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       Contestação social, trabalho e vida

Publicado na Gazeta da Beira Nº 577 – 25/11/2010


“Não acredito que, com estas medidas que vêm aí, os portugueses vão ficar em estado de aceitação, sem reacção, anestesiados”. Cito o professor José Gil, numa sua recente entrevista (Antena Um, 04/11/2010).

As “medidas” a que o professor José Gil se referia, designadamente as previstas no Orçamento de Estado (OE) para 2011, repercutem-se em vários domínios da vida dos portugueses.

Mas um domínio há que, pela sua centralidade e transversalidade na vida das pessoas, é referência para a reflexão daquela opinião do professor José Gil: o domínio do trabalho e do emprego.

Convocada pelas centrais sindicais, a greve geral do dia 24 de Novembro, sendo um sinal da confirmação daquela previsão do professor José Gil, é, também, um exemplo da determinância do trabalho nas questões sociais.

Com pelo menos 610000 pessoas desempregadas, o desemprego é uma angustiante ameaça para as pessoas, como factor de risco de pobreza e de “apodrecimento” profissional, pessoal e social. Tanto mais que, com estas e outras medidas de “austeridade” que já vinham a ser aplicadas (PEC I e II), foram diminuídos os apoios sociais no desemprego.

Mas quem conhece o “real” da realidade dos locais e situações de trabalho sabe que há uma outra faceta menos visível, um “lado lunar”, do desemprego que se manifesta…no trabalho.

A falta de respostas, ao nível político e empresarial, para o real (e não apenas virtual) crescimento económico no sentido do emprego sustentado gerou o crescimento do (sobre)desemprego. E, agora, este está fazer degenerar o emprego para o “subemprego” e para o “sobretrabalho”. Isto é, para a regra (que, legalmente, deve ser excepção) da precariedade (trabalho a termo, temporário ou a “recibo verde”, muitas vezes falso) e para a (sobre)intensificação do trabalho (em termos de ritmo ou de duração efectiva). Esta degeneração da qualidade do emprego traduz-se na degradação, em espiral, das condições de trabalho.

Sob o eufemismo da “flexibilização”, há uma tendência para a “moderna” gestão das relações e situações de trabalho se basearem na precariedade e na intensificação do trabalho, na sub(sub, sub, sub…)contratação, nos baixos salários, na desregulação legal, contratual e contributiva (omissão ou subdeclaração de contribuições), no abuso da duração e (des)organização de horários e locais de trabalho, na descaracterização e desqualificação profissional, na degradação das condições de segurança e saúde, no assédio moral como forma de “humilhação para quebrar as pessoas” (citando ainda o professor José Gil).

No sector privado e, mesmo, na Administração Pública, haverá mesmo quem entenda, pratique (e até ensine) concepções de gestão dita “moderna”, em que o desemprego “cá fora” é tido como uma “oportunidade”, como “natural” instrumento de “reserva” para, “lá dentro”, “gerir” (ou despedir) mais facilmente as pessoas que trabalham.

Nestas circunstâncias, facilmente se percebe a eventual emergência de contestação. Ainda que, por várias razões, essa (potencial) contestação não seja claramente explicitada, assumida e, muito menos, colectivamente participada.

Uma dessas razões é a precariedade dos vínculos laborais e a fragilidade económica de muitas pessoas, sob o espectro, atemorizador, da perda do emprego. Depois, a análise da contestação social não pode também deixar de ponderar a influência pública de alguns proeminentes “fazedores de opinião” que veiculam e alimentam publicamente a “condenação” de qualquer contestação da perda da qualidade do emprego, fazendo-o com base na ideia, primária, de que “mais vale ter emprego, mesmo que mau, desprotegido, sem direitos, do que não ter emprego nenhum”, (de)formando assim na opinião pública o equívoco de que a “culpa” do desemprego e da degradação da qualidade do emprego é dos trabalhadores, dos que trabalham e dos que estão desempregados.

Equívoco perverso este, visto que, na realidade, as vítimas do desemprego são os desempregados e …os empregados Pela degradação das condições de trabalho que o desemprego provoca e alimenta.

Outro elemento a considerar é o recorrente e sistemático discurso político e mediático da “inevitabilidade” e “fatalidade” da “aceitação”, conformada, de todas as medidas de austeridade “vencidas e vincendas”. Este discurso contém um grande impacte naquilo que, como escreveu Hanna Arendt há 40 anos (Crises da República), é o grande potencial da capacidade de revolta e de contestação das pessoas: a convicção de que há (outra) alternativa, de que (lhes) é possível, com outras “medidas” (assentes noutras opções e estratégias políticas, sociais e económicas), mudar as suas condições de vida e de trabalho.

De qualquer modo, no desemprego ou com condições trabalho degradadas e baixos salários (muitas vezes ilegalmente insuficientes e em atraso), com aumento dos bens e serviços essenciais, com encarecimento e perda da qualidade e tempestividade de resposta de vários Serviços Públicos (por exemplo, Saúde, Educação e Justiça), com o crescimento das desigualdades sociais (basta referir a injustiça que, na actual situação social, constituem certas remunerações e acumulações, bem como os lucros desproporcionados - porque económica e socialmente quase estéreis, do ponto de vista de (re)investimento produtivo que se veja - dos maiores bancos e empresas do PSI 20), sem uma esperança sustentada da retoma de condições dignas de trabalho e de vida, é de prever, como o faz o professor José Gil, que se verifique contestação social. Aliás, nestas circunstâncias, a contestação social, desde que no respeito pela legalidade democrática, não só é lógica como, até, é um factor de regulação política e económica, de prevenção da omissão e da impunidade social de quem governa e de quem gere, consubstanciando um “alerta” social das dificuldades socioeconómicas, da quebra de compromissos e expectativas profissionais, pessoais, sociais e políticas, das injustiças sociais, do bloqueamento crescente da exercitação no trabalho de direitos sociais fundamentais.

E é, também, uma via de preservação da dignidade pessoal, profissional, institucional e social e, assim, de prevenção da deriva, perversa, da violência social. Sendo, ao mesmo tempo, um factor de prevenção da banalização do “sacrificialismo”, do conformismo, da apatia e da anomia política e social, do fenecimento progressivo da vida política, económica e social.

Sob este ponto de vista, a contestação social é um sinal para o poder político e para a sociedade, para o “interior” (e também para o “exterior”), da (re)criação (e não da destruição) de alguma confiança social.

É uma garantia da existência de alguma reserva de cidadania e de participação social e política das pessoas, uma “aberta” naquele clima social que o professor José Gil chama de ”reaparecimento em força do medo”, de um “outro tipo de medo” que é causa e efeito do progressivo “cada um por si”, do crescente egoísmo e individualismo, do desaparecimento da entreajuda e solidariedade na (pela) vida e, necessariamente, no (pelo) trabalho.

Trabalhar é, sempre, de algum modo, “viver com os outros”. E viver, mesmo no seu sentido mais amplo, é (depende) sempre de trabalhar “com os outros”.

Por isso, a análise da contestação social é indissociável da reflexão (e acção) integrada sobre as concretas circunstâncias sociais, mormente sobre as que respeitam às condições de trabalho e de vida de cada um e de (com) os outros.

João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa
Inspector do trabalho (aposentado)