Publicado no quinzenário GAZETA DA BEIRA de 2010-12-09
“Para que é que vão os funcionários públicos às empresas? Só para criar problemas”.
Foi isto que disse, há uns meses (9/4/2010), a certa altura de uma entrevista à Antena Um, o ex-ministro das Finanças professor João Salgueiro.
Este é apenas um exemplo de uma notória desconsideração progressiva dos funcionários públicos que, na linha da cruzada ideológica contra o “peso do Estado na sociedade portuguesa”, “naturaliza”, cria “aceitabilidade” (ou pelo menos conformismo) social quanto às medidas de “austeridade” que têm incidido nas condições de emprego e de trabalho dos trabalhadores da função pública. Das quais se destaca, pelo seu ineditismo, injustiça objectiva e eventual ilegalidade (por possível inconstitucionalidade), a redução efectiva e nominal de salários.
O equilíbrio das contas públicas é uma das condições de sustentabilidade económica e, até, da coesão social do país. E os funcionários públicos, tal como todos os cidadãos, devem contribuir para esse objectivo.
Mas as causas desse problema não são, essencialmente - longe disso – o “peso” e a “ineficiência” da função pública, como influentes “fazedores de opinião” têm, sistematicamente, tentado convencer a opinião pública.
Mediáticos “especialistas” e “analistas” enfatizam, sistematicamente, o “excesso”, os “privilégios” e a “falta de produtividade” dos funcionários públicos. E, colocando objectivamente contra eles os trabalhadores (e desempregados) do sector privado (com o risco de perigosas clivagens sociais), esgrimem com inúmeros números, como, por exemplo, os “cinco milhões de portugueses que são pagos pelo Estado, pelos contribuintes”, e os “75 por cento da dívida pública que advêm dos salários dos funcionários e das prestações sociais”.
Estes “especialistas”, alguns mais influentes por terem sido governantes, sabem que o seu discurso é primariamente assimilado por muitas pessoas, cientes de que ainda perdura por aí o estereótipo do funcionário “manga de alpaca”, caricaturado com fina ironia e noutro contexto histórico e social, por Anatole France (prémio Nobel da literatura em 1921): “O Estado é um sujeito carrancudo e malcriado sentado atrás de um guiché”.
E, assim, gratuitamente, sugere-se que “só cria problemas” esse “sujeito”, o Estado. Essa abstracção que as pessoas utentes da AP personificam em quem – os funcionários públicos - assume pessoalmente perante elas a prestação concreta dos serviços públicos.
O poder político tem sido sensível a estas teses “literárias”: redução do emprego e consequente (sobre)intensificação do trabalho e degradação das condições de trabalho em muitos sectores e departamentos, redução efectiva de salários, descaracterização e desqualificação profissional, bloqueamento das progressões nas carreiras, aumento das contribuições, congelamento das pensões, fragilização do sistema de apoio na doença.
Destrói-se, assim, o que, subjectiva e objectivamente, de mais essencial é para as pessoas que trabalham na AP (e não só): a expectativa de reconhecimento e, por este, da justiça e realização profissional, do sentido do trabalho que cada um faz.
A avaliação do desempenho, se adequadamente concebida e aplicada, pode(ria) constituir uma via para esse reconhecimento e justiça profissional, sem prescindir do que essencialmente, deve(ria) ser: um indispensável instrumento da qualidade do serviço público.
Só que, com o enveredar por sistema(s) e práticas de avaliação do desempenho individual(ista), burocráticas (e burocratizantes), muitas vezes aplicada na AP pelos dirigentes sem integrar toda a realidade do trabalho concreto realizado (e condições em que é realizado), muitos funcionários públicos encontram-se frequentemente perante o dilema, profissional e deontológico, de, para lhes ser reconhecido o trabalho, deixarem de nele se reconhecer.
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A pressão da “quantofrenia” induzida pela necessidade de “superar os objectivos” para efeito de progressão na carreira (já por si afunilada pelas injustas “quotas”), associada à burocracia e a muito determinismo informático (que em muitas situações nada tem de “simplexificação”) e problemas de organização e meios, suscitam o risco de se fazerem concessões no sentido do trabalho bem feito ou na ética.
Este risco emerge especialmente em sectores da AP (Saúde, Educação, Justiça, Emprego, Segurança, etc.) em que é exigida muito interacção, sensibilidade, disponibilidade humana e, mesmo, comprometimento humano e social com os utentes e em que, por isso, muitos dos requisitos e condições (como, quando, onde, com quem, com quê…) do “desempenho” do trabalho necessário para garantir a qualidade do serviço público a prestar não são “informatizáveis”, “objectiváveis” e “objectivamente” avaliáveis pelo sistema de avaliação instituído (SIADAP, nas suas várias nuances).
Sintomas da frustração dessas (legítimas) expectativas de reconhecimento, associada à sobrecarga profissional e desmotivação profissional, é, para além de conhecidas situações de esgotamento físico e mental relacionado com o trabalho, a “avalanche” de aposentações antecipadas em profissões (por exemplo, médicos, professores, polícias e outras) em que antes, por motivação e implicação, pelo “sentido” do (no) trabalho e pelo ambiente sociolaboral, a regra era as pessoas trabalharem até ao limite de idade.
E isto é tanto mais penoso quando, quanto mais se degradam as condições de trabalho, mais aumenta a idade para a aposentação.
Esta situação não constitui apenas um desperdício de experiências profissionais acumuladas que nenhuma formação pode substituir. Acrescendo a isso, em muitos departamentos da AP, pelo facto de os funcionários aposentados não serem substituídos, gera sobreintensificação do trabalho e anuviamento do ambiente sociolaboral, prejudicando a prestação, com qualidade e oportunidade, dos respectivos serviços públicos.
Há riscos claros da gradual perda de qualidade do serviço prestado pela AP (omissões, atrasos, espera dos utentes, atabalhoamentos, desumanização e erros no tratamento de situações). Essa situação é indissociável da progressiva degradação da qualidade do emprego e da deterioração das condições de trabalho na AP.
Este problema radica, essencialmente, na organização, meios e gestão da AP. Mas o que é perverso é que também as consequências desta degradação da qualidade dos serviços públicos reverta para… os funcionários públicos. Quer como responsabilizáveis (disciplinar, civil e, até, criminalmente) pela falta de qualidade ou de tempestividade do serviço público (não) prestado, quer porque são igualmente prejudicados como utentes que também são da AP.
Há, é certo, ineficiência e desperdício na AP. E, nisso, há responsabilidades a clarificar e a assumir e responsáveis a identificar. Todavia, segue-se o caminho, mais simples(ista) e rápido, de “anatemizar” os funcionários, reduzir-se-lhes os salários e, em geral, diminuir-se-lhes a qualidade do emprego.
Os funcionários públicos não são os culpados do que não foram, em melhor organização, meios e gestão, em maior eficiência e qualidade do serviço público, o “PRACE” e a real (e não apenas virtual) “Reforma da AP”. Também não podem continuar a ser, de vez em quando, um instrumento eleitoral(ista) a troco de uns “oportunos” “privilégios” salariais ou “tolerâncias de ponto”. Outrossim não têm que ser o “instrumento financeiro” mais “à mão” para “acalmar os mercados”, o “bode” útil para expiar os pecados de incompetência e ou desonestidade de outros grandes “pecadores” do “défice” que estão fora e dentro da AP.
As verdadeiras causas, os “problemas” de ineficiência e desperdício da (na) AP não estão, essencialmente, na “ineficiência”, “desperdício” e “privilégios” de quem executa, dos funcionários.
Estão, de facto, para além de na forma como o Estado gasta o nosso dinheiro (sobre o que é muito elucidativo o livro com este título do juiz jubilado Carlos Moreno), na falta de políticas, de organização e de gestão no sentido da qualidade do emprego e do serviço público na (da) AP. E também, em geral, na incapacidade técnica e de gestão de quem dirige, dos dirigentes, ao que não é alheia muita da denunciada partidarização e “clientelização" da AP.
É legítimo que as pessoas, como tal, como contribuintes e como cidadãos, exijam serviços públicos de qualidade, dos quais depende a satisfação das suas necessidades e direitos fundamentais e, em geral, a justiça e coesão social, bem como o desenvolvimento social e económico. E esse é um problema que, crescente, o Estado deve resolver, no quadro do cumprimento das suas funções sociais.
Então, é urgente que a sociedade e o poder político reflictam e decidam (e ajam) no sentido de, consequentemente, considerar (responsabilizando mas, também, reconhecendo) os funcionários públicos, não como parte do problema mas, sim, como podem e devem ser, parte da sua solução.
João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa
Funcionário público