presidente da TAP seja contra “fazer greve”. Mesmo neste século. É até capaz de ser um grande apologista dessa “coisa”, já que, como alguém disse, esta frase do Engº Fernando Pinto acabou por constituir, objectivamente, um “apelo indirecto à greve” dos pilotos.

Mas, para além disso, das particularidades da greve dos pilotos e das razões que o sindicato tenha ou não tenha para a declarar (e isso só aos trabalhadores e sindicato respeita), é de presumir que o presidente da TAP não se referia apenas a esta greve dos pilotos. Quando não teria afirmado algo diferente. Talvez “fazer esta greve é uma coisa do século passado”.

Dizendo o que disse, podemos pois concluir que o presidente da TAP se referia a todas as greves. À greve, em geral.

A ilacção que, desde logo, podemos tirar disto é que, considerando que a greve é um direito constitucionalmente garantido, o presidente da TAP é da opinião de que a Constituição da República Portuguesa (CRP) é “uma coisa do século passado”. O que, sendo literalmente uma verdade, tem, na “voz do povo”, consequências semânticas que a ultrapassam.

Mas talvez o presidente da TAP tenha uma razão lógica para dizer o que disse e, presume-se, como tal, pensar o que pensa. Talvez pense que também trabalhar ”é uma coisa do século passado”.

E, nisto, pelo menos nisto, tem o presidente da TAP muita razão. No século passado, nos seus primórdios, trabalhar, como sabemos, significava, pelo desemprego que grassava, aceitar tudo para ter um emprego, baixos salários, (sobre)intensificação do trabalho, precariedade, discriminações, condições de trabalho desumanas.

Ora, esse trabalho do “século passado”, apesar de camuflado por “novas formas de organização do trabalho”, “novos modelos de gestão”, “flexibilidades” e “qualidades totais”, se atentarmos bem (sobretudo nas consequências), cada vez difere menos do trabalho do “século presente”: altos índices de desemprego a entrar pelas empresas dentro, precariedade, baixos salários, desigualdades iníquas, sobreintensificação (ritmos e duração), sobrecarga física e psicológica no trabalho, indignificação das pessoas, degradação crescente das condições de trabalho.

Cada vez mais, com o mesmo sentido semântico que se intui na frase do presidente da TAP, trabalhar é (volta a ser) “uma coisa do século passado”. Enquanto assim for, mesmo esquecendo-nos da CRP como o presidente da TAP se terá esquecido, de certeza, vai continuar a justificar-se essa “coisa” de fazer greve. Como no “século passado”.




João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa