Publicado na Gazeta da Beira Nº 576 -2010-11-11
Há mais vida para além do défice.
Foi isto que, há já algum tempo, nos foi proclamado por alguém prestigiado, lá do alto da presidência da República, de onde é de presumir que se pode (deve) ver “para além”.
Mas a esperança dessa proclamação esvaiu-se mal se calou o seu efémero eco. Tão efémero que, rapidamente, se lhe voltou a sobrepor o contínuo clamor que, agora, subindo de tom e repetido em “plano inclinado”, nos ensurdece: por uma vida sem défice.
Este clamor chega-nos de muito longe, do “exterior”, dos “mercados” e, normalmente em inglês, dos seus “anjos da guarda”, as agências de rating, entidades misteriosas mas “divinas”, visto que, se a sua omnisciência está em crise (tal como a crise esteve, afinal, na sua suposta “omnisciência”), somos todos testemunhas (e vítimas) de que são omnipresentes e omni(pre)potentes.
E depois, cá no “interior”, muito em alemão e francês é certo mas, também, com obediência subserviente, muito em português, tem este clamor merecido grande respeito(inho), contínua declamação e muita ampliação por quem, com uma vida com muitos “superávites”, é “especialista”, “comenta”, “faz opinião” e por (de) nós decide quanto a estas transcendentes coisas do “défice”.
Ora, estas coisas do “défice” (e, convenha-se, também muito as coisas da “vidinha”), têm(nos) desviado muito a atenção das coisas da vida.
E assim se vão abafando outros clamores que, realmente, com a vida mais têm a ver.
Um desses clamores, gritado já por mais de 700.000 pessoas e que o sofrimento do desemprego bem justifica, é o de por uma vida com trabalho.
Perverso é que quem – desempregado - mais tem razões para (re)clamar por uma vida com trabalho, se angustie ainda mais por ser o “défice” o pretexto para o fragilizarem mais ainda, diminuindo-lhe ou retirando-lhe o apoio social no desemprego.
Um outro clamor cada vez mais silenciado também pelo coro do “défice” (e por tudo aquilo, ilegal ou imoral, para o que, no trabalho, o “défice” é pretexto) é o de por um trabalho com vida.
Calam este clamor os(as) muitos(as) trabalhadores(as) que, cada vez mais, sentem no corpo, na mente, na família e na sociedade (ou seja, na vida), o esvaziamento dos seus direitos, a degradação dos salários e das condições de trabalho.
E, no entanto, Portugal é dos países onde clamar por um trabalho com vida mais se justifica, no sentido de que, no trabalho, as pessoas, a ganhar a vida, não continuem a perder a vida (num acidente de trabalho) ou, pelo menos, insidiosa e diariamente, a perder (ir perdendo) vida, degradando no trabalho (ou melhor, nas condições em que o realizam) a saúde física ou mental.
Mas, outra perversidade: sob o espectro de, insaciavelmente, lhe serem exigidos cada vez mais sacrifícios por “uma vida sem défice”, quem, a trabalhar, tem razões para, “lá dentro”, clamar por um trabalho com vida cala-se, aterrorizado, a ouvir os que, “cá fora”, desempregados, clamam por uma vida com trabalho.
Silenciadas pelo clamor do “défice”, pelo desemprego, pelo (sub)emprego precário, pela pobreza, as pessoas, para ganharem a vida, muitas vezes, “aceitam”, sem “gemer”, um trabalho em condições humana, social e legalmente inaceitáveis, submetem-se a qualquer um trabalho indigno, a um trabalho “sem vida”, a um trabalho “morto” (alienante) ou “mortificante” (intensificado ou stressante).
Por medo, calam o clamor pelo direito, humano e fundamental, a um trabalho “digno”, (decent work é, actualmente, a principal referência da Organização Internacional do Trabalho), abafam o direito, legítimo, a um trabalho “vivo” (justamente retribuído, seguro, qualificante, responsabilizador e realizador), o direito a um trabalho “com vida”.
Entretanto, todos os dias (re)ouvimos as mais qualificadas e poderosas vozes a explicarem-nos, “patrioticamente”, a ”inconveniência”, perante “os que nos observam do exterior”, de “protestos inconsequentes”, “reivindicações irrealistas”, “agitações irresponsáveis”, enfim, a “inconveniência” de qualquer contestação, de quaisquer clamores.
Parece que, afinal, o que sempre vai haver é quem, com uma vida com muitos “supéravites”, nos garanta, a “inevitabilidade”, a “inescapabilidade” e a “fatalidade” de (sempre) mais “sacrifícios” em prol da redução do “défice”, a “conveniência” da nossa conivência, a “vantagem” de esquecermos que há mais vida para além do défice e de nos conformarmos com sempre mais “défice(s)” para além da vida.
Sim, parece que, mesmo para quem tem uma vida já com tantos outros (reais) défices (Emprego, Saúde, Educação, Justiça…) que de facto estão para além do “défice”, sempre haverá alguém que exija a submissão da vida a este e outros “défices” que atrás virão, a submissão ao “défice” pelo “défice”.
Mesmo que nisso não se vislumbre, com convicção sustentada, uma estratégia (realmente) económica (e não apenas financeira) e, sobretudo, social e humana, uma estratégia para as pessoas como pessoas, para a melhoria das suas condições de trabalho e de vida.
Sim, parece que sempre vai haver alguém que, com números, gráficos, quadros e curvas superevidentes, nos cegue (por vezes, as evidências cegam…) para os(as) responsáveis e para as responsabilidades, “absolutas” e “relativas”, pelas sete vidas do “défice”. E que, de seguida, com “coragem e determinação”, nos determine a submissão a um “défice” sem sentido humano e social, a um “défice” sem “vida”.
Mas, então, para que também o reconhecimento, a dignidade, a cidadania e o civismo não se tornem “deficitários” perante a injustiça, a indiferença, o amorfismo, o conformismo, a anomia, pelo menos, parafraseando o poeta, venhamos “para a rua gritar”, clamar, por algum nexo humano e social e (realmente) económico de meros números e percentagens continuamente “deficitárias” e “PECadoras”.
Venhamos “para a rua” clamar por algum maior sentido dos sacrifícios pelo “défice” do que aquele de sempre, recorrente, abstracto e redutor, de «restaurar a credibilidade do Estado junto dos mercados financeiros internacionais».
Venhamos “para a rua gritar” um clamor por algo que, (também) a nós, pessoas, cidadãos, nos restaure o estado de credibilidade na democracia e nos valores e direitos eminentemente humanos e sociais, nos garanta dos sacrifícios pelo “défice” alguma esperança, alguma razão que o coração (e o corpo, e a mente) não desconheça.
Por exemplo, que tal clamar por um défice com vida ?
João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa