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       Fogos invisíveis

Publicado no quinzenário GAZETA DA BEIRA de 2010-09-16 a propósito dos fogos florestais de 2010)


Amor é fogo que arde sem se ver … (Luís Vaz de Camões)

No tempo em que Camões viveu, no século XVI, talvez houvesse, a arder, mais amor e menos fogos. A “comburência” e a “combustibilidade” do actual “progresso” e “crescimento” ainda não impediam a Natureza (da qual o Homem faz parte integrante) de, naturalmente, cuidar de si própria.

Algumas “ignições” florestais de então faziam parte do ecossistema, agora sistematicamente a ser destruído pelo sistema técnico e pelo sistema económico.

Ou, quando muito, eram “contrafogos” (em linguagem técnica actual, “uso do fogo”) ateados em lenha (talvez de folhosas) empilhada nos autos de fé da Inquisição.

Aliás, é talvez ainda muito a “santa” estupidez e a “santa” cupidez que ateavam estes “contrafogos” da Inquisição que, agora, nas matas e pinhais (e escritórios…) ateia alguns incêndios florestais.

Mas, agora, no século XXI, pelo que “vemos, ouvimos e lemos”, se já não é a “justiça” dos autos de fé, é a (pouca) fé dos autos da Justiça que vai “ardendo”. E se é certo que também esta “queima” muita boa (e má) gente, “queima-a” no “lume brando” e lento, muito lento, dos tribunais, dos jornais e da televisão...

E o amor, o amor, ven(den)do-se muito mais (Big Brother , reality shows, telenovelas, revistas jet set, etc.), já não é tão “ardente” nem “arde” durante tanto tempo (às vezes, só uns dias, vá lá, uns meses) como há 500 anos, quando Camões viveu.

Mas isso não quer dizer que não haja incêndios…

S. Pedro do Sul, Castro Daire, Serra da Estrela, Gerês, Ponte de Lima, Guarda. Devastadores incêndios que nos aterrorizaram (pelo menos) no mês de Agosto deste ano.

Todos vimos, “claramente visto, o lume vivo” desses incêndios. Viram-no mais, sentiram-no mais no seu âmago, aquelas pessoas que mais próxima e directamente com ele sofreram, vendo ameaçada a vida, a integridade física, a casa, os haveres . E, também, todos os que, no terreno, o combateram. A três destes(as), bombeiros(as), só este ano, o lume, de tão “vivo”, trouxe-lhes a morte. E a muitos outros o sofrimento de ferimentos graves.

É pouco provável que todos estes incêndios tenham sido ateados por amor, por esse “fogo que arde sem se ver”.

Mas, se não foi o “fogo” do amor, não terão sido outros “fogos” que, também “sem se ver”, durante todo o ano (e não apenas no Verão), de alguma forma, “ardem”, desencadeiam e ou alimentam esses incêndios? É que, na realidade (da qual as metáforas fazem parte), há por aí muitos “fogos” que, porque “só” fazem ou deixam arder, não se lhes vê o “lume vivo”. Mas que, tal como o “fogo” do amor, “ardem sem se ver”:

  • “Arde” sem se ver o abandono da agricultura, quer por dificuldades de suporte económico e social da generalidade dos agricultores, quer pelo envelhecimento acelerado da população, quer, ainda, pela progressiva desertificação do interior rural por falta de condições de emprego e de acesso local, fácil e em devido tempo, a Serviços Públicos essenciais (saúde e educação, especialmente);
  • “Arde” ainda mais no Verão esta desertificação do interior e abandono da agricultura. Mas não tanto, apenas, vendo-se bem porquê, pelas naturais condições estivais de temperatura e humidade. “Arde” mais, vendo-se menos nesta época, pelo repentino e desordenado confronto, entre a desertificação e abandono da agricultura e a esporádica sobreocupação por “férias rurais” e actividades muitas vezes ecologicamente agressivas e perigosas (porque sem o adequado e oportuno planeamento, enquadramento, organização e controlo preventivo) que, no Verão, se desenvolvem no “interior”, no “convívio” (que não é bem a mesma coisa que convivência) “com a Natureza”;
  • “Arde” sem se ver a falta de ordenamento florestal e consequente falta de biodiversidade preventivamente adequada das espécies, bem como da sua propriedade e localização precisas;
  • “Arde” sem se ver a falta de limpeza das matas pelos seus proprietários “. “Arde” isto ainda mais, vendo-se ainda menos, quando o proprietário é o Estado;
  • “Arde” sem se ver a falta de fomento e incentivo do Estado à organização colectiva dos pequenos agricultores para, conjuntamente, limparem e reordenarem os seus pinhais e matas;
  • “Arde” sem se ver a falta de aceiros e de acessos para os bombeiros de dimensão e localização adequadas;
  • “Arde” sem se ver a negligência de muitos de nós com a “prisca”, os foguetes, a queimada das silvas e do lixo ou a churrascada “ecológica”;
  • “Arde” sem se ver o crime, a ganância de muitos interesses ou o desequilíbrio mental que desencadeia os actos incendiários;
  • “Arde” sem se ver a pouca exemplaridade da (efectiva) punição e sancionamento da negligência e do dolo no incumprimento das obrigações de prevenção e no crime de ateamento de incêndios;
  • “Arde” sem se ver muita da (muita) legislação e regulamentação directa ou indirectamente relacionada com “protecção civil” e com “floresta”. “Arde” ainda mais, vendo-se menos, muita dessa legislação e regulamentação, porque, ou é “letra morta” (por não aplicação), ou porque está “apodrecida” (por, desfasada da realidade, ser inaplicável) ou porque, por tão confusa e labiríntica, ser, ela própria, uma verdadeira “floresta desordenada”.
  • “Arde” sem se ver, mesmo chovendo “a cântaros”, também de Novembro a Abril (e não só de Maio a Outubro, contrariando o administrativamente “decretado” quanto a quando é que a floresta “pode” arder), o que o Estado deixa por fazer quanto a planeamento, organização, formação, estruturas, equipamentos, financiamento e emprego de (mais) pessoas, de forma a, também nesse período, se fazer algo para, depois, não deixar arder. Por exemplo, também nesse período, não apoiando (com suporte financeiro e equipamento adequado), sob o enquadramento de um (eventual) “DEPIF” (“dispositivo especial de prevenção de incêndios florestais”), as associações e os corpos de bombeiros na prevenção (e não apenas no combate, como agora acontece com o DECIF) dos incêndios. “Arde” isto ainda mais porque não se aproveita (também) na prevenção o profundo conhecimento da região, o capital social (relações criadas) e o reconhecimento social que é atribuído aos (às) bombeiros(as) para vigiarem a floresta e as povoações e para informarem, sensibilizarem, orientarem e apoiarem (com informação e equipamento adequado) os moradores e os agricultores de escassos recursos a prevenirem os incêndios nas suas habitações, terras de cultivo, estruturas e equipamentos de produção e matas;
  • “Arde” sem se ver a eventual menor atenção e consequente perda de capacidade colectiva e individual de prevenção e protecção de outros riscos, designadamente, calamidades naturais e incêndios e acidentes industriais, urbanos e viários. “Arde” isto mais vendo-se menos pela polarização de (quase) toda a atenção mediática, política, administrativa e social (só) na espectacularidade dos incêndios florestais e na dimensão do (mega)“dispositivo” técnico e tecnológico mobilizado (só) para o “combate” destes;
  • “Arde” sem se ver, sobretudo quando já se vê - mas vê mesmo - tudo a ser queimado, a insuficiência, incapacidade ou inadequabilidade de viaturas, equipamentos, meios e apoios logísticos e formação para a prevenção e combate dos incêndios em muitas corporações de bombeiros;
  • “Arde” sem se ver, até já estando muita coisa a ser calcinado, alguma falta de consideração e de aproveitamento da preciosa informação e orientação local (a das pessoas em geral e, sobretudo, a dos bombeiros da corporação da área) na organização e coordenação do combate aos incêndios;
  • “Arde” sem se ver, apesar do muito esforço pessoal e meios mobilizados, a falta de (mais) reflexão e correcção de eventuais desequilíbrios e contradições de alguns dos referenciais de concepção, estruturação, organização e acção da (na) “Protecção Civil” . Como, por exemplo: entre o “combate” e a “prevenção”; entre os fins e os meios; entre o “rural” e o “urbano”; entre a “administração” e a “agricultura”; entre o “militar” e o “civil”; entre o “técnico” e o “social”; entre a “hierarquia” e a “funcionalidade”; entre a organização / coordenação e a acção; entre a acção e a proacção; entre a “realidade” dos mapas e dos números e a realidade (geográfica, orográfica, hidrográfica, climática, agrícola, etc. mas, também, social) do terreno e das pessoas que nele (e como nele) vivem;
  • “Arde” sem se ver, a nível regional, municipal (concelho) e local (freguesia), o não funcionamento ou subaproveitamento das competências, responsabilidades, estruturas, organização, processos e equipamentos directa ou indirectamente relacionadas com a protecção e prevenção civil. E “arde” isto ainda mais, vendo-se ainda menos, se não houver ou não funcionarem regularmente sedes, oportunidades e processos de inerente e consequente reflexão colectiva.
  • “Arde” sem se ver o (des)aproveitamento mediático dos incêndios, com uma “comunicação” mais espectacular que reflexiva, mais mercantil do que pedagógica, mais comercial que social;
  • “Arde” sem se ver o (sobre)aproveitamento político(queiro) dos (nos) incêndios e do seu combate, dificultando uma análise crítico-construtiva concertada, consequente, consistente e sustentada orientada para a melhoria do seu combate e, sobretudo, da sua prevenção;

    Luís Vaz, aí em Cima, “lá no assento etéreo onde subiste”, Saramago, também já aí contigo, ter-te-á já sugerido que, “se puderes olhar, vê; se puderes ver, repara”. Então, com certeza, já reparaste em todos estes “fogos” que, cá em “baixo”, ardem sem se ver.

    Pelo que se sabe, não foste bombeiro. Pelo menos o teu “número mecanográfico” não consta do “Recenseamento Nacional de Bombeiros” da ANPC. Foste, sim, (o) Poeta.

    Mas, nestes tempos de tanta teoria e prática de (ultra)”liberalismo”, do “cada um que se amanhe”, pelo seu desinteresse pessoal, abnegação, solidariedade, humanitarismo, todos(as) os(as) bombeiros(as) são uns “líricos”, uns “poetas”. E “poetisas”.

    Por isso - apelamos-te - não poderás assumir-te como poeta bombeiro (ou vice-versa) e arranjar maneira de vir cá “abaixo” (talvez num helicóptero) e, num Conselho de Ministros, numa reunião magna da Protecção Civil, da Associação Nacional de Municípios ou da Associação Nacional de Freguesias, numa assembleia municipal, na TVI, SIC ou RTP (quiçá, num prós e contras), mesmo numa(s) missa(s), “mandar” uns berros, provando que existem, porque os viste, “claramente vistos”, todos estes “fogos” que (ainda) ardem sem se ver, estes fogos invisíveis?

    Se, pela tua insigne e eterna condição de Vate, não te agradarem uns berros, poderias declamar uns versos. Aprovarias estes, ainda que “pirosos”?: Se formos apagando estes “fogos” que ardem sem se ver, / menos arderão os fogos que estamos a sofrer.

    * Presidente da Direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Santa Cruz da Trapa (este texto tem um carácter genérico e exprime, unicamente, a opinião pessoal do seu autor, como cidadão, não vinculando minimamente a associação de que este é dirigente)

    João Fraga de Oliveira, Santa Cruz da Trapa
    Inspector do trabalho (aposentado)