No passado dia 11 de Maio, em Fátima, o bispo D. José Saraiva Martins, a propósito do “escândalo” da fome como “realidade triste e vergonhosa”, apelava ao “respeito pelo homem e pela sua integridade”, partindo do princípio de que “todos os homens têm o dever de ter uma vida digna” e frisando que “os valores da dignidade são inegociáveis”.
Há já vários anos que o principal referencial da Organização Internacional do Trabalho (OIT), também já adoptado pela União Europeia (UE), é o direito de todas as pessoas a um trabalho digno (decent work).
Que relação poderemos estabelecer entre estas posições, a da Igreja, por um lado e, por outro, a da OIT e da UE, num contexto, mais que conhecido e denunciado por insuspeitas entidades, de encarecimento da alimentação, da saúde e da educação, baixos salários, quebra do poder de compra, endividamento pessoal e familiar, pobreza (mais ou menos encoberta) em que, ultimamente, muitas pessoas, em Portugal, (sobre)vivem?.
Se para o crescente número de desempregados, esta situação é desesperante, mesmo para a maioria de quem trabalha, ainda que só quanto aquilo que é estritamente essencial à condição pessoal e familiar, cada vez é mais difícil e incerto ganhar a vida.
Mas um outro lado mais lunar, mais encoberto, desta realidade são as repercussões nas condições em que as pessoas ganham a vida, nas suas condições de trabalho.
As condições de vida pessoal, familiar e social são indissociáveis das condições de trabalho, de algum modo, as pessoas sempre acabam por “levar a casa para o trabalho”, tal como sempre levam (às vezes, literalmente, mesmo) o “trabalho para casa”.
Para quem está desempregado, a degradação das condições de vida pessoal e familiar, induz uma atitude de procura e aceitação de um trabalho “a qualquer preço”, mal remunerado, clandestino ou dissimulado (como é o caso dos famigerados “falsos recibos verdes”). Para quem está empregado, o medo de também cair no desemprego (acentuado pela eventual situação de precariedade do emprego em que se encontre) encontra na degradação das condições de vida um “caldo” onde germina, cresce e se generaliza uma atitude de não exercitação (ou até, tão só, de reivindicação) dos seus direitos, mesmo dos mais elementares, mais básicos (e, por isso mesmo, constitucionalmente fundamentais), como é o direito a condições de trabalho que garantam a dignidade, a saúde, a integridade física, a vida.
É que, não nos iludamos, parafraseando um ilustre sociólogo português, tendemos a ser cada vez menos trabalhadores (sobretudo na exercitação dos nossos direitos) na medida em que tendemos a ser cada vez mais consumidores.
Resulta, daqui, o risco de emergirem e se desenvolverem situações que são a negação, perversa, do ciclo virtuoso (que, assim, se torna vicioso) que deve existir entre as condições de trabalho e as condições de vida (realização pessoal e profissional, saúde, dignidade, estabilidade económica, constituição e manutenção da família, etc.). E, assim, a mesma pobreza e sofrimento na vida pessoal e familiar que resulta da degradação das condições de trabalho (baixos salários, sobreduração, sobreintensificação, falta de condições de segurança, saúde e higiene), podem ser, perversamente, por parte de quem, empregador, menos socialmente responsável, instrumentos da obtenção (ainda) de mais trabalho, da indigna exploração de quem trabalha.
Perante isto, não podem o Estado, o poder político e a Administração, bem como as instituições pertinentes, alhearem-se, laissez faire, laisser passer, deixar funcionar o “livre negócio” de valores que são “inegociáveis” mas, sim, também nesta vertente, bem caracterizar a situação e construir estratégias, recursos, metodologias e instrumentos de acção (em que a informação também tem um importante papel) que previnam e corrijam as consequências sociais que podem advir de uma outra face da pobreza e do “trabalhinho” que, na sombra, esta também “faz” (ou ajuda a fazer): a degradação das condições de trabalho.
É que, sob o ponto de vista da democracia e da cidadania, por mais que haja quem nos queira acomodar e conformar a um discurso meramente tecnocrata, gestionário e relativista dos referenciais mínimos da dignidade das pessoas, como tal e como trabalhadores, não é admissível que alguém, para não correr o risco da miséria e da consequente perda da dignidade na sua vida pessoal e familiar, tenha que, no trabalho, se sujeitar à miséria da indignidade e do risco. Não é admissível que alguém, para ganhar a vida, para se manter socialmente digno, tenha que, como trabalhador, sujeitar-se à indignidade de não exercitar os seus direitos e ao risco de perder quotidianamente vida ou, mesmo, ao de, num instante, perder a vida.
João Fraga de Oliveira (Porto)
Funcionário público, licenciado em Gestão de Recursos Humanos e Psicologia do Trabalho