Publicado no quinzenário GAZETA DA BEIRA de 2010-12-23
Os poetas são uns sonhadores, diz-se, muitas vezes depreciativamente.
Mas o sonho não é inconsequente. E não apenas, como a ciência comprova, do ponto de vista psíquico e físico. Mais do que isso, “o sonho comanda a vida”.
O poema de Ary dos Santos que dá título a este texto é, justamente, um “comando”, uma proclamação de vida.
Neste Natal, o poema é ainda mais actual. Porque, paradoxalmente, o que agora mais tende a comandar a vida da maioria (muito por causa da “vidinha” de uma minoria) das pessoas já não é tanto o sonho mas… a “crise”.
Há vinte séculos, Quem evocamos como ter então nascido, nasceu, como Homem, num Natal à sua medida. O seu Natal resumiu-se a (em) Si próprio, o Homem. O Natal do Homem. Desprovido e desprendido de coisas.
Mas os especialistas do marketing concluíram que, com a falta de tantas coisas no Natal do Homem, havia ali um grande potencial de “mercado”, um manancial sazonal de “oferta” e de “procura” de… coisas.
E, assim, “reestruturaram” o Natal do Homem e criaram o “Natal” das coisas. Que é feito muito de coisas que, essencialmente, o Homem não necessita mas que, por artes de uma “mão invisível”, os homens, num ciclo vicioso, passam a querer tanto as que não têm que nem dão valor às que têm.
Depois, outros especialistas, consultores, analistas e alquimistas destas e de outras coisas, com complexas combinações de “bolhas” e outros reagentes da “química” financista experimentada em bancas de laboratório (e laboratórios da banca), transformaram as coisas no mero preço das coisas e em “activos tão “tóxicos” e afin(anç)aram tanto a “reestruturação” do Natal do Homem que este, por “sublimação”, degenerou no “Natal” da “crise”.
O que mais caracteriza este “Natal” da “crise” são inúmeros números, percentagens, índices, estatísticas, curvas, gráficos, siglas (PEC,PEC,PEC, FMI, PSI, etc.), “(des)alavancagens”, “estabilizadores automáticos” e outro conceitos “críticos” (afins à “crise”).
Consta que todos estes esotéricos conceitos “críticos” são efeito (ou serão causa?) de um outro conceito recorrente que é a iminência da crise eminente e que de humano e natalício nada tem: o famigerado, tenebroso e respeitadíssimo “défice”, esse “monstro”.
Este “Natal” da crise é, é certo, menos material do que o “Natal” das coisas. Mas é ainda mais absurdo para a maioria das pessoas.
Meros “problemas de comunicação”, dizem os “especialistas” (“residentes” ou “convidados”). Porque, afinal, estes, “especializadamente”, todos os dias nos (tele)comunicam a “lógica”, “evidência” e “inevitabilidade” destes mistérios da “crise”. E, repetidamente, “rezam-nos”, em português com sotaques anglófono, francófono ou germanófono, “orações” “natalícias” pregando sacrifícios “austoritários” de submissão da cidadania e da vida a um “deus” que, lá do além do “exterior”, com os seus “anjos da guarda”, é (quase) omnipotente e omnipresente (ainda que pouco omnisciente quanto à previsão e prevenção de crises): “os mercados”.
Mas o que é evidente é que toda esta evidência “crítica”, de tão inelutavelmente “evidente” ser para os governantes, estes, evidentemente “desatentos”, tornam-se “cegos” (parafraseando o padre António Vieira, num dos seus Sermões, em 1669) às injustiças e às preocupações, necessidades e direitos das pessoas e da sua condição social e económica.
Entretanto, neste “Natal” da “crise”, por onde anda o Homem, O do Natal de há mais de dois mil anos?
“Não o podemos ignorar”, porque – “vemos, ouvimos e lemos” – anda por aí no meio das profundas injustiças sociais, da discriminação, da pobreza, da humilhação, do desemprego, do trabalho precário, da indignificação profissional, pessoal e social e, até, no meio da doença e da morte pela degradação das condições de trabalho e de vida.
E, afinal, a explicação para isso tudo está nele próprio, no Homem.
Porquanto, na teoria e prática económica e política (e, necessariamente, social) que tem preponderado, Ele, o Homem, tem sido ignorado, deixou de ser a principal referência e “medida”.
Fragilizou-se humana, social e politicamente o Homem, a sociedade, em nome de conceitos meramente eurocratas (a eurocracia é a burocracia “superlativa”), tecnocratas, economicistas, financistas, inumanos, alheios à essência da condição humana e social das pessoas.
“Quando um Homem quiser”, quando as pessoas, como tal e como cidadãs, quiserem, quiserem mesmo, vão com certeza clamar, pugnar por que quem detém ou decide pelas coisas da Política, da Economia, das Empresas, da Administração, deixe de ter por referência as meras abstracções “políticas”, financeiras, gestionárias, de mero poder pelo poder e pelos interesses, alheias ao Homem, às pessoas como pessoas.
E, legitimamente, vão exigir que sejam cumpridos os compromissos, que seja reposta como objecto e objectivo da acção política, económica, empresarial e administrativa a realidade concreta das condições de trabalho e de vida das pessoas.
“Quando um Homem quiser”. Sim, quando quiser, porque a democracia, por definição o “governo do povo” (e para o povo), não pode ser “suspensa” entre natais só porque a conivência ou subserviência dos responsáveis políticos a mercantis fantasmas do “exterior” que as pessoas como cidadãos não votaram conduziram à crise da Política e, assim, à “política da crise”. À “política” da submissão do poder político ao poder económico (e, pior ainda, ao financeiro), invertendo e subvertendo o que a referência legal fundamental da democracia prescreve (Artº 80º da CRP). À “política” das “inevitáveis” e recorrentes medidas de “austeridade”. À “política” em que a “crise” é instrumento e pretexto para medidas “políticas” de (re)compensação dos causadores da crise que são suportadas por medidas de retrocesso social e das condições de trabalho e de vida das vítimas da crise.
Valha-nos que, talvez mais do que na ciência e na economia, é na poesia que está a sabedoria. Inclusive a sabedoria (da) Política (com maiúscula).
A essência, o poder simbólico do poema do Natal que todos os anos é sonhado no mundo reside na poesia do nascimento, há 20 séculos, num berço de palha, à medida da sua condição de Homem, de Alguém cujos Valores do Homem e para o Homem que significa e proclama, têm uma projecção e dimensão incomensurável, justamente, a dimensão, a “medida”, do Homem. E, todavia, parafraseando Fernando Pessoa (Liberdade), “não percebia nada de finanças”.
Aliás, cinco séculos antes, alguém, (Protágoras, 468- 410 a.C.), sábio, tinha já sentenciado que “O Homem é a medida de todas as coisas”.
Nesse sentido, (re)anima, porque (também) neste Natal é ainda maior a sabedoria, cidadania e pertinência da sua mensagem humana e social, o poema de Ary dos Santos: Natal é quando um Homem quiser…
Quando quisermos, …Bom Natal!
João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa